Sobre a soberania tecnológica de elementos de capacidades militares

Com o passar do tempo, a ciência, a tecnologia e a inovação tornaram-se essenciais para o crescimento econômico, o desenvolvimento social e a defesa de um país. Na atual conjuntura, os países passaram a ser diferenciados pela capacidade de desenvolvimento tecnológico, suplantando as tradicionais disputas ideológicas do período da Guerra Fria. De fato, ao impulsionarem a fronteira do conhecimento e gerarem tecnologias disruptivas, os países inovadores assumem papel preponderante no campo político, econômico e militar, estabelecendo as regras do sistema internacional e moldando a distribuição da riqueza.

No tocante à expressão militar do poder nacional, as nações proeminentes buscam auferir autonomia e soberania tecnológica em suas capacidades militares, bem como dificultar o domínio de tecnologias críticas e sensíveis pelos países emergentes. Esse jogo é compreendido como uma manifestação natural do sentido de preservação do status quo e condiciona o movimento das peças do tabuleiro geopolítico. Nesse mister, destacam-se cerceamentos tecnológicos, cujas ações visam aprofundar ou ao menos manter as assimetrias tecnológicas.

O cerceamento tecnológico é uma prática relativamente antiga que se manifesta de diversas maneiras. Uma delas ocorre quando, por exemplo, agências governamentais não autorizam a operação de compra, venda ou transferência tecnológica. Também acontece quando startups ou empresas promissoras nacionais são adquiridas ou absorvidas por grandes empresas internacionais ou quando ocorre a drenagem de cérebros de países de industrialização tardia. Outrossim, pode se manifestar quando as nações proeminentes exercem pressão política, econômica ou social ou, até mesmo, impõem o emprego da força para lograr êxito em seus objetivos geopolíticos. Enfim, negar o acesso a tecnologias; elaborar listas de tecnologias e materiais de exportação ou reexportação proibida; introduzir barreiras fiscais, alfandegárias, sanitárias, ambientais ou de direitos humanos; e até executar operações, militares ou de inteligência para neutralizar, dificultar ou impedir a capacidade de inovação de países periféricos integram o vasto rol de ações costumeiras de cerceamento tecnológico.

Minha experiência, angariada ao longo de mais de 20 anos de pesquisa científica, pesquisa e desenvolvimento (P&D) e gestão da inovação na área de defesa, sugere que as ações de cerceamento assumem formas mais sofisticadas e se intensificam à medida que avançamos na maturidade tecnológica. O instinto de preservação revela-se, expondo primoroso arsenal, ao se adotar práticas copiosamente relatadas por Ha-Joon Chang no livro “Chutando a Escada”. O cerceamento tecnológico só será suplantado mediante o progressivo acúmulo de conhecimentos em áreas estratégicas e a apropriação desses saberes pelos setores produtivos, contando com investimento intensivo do Estado em atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovações de longo prazo.

Entretanto, o mercado de defesa é peculiar, de modo que até mesmo o sucesso dessas atividades precisa ser temperado com outros ingredientes essenciais para que se atinja a almejada supremacia tecnológica, concretizada pela produção e adoção de sistemas e produtos de emprego militar pelas Forças Armadas do país hospedeiro das inovações.

A área de defesa emprega sistemas, materiais e armamentos de alta tecnologia, dos quais se espera confiabilidade bastante elevada, mesmo ao serem utilizados em ambientes hostis. Desenvolver capacidades militares genuinamente nacionais que conjugam tecnologias sofisticas, inovadoras e confiáveis é um desafio enorme, requerendo um conjunto de fatores, tais como: a elevada competência doutrinária; o eficiente planejamento de longo prazo; a avançada maturidade na elaboração de especificações operacionais e técnicas; a efetividade da engenharia financeira no sentido de sustentar a constância de recursos ao longo do tempo; e a existência de um ambiente de inovação dinâmico, condição que passa necessariamente pela disponibilização de infraestrutura de pesquisa, de desenvolvimento, de testes e de avaliação sofisticados, recursos humanos altamente qualificados e uma base industrial de defesa pujante. Cabe destacar que poucos países reúnem essas condições e somente os mais desenvolvidos realizam P&D de programas militares de ponta.

