De onde tirar os recursos para uma mobilização econômica nacional

Lorenzo Carrasco

MSIa

Publicamos a seguir um artigo do Dr. Jonathan Tennenbaum, que tem dedicado grande parte de sua vida ao estudo da ciência da economia física. A Capax Dei Editora encomendou ao autor a elaboração de um livro sob o título Economia Física para o desenvolvimento nacional, publicado em 2016, cuja atualidade se fez mais vigente com a eclosão da pandemia de covid-19. Este evento provocou uma virtual nova guerra mundial, claramente com características distintas das das duas grandes guerras do século passado, mas com efeitos na economia e na organização social bastante semelhantes ou, quiçá, ainda piores, pela inusitada desorganização global provocada por eles.

A pandemia desmontou inapelavelmente toda a utopia da globalização, com a sua insidiosa ideia subjacente da emergência de uma estrutura de “governo mundial”. Todas as instituições do pós-guerra, assim como os esforços de integração regional, estão sendo questionados, pela ausência do princípio de solidariedade entre muitas nações, em especial, e ironicamente, as mais desenvolvidas. A carência de respeito ao Bem Comum nos processos decisórios políticos e econômicos em âmbito global, nos quais prevalecem o egoísmo institucionalizado e um consumismo exacerbado, levam à necessidade da reconstrução da ordem política e econômica global.

O evidente declínio estratégico dos EUA, escancarado pela tétrica resposta do país mais poderoso do mundo à pandemia e sem a necessidade de um conflito bélico na substituição de um poder hegemônico, destrói um dos princípios que tem regido a dinâmica histórica desde o antigo mundo grego, a chamada “armadilha de Tucídides”, descrita no seu clássico livro sobre a Guerra do Peloponeso. Pari passu, o mundo financeiro mundial baseado no sistema de bancos centrais independentes do poder político está cambaleando sob o efeito da embriaguez de bolhas financeira especulativas, novamente alimentadas pelas proverbiais injeções de liquidez dos bancos centrais (as famigeradas “facilitações quantitativas”), que, em vez de apoiar as atividades produtivas da economia real, são direcionadas a toda sorte de instrumentos financeiros especulativos. 

O mundo pós-pandemia terá que ser bem diferente. Passada a emergência sanitária, após meses de inatividade econômica, o mundo terá que reconstruir de imediato, não as cidades, fábricas e empresas destruídas pelas bombas, como nos conflitos mundiais anteriores, mas os vasos comunicantes da produção e distribuição dos bens físicos, as relações de solidariedade dentro das sociedades e entre as nações. As alegadas limitações de recursos financeiros para as novas exigências de sobrevivência não passam de embriaguez resultante das insidiosas formulações ideológicas neoliberais, que persistem nas mentes daqueles cujos conhecimentos econômicos deixaram de ser válidos.

Para o Brasil, evidentemente, a resposta necessária não é emitir créditos a torto e a direito, por intermédio das redes de corrupção política existentes, das quais o sistema financeiro e bancário é parte integrante fundamental, mas da administração dos novos recursos por um “gabinete de guerra” dentro de uma mobilização total nacional, que harmonize os vastos recursos humanos disponíveis – grande parte dos quais inaproveitados ou subaproveitados – com as enormes capacidades industriais e tecnológicas nacionais.

Definitivamente, a reconstrução da economia brasileira não passa pelos “mercados” e, por conseguinte, a atual equipe econômica do governo federal nada teria a fazer nos novos tempos, por absoluta incompatibilidade com eles e seus requisitos.

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Mobilização econômica já!

Jonathan Tennenbaum

de Berlim

Em certas ocasiões, uma nação precisa lançar um plano de mobilização econômica em grande escala. Em geral, isto ocorre em tempos de guerra ou preparação para um possível conflito, de modo a expandir rapidamente a produção de armamentos e outros itens necessários à capacidade bélica do país. Hoje, muitas nações do mundo se confrontam com a necessidade de um tipo diferente de mobilização, para reverter o acelerado processo de desintegração econômica, social e política, que ameaça a própria existência das sociedades civilizadas. Em vez de armas, nações como o Brasil necessitam de milhões de novos empregos decentemente remunerados.

Elas necessitam de transformar as suas depauperadas e degradadas áreas urbanas e rurais em lugares onde as pessoas possam viver com dignidade e saúde, moradias modernas, saneamento, escolas, hospitais, transporte público eficiente e outros serviços essenciais. Elas precisam modernizar e expandir as suas infraestruturas vitais, utilizando as tecnologias do século XXI, além de aprimorar rapidamente os níveis educacionais da população, inclusive com uma drástica expansão do acesso ao ensino superior gratuito. Tudo isso requer a mobilização da força de trabalho e dos recursos produtivos de cada país, de uma maneira sistemática.

Em contraste com o que ocorre com mais frequência em tempos de guerra, a mobilização econômica necessária hoje não requer medidas ditatoriais, em um sentido político. No entanto, ela requer que os países sejam libertados das garras das políticas neoliberais, que têm ensejado uma brutal pilhagem das nações em nome da “liberdade dos mercados”. Acima de tudo, isto implica em mudar a maneira como os governos, empresários e a população pensam a economia. Implica em lançar uma discussão pública séria, para se chegar a um nível suficiente de consenso político sobre o que deve ser feito.

