Israel continua fazendo mais do mesmo. Por quê?

Imagem panorâmica da destruição em Gaza (Foto cedida por Saher Madkour).

Eugênio Moretzsohn
Especialista em Inteligência
coronelmoretzsohn@gmail.com

Caros leitores.

Nesta publicação, pretendo explicar os motivos pelos quais modestamente entendo que as experientes IDF (Forças de Defesa de Israel) deveriam ter optado por estratégia diferente no ataque à Faixa de Gaza por terra, mar e ar, após os massivos bombardeios de Artilharia e Aviação paroquiais que precedem as ofensivas.

No texto, utilizei as expressões “atacante” e “defensor” referindo-me, respectivamente, às IDF e ao grupo terrorista Hamas.

Vamos lá?

O Manual de Campanha “Operações”, do Exército Brasileiro, preconiza:

“Os conflitos contemporâneos têm demonstrado que o ambiente urbano tende a ser o cenário de confronto provável entre uma força reconhecidamente superior e um oponente fraco. Essa tendência se justifica considerando:

  • A generalização de conflitos assimétricos.
  • A incidência dos recentes combates em áreas humanizadas.
  • A repercussão social em função das baixas de pessoal e danos colaterais.
  • As vantagens táticas oferecidas pelas edificações (destruídas) ao defensor.
  • As dificuldades, em todas as funções de combate, que se apresentam para os atacantes”.

Ref: Manual de Campanha EB20-MF-10.103 “Operações”, item 4.3.11

A doutrina militar de “Combate em Localidade” ensina que as áreas degradadas por bombardeios massivos transformam-se nas mais difíceis para o atacante, favorecendo o defensor pelas seguintes razões principais:

– Os destroços se acumulam nas vias de acesso adequadas para os blindados do atacante, retardando ou impedindo a progressão deles.

– As muitas áreas sombreadas, resultantes dos desmoronamentos parciais das estruturas, permitem que o defensor ocupe posições favoráveis às ações de emboscada contra o atacante.

– Os caçadores (snipers) e franco-atiradores do defensor se ocultam e se camuflam com facilidade dentre os destroços, sob os quais escolhem posições de tiro favoráveis.

A fotografia da cidade de Gaza acima (de poucos dias atrás) comprova essas afirmações.

Os blindados são imprescindíveis nesse tipo de operação urbana (inclusive no Rio de Janeiro, com o Caveirão da PM), por que:

  • Propiciam à Infantaria atacante a proteção de suas couraças, enquanto mantêm o defensor acuado pelas rajadas de suas armas.
  • Com o poder de fogo de seus canhões, destroem posições protegidas e ocupadas pelo defensor (pontos fortes).
  • Ultrapassam barricadas primárias montadas pelo defensor nas ruas, e abrem passagens nas edificações, facilitando o acesso à Infantaria atacante.
  • Possuem radares, sensores e equipamentos de comunicação importantes para o Comando & Controle da operação ofensiva.

Embora carreguem formidável capacidade de combate, mesmo os blindados israelenses modernos como os excelentes carros de combate Merkava (ou Merkabah) – Carruagem de Deus, em português – podem ser detidos pelo terreno desfavorável, tornando-os alvos fáceis para as RPG-7, armas antitanque de origem russa vendidas aos milhares para os países do Oriente Médio (assim como foram os fuzis AK-47).

Tropas blindadas israelenses alinhada próximas a Gaza

Os destroços civis pelas ruas não somente dificultam ou impedem o deslocamento dos blindados – também servem para canalizar sua progressão “conduzindo-os” para passagens previamente armadilhadas com minas terrestres, enterradas ou não.

As emboscadas são executadas de surpresa contra a Infantaria atacante por meio de inesperados e intensos disparos de fuzil, lançamentos de granadas de mão e de morteiros; após as rajadas, os defensores recuam habilmente por itinerários que reconheceram previamente, por conhecerem bem o terreno.

Ocultos dentre os destroços, disfarçando-se com recursos expeditos de camuflagem, os atiradores de precisão dos defensores representam perigo mortal para o atacante; suas qualidades individuais, somadas às características de seu armamento, os permitem abater alvos a distância, tornando muito difícil sua neutralização.

