“O mundo vive uma nova Guerra Fria”

A retirada do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês) anunciada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, no último fim de semana (20/10) pode ser sinal da irrelevância atual de pactos de desarmamento nuclear firmados no fim da Guerra Fria, avalia o russo Pavel Felgenhauer, analista militar e político.

Para o especialista independente baseado em Moscou, a situação mundial atual difere totalmente do fim da Guerra Fria, em que pactos como o INF – firmado entre EUA e a ex-União Soviética para reduzir arsenais nucleares – foram criados. É por isso que esses acordos não espelham mais o quadro de uma "nova Guerra Fria" que se vive no mundo atualmente, diz.

Felgenhauer afirma ainda que a Rússia está pronta para usar mísseis desenvolvidos – mas ainda não testados com lançadores de solo – se o INF realmente acabar. 

DW: Quão séria é para a segurança global a decisão dos Estados Unidos de sair do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF)? Há uma nova corrida armamentista à espreita?

Pavel Felgenhauer: É como voltar a 1983. Naquela época, parecia que uma guerra nuclear podia começar a qualquer momento – e podia mesmo. Estamos mais ou menos de volta à estaca zero nesse assunto.

Esses tratados [o INF e outros acordos de desarmamento nuclear] surgiram no final da Guerra Fria e criaram um quadro legal para a situação que se instalou após o fim do conflito, depois que o regime comunista entrou em colapso na Rússia e depois que o Pacto de Varsóvia foi extinto.

Agora, temos uma nova Guerra Fria. Então, os tratados que acabaram com a anterior são irrelevantes, porque correspondem a uma situação mundial totalmente diferente. Isso significa que, provavelmente, era inevitável que esses acordos fossem por água abaixo.

Os Estados Unidos indicaram que considerariam renegociar o tratado se ele fosse expandido para incluir a China. É uma opção realista?

[Vladimir] Putin falou nisso publicamente em outubro de 2007, dizendo que a Rússia abandonaria o tratado se os EUA não ajudassem a torná-lo internacional, já que a Rússia e os Estados Unidos não possuem esses mísseis – mas a China, sim. Agora, o mesmo pretexto está sendo usado pelos americanos com a China.

Dos mísseis chineses, 90% podem ser agrupados na classificação do INF. Portanto, se eles aderirem ao tratado, terão de destruir 90% de seus mísseis – o que se recusaram e vão se recusar a fazer. Então, essa não é uma opção.

A Rússia tem interesse num novo acordo INF?

Num futuro imediato, os EUA não têm nada a ganhar do ponto de vista militar ao anular o INF – mas a Rússia tem muito a ganhar. Apesar de não terem sido muitos, a Rússia desenvolveu e, aparentemente, instalou mísseis de cruzeiro baseados em sistemas lançadores modificados, ainda que não tenham sido testados por lançadores em solo. Testamos [modificação de mísseis] e implementamos esse sistema, e estamos prontos para instalá-lo assim que o INF sair de circulação.

Os americanos não têm nada para implementar que seja proibido pelo tratado. No futuro, os Estados Unidos poderiam começar a desenvolver mísseis se o INF acabar, mas isso vai levar anos para se concretizar.

A Rússia já instala o mesmo tipo de míssil em fragatas, cruzeiros, corvetas e submarinos, mas se o INF acabar teremos a possibilidade de instalá-los em caminhões lançadores, e estes são bem mais baratos que uma fragata, e mais fáceis de esconder. Faz muito sentido para a Rússia abandonar o INF. Putin e generais russos vêm criticando o acordo desde 2007.

O presidente americano, Donald Trump, fez outro favor ao presidente russo, Vladimir Putin, ao assumir a culpa por denunciar o INF.

Tratado INF abriu caminho para o fim da Guerra Fria no passado

Para o presidente russo, Vladimir Putin, a situação deve parecer um déjà-vu: não é a primeira vez que um presidente republicano dos EUA anuncia a saída de um importante tratado sobre controle de armamentos, assinado entre os dois países.

Em dezembro de 2001, ele vivenciou coisa semelhante quando George W. Bush anunciou a saída unilateral do Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM). Nele, a antiga União Soviética e os EUA se comprometeram em 1972, em plena Guerra Fria, a reduzir drasticamente seus arsenais de sistemas antimísseis.

Após o anúncio de Bush, Putin falou na época de um erro, mas também afirmou: "A decisão do presidente dos EUA não representa nenhuma ameaça à segurança nacional da Federação Russa." E, assim, apesar da saída unilateral americana, os dois países encolheram seus arsenais bélicos.

Menos de 17 anos depois, é a vez de Donald Trump anunciar a saída dos Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF). Ainda não se sabe se o possível fim desse tratado vai acontecer da mesma forma, sem grandes prejuízos.

Após os atentados do 11 de Setembro, os EUA passaram a perceber principalmente Iraque, Irã e outros países muçulmanos como uma ameaça. Por um certo período, a Rússia se tornou uma aliada, mas perdeu esse status desde a anexação da Crimeia, em 2014.

"O ambiente em que isso [saída do INF] ocorre é outro, completamente diferente", aponta Matthias Dembinski, especialista em assuntos de Otan e também de política externa europeia e de segurança na Fundação de Pesquisa da Paz e de Conflitos de Hessen (HSFK). Em sua opinião, o INF é um tratado de desarmamento inovador, e seu fim teria um grande impacto.

