O Desafio da Transição Hidrotérmica


Leonam dos Santos Guimarães
Dr  Engenharia; Diretor de Planejamento,
Gestão e Meio Ambiente da Eletrobrás Eletronuclear
e membro do Grupo Permanente de Assessoria
do Diretor-Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

O sistema elétrico brasileiro é único pelo seu inédito nível de contribuição, superior a 85%, de fontes renováveis, num mundo dominado pelas energias fósseis, que representam quase 70% do total da eletricidade gerada globalmente. Isso ocorre graças ao intensivo aproveitamento do potencial hídrico nacional, iniciado desde os primórdios do século XX. Esse sistema, entretanto, vive hoje uma TRANSIÇÃO HIDROTÉRMICA.

O que é isso? É o que acontece quando a expansão de um sistema elétrico com predominância de fonte hídrica passa a requerer uma crescente contribuição térmica, seja por esgotamento do potencial ou por perda da capacidade de autorregulação devida à diminuição do volume de água armazenada nos reservatórios, ou ambos simultaneamente, como veremos ser o caso do Brasil.

A TRANSIÇÃO HIDROTÉRMICA começa a ocorrer no Brasil em 2000, quando a taxa de crescimento das térmicas passa a ser muito superior a taxa de crescimento das hídricas. Isso decorre do fato da taxa de crescimento do volume de água nos reservatórios ter passado a ser bastante inferior à taxa de crescimento de potência hídrica instalada a partir do final da década de 80. O Brasil percebeu isso de forma dolorosa em 2001, com uma crise de abastecimento devido à redução do nível dos reservatórios, sem haver disponibilidade de energia térmica complementar.

Desde então, a geração térmica vem sendo ampliada com sucesso, permitindo enfrentar, sem crise, o baixo nível dos reservatórios de 2012, que foi inferior ao verificado na crise de 2001. De 2000 a 2012, a contribuição da geração térmica ao Sistema Interligado Nacional (SIN) mais do que dobrou (6,26% em 2000, 15,74% em 2012).

Verificando-se a geração térmica mensal no SIN, nota-se que já existe a necessidade de uma pequena geração térmica na base – entre 2.000 e 3.000 MWmédios – representados pelo mínimo dos mínimos mensais. Aí reside o “nicho competitivo” da geração nuclear no Brasil, a mais barata térmica de base disponível. Note-se que esses 3.000 MWmédios são superiores à capacidade das usinas nucleares brasileiras, Angra 1 e Angra 2. Efeito disso são os sucessivos recordes de geração dessas usinas, que as colocam no topo do ranking mundial de desempenho nos últimos 3 anos.

Chegamos em 2012 com uma contribuição térmica de 16% e com a carga do SIN crescendo numa taxa de 4,6% ao ano. O último Plano Decenal de Energia divulgado, o PDE-2021, prevê um crescimento de apenas 5% no armazenamento hídrico do SIN, indicando que os efeitos da transição hidrotérmica se acelerarão nos próximos 10 anos.

A relação entre a energia armazenável máxima e a carga do SIN nesse período mostra uma contínua perda de autorregulação, requerendo aumento da contribuição térmica, tanto na base como na complementação. O Plano Nacional de Energia, PNE-2030, aponta que as perspectivas de expansão hídrica em mais longo prazo são limitadas, podendo-se afirmar que o potencial aproveitável estaria virtualmente esgotado ao final da década de 2020. Essa parcela do potencial viável de ser desenvolvida é da ordem de 150 a 180 GW, dos quais quase 100 já foi aproveitada, de um total teórico de 260 GW.

A evolução do sistema elétrico canadense nos últimos 50 anos guarda muitas similaridades com a situação do brasileiro nos últimos 15. A partir de uma contribuição de mais de 90% em 1960, a participação da hidroeletricidade no Canadá declinou de forma constante até 1990, se estabilizando em torno de 60%. No Canadá, o crescimento da geração térmica nuclear e a carvão operando na base, permitiu que as hidrelétricas passassem a fazer a regulação de demanda, garantida pelo gás natural na complementação térmica dessa regulação.

A estratégia básica da transição canadense foi o crescimento da geração térmica de base, nuclear e a carvão. No Brasil, a partir de 2000 verificou-se a expansão da geração térmica de base nuclear (com Angra 2) e da geração a gás e derivados de petróleo, inicialmente operando a fatores de capacidade reduzidos. Do final dessa década de 2000 até os dias atuais, tivemos uma expansão da geração hídrica a fio-d´água (com pequenos ou mesmo nenhum reservatório), biomassa e eólica. Desde então, porém, tem-se notado uma paulatina elevação do fator de capacidade do parque térmico nuclear e convencional, denotando uma crescente necessidade dessa geração na base de carga.

Dessa forma, a expansão a partir daí terá que ser baseada num mix de gás natural (dependendo da quantidade e custos de Pré-Sal), carvão mineral (dependendo das futuras tecnologias de carvão limpo) e nuclear (dependendo da aceitação pública).

As novas renováveis (biomassa, eólica e solar) e os programas de eficiência energética (que crescem em importância com aumento dos custos marginais de expansão) serão um complemento importante. Cabe aqui ressaltar a vantagem competitiva única do Brasil para as novas renováveis: sua complementaridade com as hídricas. Isso permite a estocagem de energia intermitente nos reservatórios a baixo custo, economizando água e ampliando a capacidade das hidrelétricas fazerem regulação da demanda.

Concluindo, a gestão segura de um sistema hidrotérmico passa pela geração de base hídrica (sustentada pela mínima energia natural afluente – ENA dos rios) e térmica (nuclear e carvão), associado a um seguimento de demanda feito pela energia hídrica em excesso da mínima ENA, garantido pela complementação térmica do gás natural, com a energia das novas renováveis sendo armazenada nas hídricas, o que amplia sua capacidade de seguimento carga.

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