Além desses óbices principais de natureza tática, há outra questão dogmática (humanitária e política): na guerra, não devemos ter mortes inúteis – e os bombardeios pela Artilharia e pela Aviação, apesar dos alertas antecipados aos civis e da precisão dos tiros modernos, ainda causam muitas baixas desnecessárias, vitimando não-combatentes que servirão para a alimentar a propaganda nas diversas mídias, influenciando a Opinião Pública mundial, conforme está no texto do Manual de Operações, no início desta publicação.

Tive a oportunidade de estudar e ser instrutor da disciplina “Combate em Localidade”, e atesto que essa operação é tão ou mais difícil que o mais famoso e propalado pelo cinema, o combate nas selvas, confirmado pela elevada mortalidade das batalhas travadas entre ruínas, e os números a seguir não deixam dúvidas:

  • Jerusalém/Judeia (ano 70) – dos muitos cercos a Jerusalém, o dos romanos matou mais de 100 mil pessoas e destruiu a cidade durante sítio que durou 3 anos (1). Por curiosidade, o filme “Cruzada” relata outro momento, o da conquista da cidade por Saladino, líder curdo, em 1.187.
  • Massada/Israel (ano 73) – os últimos 900 judeus zelotes que a defendiam se jogaram do alto das muralhas, de braços dados, para não se entregarem às Legiões de Roma que sitiavam a fortaleza. O local é sagrado para os judeus e cerimoniosamente visitado pelos cadetes do Exército, os quais, naquelas ruínas, prestam o juramento de nunca se renderem aos inimigos (2).
  • Constantinopla/Império Bizantino (1453) – a capital do Império Romano do oriente caiu em 1453 sob ataque dos otomanos liderados por Maomé II, após o bombardeio de suas formidáveis muralhas pela Bombarda de Dardanelos, formidável canhão de 630 mm de calibre fabricado especialmente para aquele tipo de sítio. Não há dados confiáveis sobre o total de mortos no assalto à fortaleza bizantina; certamente, muitos milhares (3). A queda de Constantinopla marcou, pelos historiadores, a mudança da Idade Média para a Idade Moderna, desencadeou a corrida pelo Caminho Marítimo para as Índias e, em consequência, o ciclo dos Grandes Descobrimentos e o apogeu de Portugal e Espanha. Curiosamente, em 1462, Maomé II foi humilhado por Vlad Draculea quando tentou invadir a Valáquia – sim, o verdadeiro Conde Drácula colocou para correr os conquistadores de Constantinopla (4).
  • Leningrado / URSS (1941-1944) – na Segunda Guerra Mundial, o sítio a Leningrado pela Wehrmacht durou 900 dias e matou 1 milhão de pessoas, por bombardeio, fome e doenças, como o escorbuto. Houve muitos casos de canibalismo e necrofilia entre os abandonados habitantes (5).
  • Stalingrado/URSS (1942) – considerado por muitos como “a maior batalha da História das Guerras”, o cerco a Stalingrado custou à Wehrmacht 300 mil soldados; mas, o número de mortes total, incluindo os civis soviéticos e militares do Exército Vermelho, chegou a 2 milhões de almas (6).
  • Beirute/Líbano (1982) – as IDF sitiaram a capital e mais de 28 mil morreram, entre guerrilheiros palestinos e civis, mais de mil deles massacrados nos campos de refugiados de Sabra e Chatila (7).
  • Aleppo/Síria (2012) – a Guerra da Síria matou, em Aleppo, mais de 30 mil civis (8).

Por ter conseguido as duas qualificações (instrutor da disciplina em questão e especialista em Inteligência Militar), consigo fazer humilde análise que aponta o erro estratégico de Israel, por meio da comparação com um assunto bastante conhecido por aqui: quando a PM do Rio de Janeiro ocupa comunidades (favelas, né?), corajosamente subindo as vielas e trocando tiros de fuzil com os bandidos do Comando Vermelho e outros, quais são os resultados?