Por afetar a soberania das nações, a negociação de produtos e de tecnologias de defesa sofre interferência dos governos dos países envolvidos. Por essa razão, as colaborações internacionais são efêmeras e superficiais, e as ações de cerceamento tecnológico ocorrem sem serem abarcadas por controles de organismos multilaterais, como os da Organização Mundial do Comércio (OMC). O mercado mundial de tecnologias de defesa é naturalmente caracterizado por um elevado nível de restrições formais e informais.

Essas dificuldades motivam os países emergentes a adotarem políticas, estratégias e ações visando obter autonomia tecnológica na área de defesa, particularmente quando eles se destacam no concerto das nações por possuírem isolado ou conjuntamente produto interno bruto elevado, território avantajado, população numerosa, recursos naturais abundantes, fronteiras extensas e inserção em espaço geopolítico conturbado. O Brasil congrega praticamente todos esses fatores, sendo fundamental obter as capacidades militares por seus meios próprios, conforme discutido em “Maquiavel e a Importância do Poder Militar Nacional”

(http://www.ebrevistas.eb.mil.br/RMM/article/view/10070).

Mister acrescentar que a área de defesa envolve o desenvolvimento de sistemas militares complexos, cujos ciclos de P&D são duradouros e os produtos possuem ciclos de vida de longo prazo. Quando combinadas à necessidade de modernização das Forças Armadas, essas características desencorajam atividades de P&D e favorecem a prática do dumping por parte de grandes players mundiais, reforçando a opção pela aquisição no mercado internacional em detrimento da realização de P&D em território nacional.

Embora os países mais desenvolvidos defendam o livre-comércio, paradoxalmente, eles exercem os maiores controles visando manter suas supremacias de poder político no sistema internacional e de tecnologia de suas empresas, bem como a dependência tecnológica dos países periféricos na área de defesa. Entretanto, esses controles afetam outros setores, mediante o uso cirúrgico de subterfúgios como o da exploração do conceito da dualidade tecnológica, conceito atribuído a tecnologias que podem ser utilizadas tanto em aplicações civis quanto em sistemas militares.

Para os países de industrialização tardia, a dualidade é importante para estabelecer cooperações visando o desenvolvimento tecnológico e conferir sustentabilidade às empresas que labutam no mercado de defesa. Por outro lado, os países desenvolvidos podem utilizá-la para ensejar a prática de cerceamento. Alegando possível uso em artefatos militares, o acesso a tecnologias importantes para auferir inovações voltadas ao mercado convencional pode ser prejudicado. Assim, os países proeminentes buscam perpetuar suas hegemonias no campo industrial ao dificultarem o progresso de países emergentes em setores como sistemas de navegação, satélites, sistemas de rastreamento, tecnologias inerentes ao ciclo do combustível nuclear, sistemas de comunicações, sistemas de detecção e de sensoriamento, sistemas aeronáuticos, circuitos integrados, além de muitos outros nos quais a aplicação militar é mais evidente.

Em virtude dos fatos mencionados, torna-se fundamental para o Brasil, um país de dimensões continentais e de riquezas inigualáveis, investir no desenvolvimento de tecnologias críticas essenciais não apenas para obter de forma autônoma as suas capacidades militares, mas também para o seu desenvolvimento científico e tecnológico.

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Sobre o autor:

General de Brigada Juraci Ferreira Galdino Promovido ao posto atual em 25 NOV 20. Natural de Malta, Paraíba. Filho de José Galdino Fernandes e de Aureni de Freitas Fernandes. Graduado em Engenharia Eletrônica (UFPB, 1991). Declarado 1º Ten do QEM, em 1992. Doutor em Engenharia Elétrica (UFCG, 2002).

Possui os cursos de Direção para Engenheiros Militares (ECEME, 2010) e de Altos Estudos de Política e Estratégia (ESG, 2017). Dentre outras, exerceu as funções de Chefe da AGITEC e Chefe do CAEx. É o Comandante do IME, desde 28 ABR 21. Possui cerca de 130 publicações científicas; foi jovem pesquisador do estado do Rio de Janeiro e do CNPq. Possui a Medalha Militar de Ouro, a Medalha do Pacificador, a Medalha do Mérito Judiciário Militar e a Ordem do Mérito Militar no Grau Comendador.  

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