A comparação com uma mobilização militar é instrutiva por várias razões. O fato de que a sobrevivência e o futuro do país estão em jogo torna mais urgentemente necessário que se pense claramente, se deixem de lado as ilusões e se concentrem nas prioridades, sem desperdiçar tempo e recursos preciosos em assuntos terciários. Isto força as pessoas a pensar em termos de interesses comuns, de se conquistar uma vitória para toda a sociedade, em vez de determinados grupos se empenharem em obter vantagens a à custa dos demais. Se uma mobilização econômica for adequadamente organizada, virtualmente todos serão “vencedores”. A prioridade principal não é redistribuir a riqueza existente, mas expandir rapidamente as riquezas reais da nação, assegurando, ao mesmo tempo, que a maior parte dos ganhos se destine à melhora dos reais níveis de vida, educação, saúde e emprego para as massas da população.

Talvez, o maior obstáculo para isso seja o fato de que, hoje, a maioria das pessoas pensa sobre economia e riquezas, principalmente, em termos de dinheiro. As pessoas tendem a pensar que a falta de dinheiro é a causa dos seus problemas econômicos: pouco dinheiro para investimentos, pouco dinheiro para consumo, dinheiro insuficiente para a educação, infraestrutura etc. Por sua vez, os políticos tentam aumentar a sua popularidade prometendo mais dinheiro para várias atividades, para os pobres ou, mesmo, para todo mundo.

Os debates econômicos se concentram nos preços, rendas, dívida, impostos, balanças comerciais, gastos públicos etc. De uma forma um tanto estúpida, o sucesso ou fracasso das políticas econômicas é avaliado de acordo com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) – medida enganosa baseada em preços de mercado, que não faz distinção entre, por exemplo, a produção de alimentos, e a renda derivada da especulação financeira ou da jogatina em cassinos. As pessoas tendem a esquecer que o dinheiro é apenas papel ou, na era das transações computadorizadas, apenas bits de informação.

Certamente, o dinheiro é um instrumento indispensável para as atividades econômicas; o dinheiro intermedia os milhões de trocas, acordos e decisões efetuados diariamente. Mas não podemos comer dinheiro; não podemos construir casas, fábricas ou aviões com dinheiro; o dinheiro não cura doenças ou educa pessoas. Obviamente, tudo isso precisa ser produzido, gerado, construído e mantido por processos físicos reais – processos de transformação de matéria e energia em agricultura, indústria, transportes e outras formas de atividades físicas, aplicações da ciência e da tecnologia e, acima de tudo, pelo trabalho físico e mental de seres humanos, cujas vidas e atividades dependem de um suprimento constante de bens e serviços. Isto é a economia real – a economia física –, em oposição ao mundo “virtual” das transações financeiras. Dificilmente, alguém discorda disto, mas, quando se trata da política e da vida cotidiana, as pessoas quase sempre pensam na economia em termos de dinheiro.

Suponhamos, por exemplo, que uma dada região necessite, com urgência, da construção de novas estradas, infraestrutura de saneamento, expansão da rede elétrica, escolas, instalações médicas etc. Alguém faz uma lista dos 20 projetos mais importantes. Todos concordam que são necessários há muito tempo. Então, qual é o problema? Uma resposta típica será: “Esses projetos são importantes e necessários, mas, infelizmente, não há dinheiro para eles.” Porém, sob a ótica da economia física, tal raciocínio é absurdo. O que se deveria perguntar, em primeiro lugar, são questões do gênero: “Temos força de trabalho disponível na região (ou país), para tocar esses projetos? Temos um suprimento adequado de materiais de construção? Dispomos dos equipamentos necessários? Se não, podemos produzi-los? Quanto tempo levará? Temos as tecnologias e o know-how necessários?”. E assim por diante.

Em outras palavras, o primeiro tema crucial é determinar se a região ou nação dispõe dos meios físicos (inclusive a força de trabalho) necessários para realizar os projetos, ao mesmo tempo em que mantém as demais atividades requeridas pela economia. Para se abordar essas questões de uma maneira adequada, necessitamos de uma visão panorâmica sobre a maneira com a qual a economia de uma nação como um todo produz e utiliza os seus recursos produtivos – o seu ciclo de investimentos físicos. Isto inclui a determinação de se a economia está gerando um “lucro físico” líquido, em termos da expansão dos recursos produtivos disponíveis para o desenvolvimento. Em caso negativo, isto é, se a economia estiver se contraindo em termos físicos reais, será preciso encontrar uma maneira de remediar a situação.

Naturalmente, neste contexto, é relevante se estimar os prováveis impactos de um dado conjunto de projetos sobre o potencial da economia para gerar um crescente lucro físico no futuro. Tais impactos dependem não apenas dos projetos em si, mas da trajetória geral de desenvolvimento da economia como um todo. A trajetória de desenvolvimento pode ser analisada em termos de mudanças nas relações insumo-produto entre os setores e subsetores da economia, em que um papel chave é desempenhado pela utilização de mão de obra e outros recursos produtivos, bem como o nível de tecnologia empregado.

