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Continuamos em rota de colisão

Humberto Maia Junior, Leonel Rocha e Letícia Fenil

Uma das maiores tragédias da aviação comercial brasileira, a queda do Boeing da Gol que fazia o voo 1907 em setembro de 2006, recebeu na semana passada dois aguardados julgamentos da Justiça. Na segunda-feira 16, os pilotos americanos do jato Legacy que se chocou com o avião sobre a Amazônia foram condenados a quatro anos e quatro meses de prisão. A pena dada a Joseph Lepore e Jan Paul Paladino foi substituída por serviços comunitários, que poderão ser prestados nos Estados Unidos, onde ambos vivem. Três dias depois, o juiz federal Murilo Mendes, de Sinop, Mato Grosso, condenou o controlador Lucivando Tiburcio a três anos e dois meses de prisão por imperícia. No mesmo julgamento, o controlador de tráfego aéreo e ex-sargento da Aeronáutica Jomarcelo Fernandes dos Santos foi absolvido da acusação de negligência. 

CULPADOS

Os pilotos Joseph Lepore e Jan Paladino. Os dois foram condenados pela queda do voo 1907, mas um relatório do Decea mostra que os problemas da época do acidente persistem.

As decisões significam pouco para o delicado setor de controle de tráfego aéreo brasileiro. A Justiça considerou que os responsáveis pelo acidente, em que 154 pessoas morreram, não tiveram intenção de matar. Foram apenas negligentes dentro de uma cadeia de comando que se mostrou permeável ao erro e à displicência. Quase cinco anos depois, há motivos para acreditar que um desastre semelhante possa se repetir. O código do voo Manaus-Brasília-Rio de Janeiro foi alterado para 1587. Mas um relatório confidencial da Aeronáutica, obtido por ÉPOCA, mostra que pouco mudou na estrutura brasileira responsável por garantir a segurança de passageiros e tripulações nos céus do país.

“Dois incidentes de tráfego aéreo ocorreram em menos de dez minutos” – Luis Nascimento, coronel-aviador

Em 2006, as investigações mostraram que o controle de tráfego sofria de falta de profissionais, que ficavam sobrecarregados. Havia falhas nos radares espalhados pelo país e dificuldade de comunicação com os pilotos dos aviões. No documento de duas páginas, produzido no dia 21 de outubro do ano passado pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), o coronel-aviador Luiz Ricardo de Souza Nascimento relata sua preocupação com os mesmos problemas. O texto afirma que, dias antes, quatro aviões quase haviam se chocado quando sobrevoavam o aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Foram dois incidentes em menos de dez minutos envolvendo os mesmos controladores. “Recentemente, 02 (dois) incidentes de tráfego aéreo ocorreram numa das TMNA (terminal de Guarulhos) mais movimentadas do país em curto espaço de tempo, menos de 10 (dez) minutos, envolvendo os mesmos ATCO (controladores) operando com setores agrupados e número elevado de aeronaves, sendo que algumas delas executaram desvios”, diz o documento. Traduzido do jargão técnico, o texto afirma que, com muitos aviões para monitorar, os controladores não conseguiam dar conta do trabalho. Por causa disso, algumas das aeronaves tiveram de fazer manobras arriscadas para evitar um choque. Com a incapacidade técnica dos controladores de avisar a todos, os pilotos fizeram suas manobras graças a um sistema eletrônico de alerta anticolisão. Chamado de TCAS, esse recurso obriga o piloto a fazer uma movimentação evasiva em situações de risco.

Na rotina de trabalho, cada controlador orienta um grupo com cerca de 14 aeronaves, chamado de “setor”. Quando esse grupo cresce demais, outro controlador é chamado para ajudar, numa operação conhecida como “desagrupamento de setores”. Naquele dia de outubro de 2010, após o primeiro incidente, novos controladores foram convocados com urgência para fazer o “desagrupamento”, ou seja, dividir o trabalho nas operações de pousos e decolagens. Mas não chegaram a tempo de evitar o segundo incidente. Por sorte, nada de mais grave aconteceu.

O relatório do Decea, órgão da Aeronáutica, diz ainda que nem mesmo um dos mais antigos e comuns sistemas de comunicação entre o avião e a torre de controle, feito por rádio VHF, funcionou. “Uma das aeronaves envolvidas não conseguiu sequer manter comunicação de rádio com o APP (controle de aproximação) devido ao congestionamento da frequência VHF”, diz. No relatório, o coronel Nascimento pede ao Decea que tome providências. “O assunto ora discutido é muito sério e exige o empenho pessoal dos chefes do Sipacea (Sistema de Prevenção de Acidentes Aéreos) e dos órgãos ATC (de controle aéreo), no sentido de serem implantadas medidas mitigadoras, visando evitar possíveis acontecimentos irreversíveis em consequências danosas.” Procurada por ÉPOCA para comentar o documento, a Aeronáutica não respondeu até o fechamento desta edição.

