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A encruzilhada entre a civilização e a barbárie

Eduardo de Oliveira Fernandes

Tenente-Coronel da PMESP, Doutor, Mestre e Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES), especialista em Ciências Sociais, Bacharel em Direito, professor de Ciência Política e Políticas Públicas da Academia de Polícia Militar do Barro Branco. É autor do livro ”As Ações terroristas do crime organizado”, São Paulo, Livrus, 2012
edofer@uol.com.br

 
           
Certa feita, ouvi de um interlocutor a seguinte expressão: “O Estado moderno é o crime organizado que deu certo”.
           
Esta afirmação causou-me espanto e incredulidade, posto que, desde cedo, soube que o Estado era o detentor do monopólio do uso da força e a polícia, por seu turno, a instituição responsável pela missão de executar a prática dessa “violência legítima”.
           
Recentemente, no início de 2017, a população brasileira, em primeira instância, e a comunidade internacional, em segundo plano, revelaram-se atônitas diante do grau de virulência e violência expressadas na execução de mais de um centena de presos por facções rivais no interior de presídios localizados nos estados do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte.
           
A crise no sistema prisional seria uma mera exceção à regra se a percepção da violência e a quantificação dos homicídios no Brasil não apresentassem a taxa de 55.000 vítimas ao ano.
           
Porém, de todo modo, as decapitações ao estilo dos carteis mexicanos e do Estado Islâmico, esquartejamentos e destruições dos presídios, fruto da guerra entre facções criminosas, realmente, provocaram certa e determinada comoção social, além de exacerbações políticas.
           
Diante dessas premissas básicas, ouso, então, inverter a ordem lógica da frase com que iniciei este ensaio e arrisco afirmar, de forma diametralmente oposta, que “o crime organizado é o Estado Moderno que não deu certo”, uma vez que é nítida a relativização do monopólio do uso da força pelo Estado e, ao mesmo tempo, visível o poder de facções criminosas como o Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), Família do Norte (FDN) e Sindicato do RN (dissidência do PCC e também conhecido como Sindicato do Crime), apenas para referenciar aquelas que se encontram em maior evidência na mídia momentaneamente.
           
Em outro diapasão, para não me ater apenas ao espectro do Estado e o seu notório caráter disfuncional demonstrado no enfrentamento do poder das facções criminosas intramuros dos presídios, desloco-me para o eixo do “mercado” a fim de interpretar pragmaticamente o que realmente representa a recente guerra desses grupos criminosos.
           
O embate das facções no interior das prisões é o espelho real da busca pela conquista de novos territórios e mercados do tráfico de drogas, porém dentro de uma lógica embrutecida em que execuções e exposição de cabeças humanas decapitadas são apresentadas não apenas como troféus e louros de vitória, mas como códigos de comunicação de quem exerce a força, o poder e o terror fundante em determinados territórios.
           
Seria, em tese, o exercício de um exemplo distorcido de capitalismo selvagem e primitivo, sem regramento anterior e com a estreita comunhão dos elementos simbólicos e reais desprovidos de qualquer relativismo ou eufemismo, cujo componente principal é a ideia de que não existe a substituição tácita de um player por outro melhor preparado para controlar o mercado, mas simplesmente a eliminação física e violenta da concorrência, reforçando uma hipérbole de terror.
           
Dessa forma, pode-se observar que o PCC, inicialmente, assenhorou-se de parte dos territórios do tráfico de drogas no Sul e Sudeste do país, passando pelo Paraguai e deslocando-se rumo ao Norte, antiga área de controle e influência do CV e, consequentemente, de suas franquias locais, ou seja, a FDN e o Sindicato do RN, o que gerou prejuízos e ameaças para todos os players anteriormente instalados, vislumbrando, inclusive, a ocupação do futuro espólio dos mercados transnacionais e transfronteiriços da narcoguerilha intitulada de Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), incrustada ao longo de uma fronteira seca de dimensões continentais, caso realmente ocorra a deposição de armas desta última.
           
Essa “marcha para o Norte” rompeu o “acordo de criminosos” – recuso-me peremptoriamente a usar a expressão “acordo de cavalheiros”- na distribuição e controle do movimento do tráfico de drogas no atacado e varejo das esquinas e “bocas de fumo”, refletindo-se, de maneira selvagem e bruta, no interior dos presídios, onde se acham, sob a custódia do Estado, inúmeras lideranças criminosas que decidiram pelo confronto sanguinário e regras próprias de justiçamento e disputa de espaço, percorrendo a via-crúcis daquilo que o constitucionalista italiano Santi Romano, no início do século passado, ao referir-se às máfias, assinalou como um “sistema jurídico paralelo ao Estado, próprio”.
           
Encerro, portanto, este ensaio com outra expressão ouvida no passado em que o emissor vaticinou que “na selva, vence o mais forte, e na cidade, vence o mais organizado”.
           
Na condição de mero receptor e intérprete deste derradeiro ensinamento, avento a hipótese de que o PCC e o CV, ao transformarem os presídios em selvas, lutam para serem os mais fortes, restando claro, porém, que para prosperarem nas cidades –lócus do mercado de drogas – muitos confrontos ocorrerão antes de, propriamente, tornarem-se os mais organizados e, dessa forma, enfraquecendo o nosso ideal de civilização e perpetuando a barbárie.

 

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