Respostas: 

  •  Enxugam gelo, na maioria das vezes, apesar dos esforços meritórios.
  • Para cada bandido morto ou aprisionado, surgem outros 10.
  • Para cada fuzil apreendido, outros 5 aparecem por mágica.
  • Para cada quilo de cocaína, a importação clandestina do tráfico obra ou triplica a oferta.
  • Morrem crianças por balas perdidas (quase sempre disparadas pelos bandidos).

Obviamente, reconheço que a polícia tem o permanente e importante dever de reprimir o crime – só enxergo que não chegaremos a lugar algum pelos caminhos equivocados de sempre.

Voltando à guerra entre Israel e o Hamas:
Em Gaza, esse fracasso do Rio de Janeiro se repetirá em escala muito, muito pior: lá, as “balas perdidas” destroem meio quarteirão. Cada casa que desmorona, rui uma parte da vida de uma família simples. Cada civil deslocado leva, além de seus poucos pertences, um balaio de ódio e rancor, especialmente quando deixa para trás os corpos dos filhos.

Defendo que a estratégia escolhida pelas IDF está repetindo os erros do ataque a Beirute (1982), o qual visava anular a capacidade ofensiva da antiga organização guerrilheira OLP (Organização para a Libertação da Palestina), intolerante à existência do Estado Judeu, como as demais também o são.

As IDF sitiaram e ocuparam Beirute, “by the book” (seguindo a manual):

  • Isolando a cidade, conquistando e ocupando áreas de apoio em sua periferia, como pátios e galpões abandonados.
  • Bloqueando as vias de suprimento e de evacuação, deixando apenas uma via de fuga, monitorada e calibrada pela Artilharia.
  • Cortando os fornecimentos de energia e de água.
  • Dividindo a cidade em setores e sub setores, os quais eram metodicamente varridos pela Artilharia e vasculhados, metro por metro, pela Infantaria, a qual liberava, progressivamente, cada casa e cada quarteirão, marcando as edificações revistadas com um “X” na cor branca.
  • O cerco foi sendo apertado, gradativamente, até que os poucos defensores que ainda resistiam optaram por evadir-se disfarçados de civis, deixando suas armas para trás.

Não resolveu – o ódio e a vingança fizeram germinar, nos destroços da capital do Líbano, o Hezbollah, o Partido de Deus, poderoso grupo terrorista que hoje ameaça Israel, pelo norte. Apenas para lembrar, a Guerra EUA X Iraque germinou o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”, o infame ISIS.

E qual seria, então, uma Linha de Ação que geraria menos efeitos colaterais para combater o Hamas e, assim, vingar as atrocidades de seu recente ataque?
Por meio do trinômio Operações de Inteligência + Tecnologia + Ações Diretas, ou seja, levantando informações, infiltrando agentes-fantasma, identificando os alvos, matando o inimigo e se retirando. Fácil? Claro que não! Porém, mais cirúrgico, mais discreto e mais eficaz. Bem diferente das ações atuais, as quais, para mim, são uma resposta política para “israelense ver e, o resto do mundo, saber”.

E Israel teria essa capacidade? Sim, possui o trinômio:

  •  A Inteligência israelense é referência no mundo secreto, e não é verdade que ela “foi surpreendida” pelo ataque do Hamas, como ainda será devidamente divulgado. A Agência de Segurança Interna (I.S.A.) é competente, difusa por vários segmentos do governo civil e mantém efetivo relacionamento com as demais agências, como o Mossad (Instituto, em português), a AMAN / Shin-Bet (Contrainteligência Interna), a Unidade 8200 (Inteligência de Sinais), e a Magav (Guarda de Fronteira), para citar as mais conhecidas.
  • As Tecnologias Militar e de Espionagem de Israel são referências reconhecidas no mundo, como sabemos.
  • Ações Diretas significam “missões de matar”: Unidades de Reconhecimento Geral (Sareyet Matkall), e a Yaman (Unidade Especial de Polícia), das quais seriam os agentes inspiradores da excelente série Fauda, da Netflix (aliás, Fauda significa “caos”, nome bem apropriado para aquela região). São infiltradores profissionais e matam sem perdão, que é o que se espera deles. Além delas, há a Kidon (Baioneta), a subunidade de assassinos da Metsada, o Departamento de Operações Especiais do veterano Mossad.