Atualmente, todas as grandes nações do mundo dispõem de vastos recursos produtivos que estão ociosos ou mal-empregados. Com políticas econômicas adequadas, esses recursos poderiam ser transformados em um poderoso “combustível” para a recuperação e a expansão da economia real. O recurso produtivo número um é, naturalmente, a força de trabalho da nação, inclusive os que estão desempregados, subempregados ou integram a categoria de “desemprego oculto”. Nos chamados países em desenvolvimento, dezenas de milhões de pessoas vivem em favelas, sem habitação e saneamento decentes, com um grande número de adultos jovens desocupados. Por que não engajá-los na reconstrução das suas próprias vizinhanças e em outras tarefas urgentes requeridas pela sociedade? O foco central de qualquer mobilização econômica deve ser o aproveitamento do potencial criativo e produtivo da população da nação.

Esses tópicos são tratados em detalhe em meu livro A Economia Física do desenvolvimento nacional (Capax Dei Editora, 2016). O aspecto central a ser enfatizado é que as questões essenciais não têm nada a ver com dinheiro! Uma vez que um projeto tenha sido adequadamente elaborado e considerado factível e desejável em termos econômico-físicos, o financiamento é, essencialmente, uma questão técnica. Proporcionar um arcabouço geral adequado para solucionar o problema requer que o sistema financeiro e as políticas financeiras de uma nação sejam estritamente subordinadas aos requisitos da economia física. Isto, por sua vez, implica em se descartar os modelos neoliberais atualmente dominantes. Em meu livro, eu argumento – e proporciono exemplos históricos de várias nações avançadas – que qualquer trajetória de desenvolvimento econômico, que seja viável em termos físicos, tecnológicos e de recursos humanos, em princípio, pode ser financiada. Os obstáculos principais são de natureza política e subjetiva – o que nos leva de volta ao conceito de mobilização econômica.

A mobilização econômica dos EUA, na II Guerra Mundial, proporciona algumas lições importantes a respeito. Recorde-se que, de um ponto de vista econômico, financeiro e social, os EUA se encontravam em condições bastante ruins, antes da mobilização. A política do chamado New Deal havia ajudado a superar alguns dos piores efeitos da Grande Depressão, mas a recuperação econômica se arrastava. De fato, efetivamente, a Grande Depressão só terminou com a mobilização para a guerra. Em 1935, Eleanor Roosevelt, esposa do presidente Franklin Roosevelt, descreveu a situação dos jovens no país de uma maneira que soa familiar em muitas nações de hoje: “Eu vivo um terror real quando penso que podemos estar perdendo essa geração. Nós temos que trazer esses jovens para a vida ativa das comunidades e fazer com que eles sintam que são necessários.” Houve uma severa recessão em 1937-38. Em 1939, o desemprego oficial ainda superava os 17% e a indústria operava apenas 72% da sua capacidade. A renda nacional e os índices de produção agrícola e industrial ainda eram inferiores aos de antes da Depressão.

Essa situação precária persistiu até o poderoso choque deflagrado pelo ataque japonês à frota estadunidense, em Pearl Harbor, Havaí, em 7 de dezembro de 1941. O choque, seguido pela declaração de guerra contra o Japão e a Alemanha, transformou radicalmente a atitude subjetiva da população, lançando as bases para uma das maiores mobilizações econômicas da História. “Inimigos poderosos devem ser combatidos e superados em produção”, disse ao Congresso o presidente Roosevelt, menos de um mês após Pearl Harbor. “Não é suficiente produzir apenas alguns aviões a mais, alguns tanques a mais, alguns canhões a mais, alguns navios a mais, que possam ser lançados contra os nossos inimigos. Nós devemos superá-los em produção de forma esmagadora, de modo que não haja dúvida sobre a nossa capacidade de proporcionar uma superioridade esmagadora de equipamentos, em qualquer teatro da guerra mundial”, disse ele.

A mobilização econômica foi bem organizada, seguindo os princípios da economia física, e se beneficiou de uma estreita simbiose entre o governo e a indústria privada inovadora. No período que se seguiu até o fim da guerra, em 1945, a produção total de bens manufaturados nos EUA aumentou em 300%. A produtividade do trabalho disparou. Um papel crucial foi desempenhado pela introdução generalizada de novos bens de capital na indústria, novos métodos produtivos e um eficiente sistema de disseminação de informações e tecnologia. Do ângulo subjetivo, a mobilização de guerra não enfraqueceu a indústria civil; ao contrário, lançou as bases para a vasta expansão econômica ocorrida no país, depois do conflito.

Atualmente, os choques gerados em todo o mundo pela crise que se aprofunda proporcionam uma oportunidade singular para que as nações mobilizem as suas economias, para deslanchar as energias criativas da população e melhorem rapidamente as condições de vida objetivas e subjetivas das pessoas, com base no seu próprio trabalho. Esta será uma mobilização para a paz, em vez de para a guerra – uma mobilização para reverter a espiral descendente de desintegração social, econômica e política que afeta hoje grande parte do planeta.

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