"O começo do fim do conflito Leste-Oeste"

Antes do Tratado INF, a Guerra Fria passava pela sua última fase acirrada: nos anos 1970, o Ocidente e o Leste desenvolveram e estacionaram na Europa novos mísseis de cruzeiro, que poderiam ter causado grande destruição. Situados na fronteira entre os dois blocos, os dois Estados alemães estariam entre os principais alvos no caso de um ataque, tanto de um lado como do outro.

Também por esse motivo, o movimento pacifista se fortaleceu na República Federal da Alemanha, colocando-se contra a Decisão Dupla da Otan que previa o estacionamento de mísseis americanos Pershing-II na Europa Ocidental. No fim de 1981, os protestos atingiram seu ápice, reunindo 300 mil pessoas nos jardins do parque Hofgarten em Bonn – pouco depois de os governos dos EUA e da antiga União Soviética começarem a negociar o desarmamento nuclear.

Só em 8 de dezembro de 1987, os esforços deram frutos, com a assinatura do Tratado INF por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachov em Washington. Nele, ambos os países se comprometeram a destruir e a não produzir mais sistemas de mísseis de curto e médio alcance, tanto nucleares como convencionais.

O INF está em vigor desde sua ratificação, em junho de 1988. Dembinski classifica o acordo de revolucionário "porque ele não apenas proporcionou o controle armamentista como também eliminou toda uma categoria de perigosos sistemas de mísseis". No total, ambos os países destruíram 2.692 mísseis – 846 por parte dos EUA, e 1.846 no lado soviético.

O acordo incluía todos os mísseis lançados de plataformas terrestres com um alcance entre 500 e 5.500 quilômetros. "Ele foi o começo do fim do conflito Leste-Oeste", explica Dembinski. "Foi o início de um processo que levou ao colapso da União Soviética e do Pacto de Varsóvia e não deve ser subestimado em seu significado material e simbólico."

Quem violou o tratado?

Para Dembinski, o momento do anúncio de Trump de sair do acordo também foi uma surpresa – mas o processo como um todo não foi. Em julho de 2014, o antecessor do atual presidente americano, Barack Obama, tornou público pela primeira vez que a Rússia estaria violando o acordo.

Aparentemente, os EUA tinham informações precisas sobre o novo desenvolvimento de Moscou com um alcance de 2.600 quilômetros e do míssil de cruzeiro russo do tipo 9M729 (SS-C-8, no código da Otan).

A Rússia admitiu a existência do programa de desenvolvimento, mas afirmou que os mísseis estavam em conformidade com o acordo. No início deste mês, os 28 Estados-membros da Otan aumentaram a pressão sobre a Rússia e solicitaram informações críveis do Kremlin.

Chama a atenção o fato de que Trump, que tenta reverter em grande parte a política de seu antecessor e é considerado favorável a Putin, queira finalizar a retirada americana do pacto. "Como os EUA criticaram tais violações durante muito tempo, ao longo de dois governos politicamente muito diferentes, e aparentemente estão de posse de informações muito boas, não se pode subestimar essa acusação [de violação do pacto por parte dos russos]", analisa Dembinski.

Parlamentares russos afirmam que os EUA não têm evidências de violação do acordo por parte de Moscou e rejeitam as alegações. A Rússia, por outro lado, faz acusações muito concretas contra os EUA. Em questão está um sistema de lançamento estacionado na Romênia para intercepção de foguetes.

Em princípio, trata-se de armas meramente defensivas que fazem parte do escudo de defesa antimísseis da Otan. No entanto, esses sistemas são semelhantes aos instalados nos navios da Marinha americana, que podem disparar ofensivos mísseis de cruzeiro. Assim, do ponto de vista russo, as instalações de lançamento já violam o tratado INF.

O que vem a seguir?

Trump afirmou que os EUA pretendem construir novos mísseis de médio alcance caso o INF não seja sucedido por outro acordo – que, além da Rússia, também envolveria a China. Assim, ele leva em conta também mudanças geopolíticas que há muito atenuaram a ordem mundial bipolar da Guerra Fria.

A China está emergindo cada vez mais como uma potência mundial na região do Pacífico, como no Mar da China Meridional, onde Pequim afirma cada vez mais sua soberania territorial sobre áreas reivindicadas também por países vizinhos.

Os EUA não querem ficar para trás quando se trata de equilibrar suas forças com os militares chineses. No entanto, devido ao Tratado INF, eles só têm a possibilidade de ameaçar com mísseis disparados do ar ou de submarinos.

Uma série de oficiais americanos de alto escalão não quer mais dispensar, sem justo motivo, mísseis de médio alcance e, portanto, pediram que se renunciasse ao INF ou que ele fosse expandido para países com a China ou também a Índia.

Assim, ao menos teoricamente, haveria uma chance de ampliar o tratado a vários parceiros. No entanto, também durante a Guerra Fria, várias tentativas de incluir outros países em tais pactos fracassaram, lembra Dembinski.

Segundo o especialista, atualmente também não há vontade política e existem grandes dificuldades: "É preciso envolver um série de países num acordo no qual eles não querem entrar."

O mais provável, então, é que os EUA e a Rússia venham a fazer uso de suas novas oportunidades de desenvolvimento militar: "Tenho medo de me deparar com uma nova corrida armamentista nuclear", afirma Dembinski.

É verdade que, graças a uma série de tratados desde o fim da Guerra Fria, os arsenais nucleares de ambas as superpotências foram consideravelmente reduzidos. Mas também o Tratado de Redução de Armas Estratégica (Start) vai expirar em 2020.

 

 

 

 

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