Delicadas e competentes, mulheres da Marinha foram pioneiras no país

Os homens da Marinha precisaram se reeducar, há 30 anos. Com o ingresso de mulheres na Força, eles passaram a se comportar de maneira diferente. Era preciso falar mais baixo, treinar a gentileza e aprender a conviver com o sexo feminino no ambiente de trabalho, que passou a ser ainda mais organizado, segundo relatos de quem viveu essa mudança. Vestidas em seus uniformes bem-passados e superbrancos, com maquiagem leve e brincos discretos, as mulheres da Marinha orgulham-se de terem sido as pioneiras do militarismo feminino no país.

Há três décadas, a Marinha — em um gesto inédito para uma força militar no Brasil — permitiu que mulheres prestassem concurso para integrar o quadro de praças (nível técnico) e de oficiais (nível superior). No último dia 7, a primeira turma de mulheres militares completou 30 anos de casa. A autorização para elas ingressarem veio em 1980, mas as pioneiras começaram a trabalhar somente no ano seguinte. O então ministro da Marinha, almirante-de-esquadra Maximiniano Eduardo da Silva Fonseca, criou, por meio da Lei Federal nº 6.807, de 7 de julho de 1980, o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha. A seleção foi disputada. Havia 10.035 candidatas e somente 514 foram selecionadas.

À época, elas concorriam somente com pessoas do mesmo sexo. Com a extinção do corpo auxiliar, em 1997, a competição passou a ser de igual para igual com os homens. Os cargos disponíveis eram para as áreas técnica e administrativa. A intenção, porém, não se limitava a incentivar a diversidade. Era preciso livrar os homens do serviço entre paredes e papéis para que eles pudessem embarcar em navios e cumprir tarefas mais práticas.

As mulheres ocuparam seu espaço mais rápido do que o esperado e ultrapassaram os limites previstos. Hoje, elas podem chegar a altas patentes e cargos de chefia. Mas continuam sem poder comandar navios, porque a Escola Naval não as aceita. Essa é uma conquista para os próximos capítulos da história.

O primeiro treinamento feminino não foi fácil. Naquele tempo, havia uma grande expectativa a respeito do desempenho das mulheres dentro do militarismo. Muitos se perguntavam se elas iriam conseguir passar pelos rígidos treinamentos, viver a disciplina e todas as outras peculiaridades da vida não civil. A resposta veio rápido. A primeira turma de praças foi enviada à ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro. Era preciso levantar de madrugada, fazer esforços físicos antes do café da manhã e, eventualmente, fugir dos búfalos que caminhavam livremente no local.

Houve quem desistisse. A comandante Isabela Maria Luciano Guimarães, 47 anos, capitão-de-fragata da Marinha, não estava entre as dissidentes. “Confesso que em alguns momentos a gente se assustava. Mas a vontade de ficar foi maior. A mulher provou ser capaz de ocupar qualquer cargo. Nós dormimos em quartel, fazemos a ronda, trabalhamos armadas. Avançamos muito nos nossos direitos por provar competência.” A família de Isabela nunca se opôs ao ingresso dela na Marinha.

Mas nem todas as colegas da primeira turma tiveram a mesma facilidade. A hoje suboficial enfermeira da reserva remunerada Elizabeth Maria Beirão Rodrigues, 51 anos, precisou lutar contra o preconceito do pai, que era paraquedista do Exército, para poder realizar o sonho de ser da Marinha. “Vi um filme no qual havia mulheres marinheiras, quando era pequena. Era preto e branco, feito nos Estados Unidos. Me marcou muito. Eu dizia para o meu pai: ‘Quero ser da Marinha’. E ele respondia: ‘Isso é coisa de maria macho. Quartel é para homem’. E ameaçava me bater”, lembrou.

Mesmo diante dos apelos da família, Elizabeth não pensou duas vezes antes de se candidatar a uma vaga, na primeira seleção. “Quando vi o anúncio na TV, fui correndo, a pé, me inscrever. Quando ingressei, fiquei emocionada. Meu pai veio me dizer: ‘Militar não chora’. E então ele chorou”. Depois disso, Elizabeth serviu na Amazônia e cuidou de vítimas do Césio 137, no acidente com material radioativo, em Goiânia.

Surpresas
As dificuldades não paravam nos búfalos e no preconceito. Foi preciso driblar a vaidade. “A gente viu na propaganda aquelas mulheres com coques lindos. Quando chegamos lá, recebemos uma ordem: ‘Para a fila do barbeiro’. Foram 318 cortes de cabelo. Mas, no fim de semana seguinte, recebemos liberação para ir ao salão”, relatou a suboficial da reserva (RM1) Maria da Glória Baptista de Mello, 52 anos, que à época da inscrição para o concurso vivia no Guará. Hoje em dia, o treinamento é mais leve.

Boa parte das veteranas está em Brasília. A comandante Muiara Avellar, 53 anos, capitão-de-mar-e-guerra, é a mulher militar mais antiga da Marinha, na capital do país. É a terceira mais experiente — entre homens e mulheres — do quadro técnico. Ela se lembra do tempo em que ficou aquartelada, em treinamento. “Era preciso ficar longe da família. Deixei meu filho de sete meses, que nem caminhava ainda, para ficar 30 dias distante. Um dia, ele veio me visitar e entrou andando, de mãos dadas com o pai. Eu chorei. O aniversário de um ano dele foi comemorado com um bolinho, em uma visita.”

As mulheres que ingressaram recentemente agradecem pela abertura de caminho. A segundo-tenente Maria Almeida está na Marinha há 12 anos. “Eu não teria estruturado a minha vida, saído da minha cidade, no Ceará, se as mulheres não pudessem entrar na Marinha. Foi a oportunidade da minha vida”, disse. A brasiliense Silvia Grazielle da Silva, 26 anos, está há quatro na corporação e reconhece a importância das pioneiras. Ela é formada em biologia e faz pós-graduação, custeada pela Marinha.

Além de provar a todo momento competência, é preciso conciliar as múltiplas jornadas. A suboficial Marta Coelho de Morais, 43 anos, tem três filhos. A capitão-tenente Andréa Delduque, 43, é mãe de cinco. Como todo militar, elas não têm regalias. Cumprem turnos de mais de 12 horas, trabalham armadas e dão plantão em guaritas, se preciso for. “Nessas horas, um companheiro presente ajuda muito”, destacou Marta. Mais uma prova de que a vida fica mais fácil quando homens e mulheres caminham juntos, rumo à igualdade.

A bordo, na Esplanada
Muitos civis não sabem, mas, na Marinha, praças e oficiais usam uma linguagem específica, mesmo quando não estão no mar. Quando um colega procura o outro no Comando da Marinha, na Esplanada dos Ministérios, pergunta: “Fulano está a bordo?”. Se o colega já tiver saído do prédio, a resposta é: “Não. Ele já baixou terra”.

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