Israel tem muito para fazer, e a prioridade é a volta segura para casa dos 199 reféns, os quais, sem dúvida, foram um dos principais objetivos do Hamas no covarde ataque. Os reféns, coitados, terminam por ajudar a modelar a Linha de Ação que estou (tardia e modestamente) propondo:

  • Israel não deveria ter iniciado o bombardeio, mas, tão somente, capturar ou liquidar os terroristas que se infiltraram em seu território, o que já é missão de elevado risco.
  • O mandatário teria que controlar a pressão da ala mais dura, do governo e da sociedade, que exige resposta implacável (bombardeio).
  • Com a justificativa coerente precisar do tempo necessário para negociar a volta dos reféns, intensificar as Operações de Inteligência e a vigilância de sinais (interceptações telefônicas, reconhecimento por satélites e drones etc), enquanto ultima o preparo das equipes de Operações Especiais. 
  • Tendo ou não êxito no retorno dos reféns, uma vez levantadas as informações necessárias para infiltrar, matar e voltar, fazê-lo com corajosa determinação. Como as Ações Diretas não costumam gerar efeitos colaterais importantes, pela especificidade de seus alvos e qualidade de seus Comandos, a gritaria sobre a destruição da cidade e da morte de civis que não participam do Hamas (a maioria) não ocorreria.

Esse bombardeio intenso em curso pode ter vitimado algum refém, infelizmente, e os familiares já estão protestando defronte o Ministério da Defesa de Israel, exigindo a priorização das tratativas de trazê-los de volta, sabe-se lá como. Daqui a pouco – também infelizmente – o Hamas poderá começar a protagonizar execuções mórbidas, e o horror das práticas criminosas do ISIS voltará a circular pelas redes sociais.

Resumo:

Primeiro ponto: Israel foi covardemente atacado pelo Hamas, terroristas que cometeram crimes imperdoáveis contra civis indefesos.
Segundo ponto: isso não autoriza Israel a agir da mesma forma, ainda que nossa emoção clame pelo contrário.
Terceiro ponto: a destruição da cidade de Gaza e de seus arredores não é garantia de que os terroristas estarão lá, esperando pelas bombas e pelos tanques.
Sinceramente, duvido que terroristas treinados aguardem serem mortos pela Artilharia. Quarto ponto: a operação, como está ocorrendo, semeará terroristas por 3 gerações – os civis jovens de Gaza que sobreviverem, os filhos e os netos deles. Quinto ponto: os túneis – localizar e explodir essas passagens, enterrando-as, é absolutamente impositivo. Sexto ponto: os reféns.

Solucionar a crise de Gaza será possível?

Não. Assim como a do nosso Rio de Janeiro, não há solução possível à vista, e somente as gerações vindouras poderão vir a tentar solução razoável.

Porém, como está sendo feito, hoje, em Gaza, as próximas gerações se alistarão no Hamas, ou em outro grupo terrorista – e isso é o que Israel colherá, por ter decidido bater forte sem pensar. Como dizemos no Exército Brasileiro, “antes de tudo, Inteligência”.

Que Deus, em suas diversas versões, poupe todos os merecedores e castigue os culpados. Agradeço por sua leitura.


Fontes:

Manual de Campanha EB20-MF-10.103 Operações, item 4.3.11 (Capitão RICIERI GUTIERREZ DE MELO, “O emprego de um Regimento de Cavalaria Mecanizado numa defesa em área urbana”).

(1) Cerco a Jerusalém: aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-o-que-foi-o-cerco-de-jerusalem.phtml

(2) Cerco a Massada: goisrael.com.br/massada/

(3) Cerco a Constantinopla: historiamedieval.com/post/fim-de-um-imp%C3%A9rio-como-os-bizantinos-ca%C3%ADram-em-constantinopla-em-1453

(4) Vlad, o empalador: aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-quem-foi-vlad-o-empalador-conde-dracula.phtml

(5) Cerco a Leningrado: brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-foi-cerco-leningrado.htm

(6) Cerco a Stalingrado: historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/batalha-stalingrado.htm

(7) Cerco a Beirute: www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft07039915.htm

(8) Guerra de Aleppo: icrc.org/pt/aleppo-noticias

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