Como é o dia a dia da construção da nova base brasileira no continente gelado

Sexta-feira em Ferraz. Essa é a denominação que os moradores eventuais e permanentes da Estação Antártica Comandante Ferraz, base que pertence ao Brasil, dão aos encontros de todas as sextas no refeitório. Passa das 20h e há salgadinhos, bebida e música. Diversão dentro das possibilidades do lugar isolado na Ilha do Rei George, na Península Keller.

Lá fora, o som é outro e nunca para: o barulho das escavadeiras e dos quatro guindastes. O verão está terminando, é preciso aproveitar cada instante para trabalhar na gigantesca obra da nova estação, iniciada há pouco mais de um ano e prevista para ser inaugurada entre 2019 e 2020.

Seis anos após o incêndio que destruiu grande parte da antiga estação, a visão que se tem do lugar não é mais a das “casinhas verdes”. Elas ainda estão lá, mas praticamente encobertas pelos gigantescos andaimes e o lodaçal que circunda tudo, descaracterizando a paisagem.

— Nada aqui é convencional — observa o engenheiro civil e capitão de fragata Newton Fagundes, que, ao lado do também engenheiro e capitão de corveta José Costa dos Santos, responde pela fiscalização da obra. — Pela dimensões, dificuldades, localização e complexidade é praticamente uma obra inédita que envolve soluções de engenharia para ventos de até 200 quilômetros por hora, solos congelados, baixas temperaturas, possibilidade de abalos sísmicos, entre outros.

São mais de 200 contêineres, pesando cada um em média 3,5 toneladas, montados sobre 54 pilares. Os 432 parafusos grandes usados na construção pesam cerca de seis quilos cada. Somados itens de todo tipo, chega-se a um total de 700 toneladas de aço estrutural de alta resistência e especial para baixas temperaturas.

A obra, executada pela estatal chinesa Ceiec (Corporação Chinesa de Importações e Exportações Eletrônicas) ao custo de US$ 99,6 milhões, foi projetada pelo escritório de arquitetura paranaense Estúdio 41. Quando a estação for concluída, o complexo poderá receber até 64 pessoas em uma área de cerca de 4,5 mil m², com laboratórios, alojamentos e espaços de convivência.

— A escolha do projeto foi por meio de um concurso, e isso foi fundamental. Chegamos à me- lhor solução, considerando que precisávamos suprir as necessidades de pesquisa e, ao mesmo tempo, reduzir ao mínimo o impacto da presença humana — explica a arquiteta Cristina Engel de Alvarez, professora na Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do laboratório de planejamento e projetos em áreas inóspitas.

Há quase 30 anos Cristina participa das pesquisas na estação. Ela é uma das pessoas mais familiarizadas com as três regras básicas para se trabalhar na Antártica: paciência, observação e oportunidade.

— As mudanças no clima e no tempo acontecem em minutos. Em um instante está tudo bem. Em outro, aparecem rajadas de vento de mais de cem quilômetros por hora. Precisamos de paciência e observação para saber qual é a hora de fazer algo e de quanto tempo dispomos — diz o meteorologista Diego Pedroso, primeiro-tenente da Marinha que, embarcado no navio Ary Rongel, é responsável pela previsão meteorológica fornecida à estação, ao outro navio, o Almirante Maximiano, e aos acampamentos onde ficam os pesquisadores.

Nesta temporada, a arquiteta, os 15 militares da Marinha do Grupo Base (que passam o ano inteiro na Antártica) e outros visitantes sentiram a agitação e as mudanças de costumes. Fora os 217 operários chineses que trabalham na obra e têm um alojamento e refeitórios próprios, há 40 funcionários da empresa Ceiec dividindo o espaço do chamado Módulo Antártico Emergencial (MAE). São tradutores e engenheiros que alteraram a rotina antes exclusivamente dos brasileiros.

ACOSTUMADOS AO FRIO

Quem acorda de madrugada e sai do alojamento pode dar de cara com alguma das jovens tradutoras chinesas com o rosto coberto por uma máscara de beleza de argila negra que, segundo elas, é perfeita para hidratar a pele. Há também marmanjos com calça de pijama estampada com o Homer Simpson.

— Vivemos um momento atípico. Acho que estamos todos, principalmente eles, tão longe de casa que não custa ser flexível e deixar as pessoas confortáveis — explica o chefe da estação, o capitão de fragata Marcelo Cristiano Gomes da Silva.

Do outro lado das instalações brasileiras, os operários chineses fazem o possível para se sentir confortáveis. No alojamento deles, funcionam refeitório, cozinha e espaço para lazer que inclui karaokê. A comida é trazida da China, junto aos contêineres e ao material necessário para montar a estação.

Nos carregamentos, toneladas de arroz, farinha e carne suína, quilos de chá, pepinos e cogumelos desidratados. Sem falar nos pacotes de cigarros: eles fumam muito, ao ar livre, indiferentes às baixas temperaturas. Todos foram recrutados na região chinesa de Harbin, na fronteira com a Rússia, que registra até 40 graus negativos no inverno.

Sábado em Ferraz. Passa das 20h. Não há salgadinhos, bebida e muito menos música. Moradores eventuais e permanentes são convocados a abandonar as instalações e aderir ao mutirão que está descarregando os “marfinites” (caixas plásticas) onde estão as provisões que vão alimentar os 15 militares e alguns chineses que passarão o inverno na base.

Está nevando, venta muito, mas o trabalho só para quando todas as caixas estiverem na estação. O som das máquinas continua sem cessar. Leia mais na página seguinte: ‘‘O dono do feijão, do arroz e dos temperos brasileiros”

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