Em 2008, o órgão da Aeronáutica responsável por investigar e prevenir acidentes aéreos (Cenipa) concluiu um relatório com sugestões para evitar as falhas que levaram à colisão do avião da Gol com o jato executivo Legacy. Elas incluíam a adoção de medidas que assegurem que os controladores tenham domínio do inglês (para facilitar a comunicação com pilotos estrangeiros), investimento na compra de equipamentos e softwares para o monitoramento das aeronaves e mais treinamento aos controladores. Mudanças foram feitas, algumas para pior. Houve melhorias em relação a 2006, mas o tráfego aéreo de hoje é mais complexo. “Temos um cenário pronto para a ocorrência de novos problemas”, diz Edleuzo Cavalcante, presidente da Associação Brasileira de Controladores de Tráfego Aéreo (ABCTA). Segundo Cavalcante, após o acidente com o voo da Gol, o Decea investiu na modernização e na troca de equipamentos, mas pouco foi investido em pessoal. O Curso de Formação de Sargentos (CFS), da Especialidade de Controle de Tráfego Aéreo (BCT), forma cerca de 150 alunos por ano. Segundo a associação, o número é suficiente apenas para repor os controladores que abandonam a profissão.

Cavalcante afirma ainda que hoje os controladores trabalham mais. Em 2006, o limite estabelecido era de 144 horas mensais. “Agora, na prática, estão trabalhando 170 horas, mais uma escala de 24 horas em que o controlador militar tem de ficar armado de plantão.” Nas escalas de trabalho de oito horas seguidas, em tese o controlador deve permanecer no máximo duas horas na frente do console do radar, com descanso de uma hora. Mais tempo que isso levaria à fadiga mental. O controlador acompanha até 14 aeronaves, e cada uma delas tem várias informações – como rota, altitude, localização, velocidade – que aparecem em letras pequenas. “O cansaço dificulta a visualização de situações de risco”, diz Cavalcante. “Uns 90% trabalham hoje até quatro horas seguidas.”

Para uma situação mais delicada, o ideal seria ter à disposição profissionais experientes e com condições de lidar com casos em que há pouca margem para erro. Isso ocorre? Não, segundo um controlador que atuou por 15 anos na formação de pessoal. “Entre os que estão em atividade, 70% a 80% têm até quatro anos de formado.” Ele diz que até recém-formados, com dois anos de experiência, estão atuando em cargos de supervisão “que antes eram ocupados por controladores com no mínimo dez anos de experiência”. Embora a duração do curso de formação tenha subido de um ano e meio para dois anos, os alunos perderam horas em treinamento e simulação. Segundo a associação de controladores, o tempo exigido de estágio prático caiu de 300 para 60 horas. Desde o acidente da Gol, aumentou o número de controladores formados, mas não a qualidade. E a tendência é piorar, porque os experientes vão se aposentar”, afirma Leo Frankel, piloto da Gol com 40 anos de experiência.

Outra falha importante na formação é o domínio do inglês. Em 2007, a Organização Internacional de Aviação Civil (Icao, na sigla em inglês) fez uma auditoria no Brasil e constatou que apenas 5% dos controladores tinham nível 4 de inglês – o mínimo aceitável –, em uma escala que vai de 1 a 6. “A força aérea prometeu elevar para 80% o número de controladores em nível 4 até 2014 (ano da Copa do Mundo, quando vai aumentar o fluxo de aviões estrangeiros pousando no Brasil)”, diz o ex-instrutor de controle de tráfego. No relatório sobre o acidente com o Boeing, o Cenipa recomendou à ExcelAire, empresa de táxi-aéreo americana que veio ao país buscar o Legacy envolvido na colisão, que no futuro entregue essa tarefa a pilotos com conhecimento das regras de voo brasileiras. Mas o descumprimento da recomendação não prevê punição.

Jorge Barros, ex-perito do Cenipa, diz que a busca por mais segurança está sendo feita pela redução do espaço aéreo. Ele afirma que, em 2007, para diminuir a sobrecarga dos controladores, o Decea limitou a circulação de aviões pequenos, que dependem do voo sem instrumentos, a um teto de 7.500 pés – distante dos voos de carreira. Não é o caso de jatos executivos como o Legacy, cuja faixa de tráfego continua a mesma. “Normas internacionais permitem aviões que voam no visual a alcançar 14.500 pés. A mudança é típica de quem não tem controladores suficientes.” A multa para quem desobedece à nova regra varia de R$ 5 mil a R$ 20 mil.

A rota que o Boeing da Gol percorria, entre Manaus e Brasília, é conhecida por ter áreas onde a varredura é falha. Segundo Barros, dos cerca de 150 radares no país, 20% estão fora de operação. “A manutenção é cara e difícil, porque alguns radares estão em pontos de difícil acesso, e o Decea não tem dinheiro para mantê-los”, afirma. Para diminuir o descontrole no espaço aéreo brasileiro, o especialista sugere investir na tecnologia ADS-B, sistema parecido com o GPS que detecta aeronaves em tempo real. “Desde 2006, todos os aviões americanos têm essa tecnologia. Na Europa, a implantação deverá estar concluída em 2012. O Brasil engatinha.” A tecnologia permite ao piloto saber a posição de outros aviões, o que diminuiria a dependência dos controladores aéreos. Segundo Barros, a adoção desse sistema pelo Brasil poderia reduzir em 20% o número de controladores de voo necessário para que novas tragédias não aconteçam.

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