O Afeganistão no tabuleiro geopolítico global

Ten Cel Anselmo de Oliveira Rodrigues

Após a Al-Qaeda ter assumido a autoria dos atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001, os EUA iniciaram uma verdadeira caçada à Osama Bin Laden e se lançaram no combate ao terrorismo.

Dessa forma, em outubro de 2001, os norte- americanos investiram seu poderio militar contra o Afeganistão, dando início a uma típica guerra do século XXI: Estados versus atores não estatais.

Desde então, muita coisa mudou. Depois de eliminarem Osama Bin Laden, os norte-americanos continuaram em solo afegão e, sob a justificativa de reconstruir um Estado literalmente falido, estenderam por diversas vezes seu tempo de intervenção no Afeganistão.

Sem lograr êxito em tal empreitada, o atual presidente dos EUA ignorou os relatórios oriundos da inteligência estadunidense e, em um pronunciamento realizado em 30 de agosto de 2021, decretou oficialmente a saída das tropas norte-americanas no Afeganistão, deixando o país à própria sorte.

A cena que retrata centenas de afegãos se pendurando na aeronave norte- americana, no aeroporto em Cabul, em uma vã tentativa de fugirem do país, exemplifica o estado atual do Afeganistão. Mesmo sendo um Estado falido, muito se engana quem o considera irrelevante no cenário global.

Por mais paradoxal que possa ser, a falência de um Estado nem sempre afeta seu status geopolítico. Este artigo apresenta quatro motivos que levam a crer que o Afeganistão ocupa posição central no tabuleiro geopolítico global nos dias atuais

1º Motivo – Refugiados

Em que pese o competente trabalho realizado pelos norte-americanos na retirada de quase 100 mil afegãos num curto espaço de tempo (YAYBOKE, 2021), há outros 20 milhões que ficaram no Afeganistão: alguns por vontade própria e outros por não terem tido uma opção de escolha. Sob o ponto de vista local e regional, possivelmente, muitos afegãos deverão fugir do país.

Como o Estado possui cerca de 20 milhões de habitantes, espera-se que, dentro em breve, o Afeganistão seja responsável por uma grande onda de refugiados, fato que causará reflexos diretos nos países vizinhos, principalmente no Irã e na China.

Sob o ponto de vista global, tão importante quanto a retirada de quase 100 mil pessoas, é o estabelecimento dos locais onde elas serão realocadas, responsabilidade que não está circunscrita aos EUA. Pelo contrário, é necessário um esforço multinacional.

Como exemplo, a Operação Acolhida já nos mostra que a interiorização dos refugiados venezuelanos no Brasil é uma tarefa difícil. Agora, imagine realocar dezenas de milhares de pessoas com culturas muito distintas das ocidentais?

2º Motivo – Grupos extremistas

Incrédula, a comunidade internacional viu o Talibã ocupar o poder no Afeganistão. Tal fato chamou a atenção de todos quanto à grande fragilidade do país e, principalmente, quanto à conduta do Talibã que, mesmo depois de 20 anos de ocupação norte-americana, mostrou-se robusto e estruturado o suficiente para realizar a operação de forma rápida e exitosa.

No contexto local, os afegãos fatalmente serão os principais afetados com o Talibã no poder. Em que pese a promessa do grupo extremista de se adequar aos preceitos democráticos (liberdade de imprensa, igualdade de sexos, liberdade de expressão etc.), é improvável que o Talibã mude seu DNA extremista e se adeque aos valores ocidentais.

No contexto regional e global, a ousadia do Talibã provavelmente servirá de estímulo para que outros grupos realizem ações semelhantes mundo afora. Embora haja rivalidades e antagonismos entre alguns grupos extremistas, acredita-se que, diante de um inimigo em comum, eles unirão esforços.

3º Motivo – Espólios de guerra (materiais de emprego militar – MEM)

A saída dos EUA do país possibilitou a liberdade de ação necessária para que o Talibã pudesse avançar rapidamente e, literalmente, tomar de assalto o Afeganistão. Sem contar com o apoio dos norte-americanos, restou às colapsadas tropas afegãs somente o pífio papel de se renderem, sem sequer esboçarem um mínimo de resistência.

Nesse duelo, o pêndulo declinou favoravelmente ao Talibã que, em curto espaço de tempo, viu seu poderio militar aumentar exponencialmente por meio dos espólios obtidos das tropas afegãs. De acordo com Cancian (2021), o arsenal de guerra que os EUA haviam destinado para mobiliar as tropas afegãs era composto, dentre outros MEM, por cerca de 600 viaturas, 170 veículos blindados para transporte de pessoal, 64.000 metralhadoras, 16.000 óculos de visão noturna, 170 peças de artilharia, 358.000 rifles de assalto, dezenas de helicópteros e dezenas de aeronaves de transporte.

Numa perspectiva local, não restam dúvidas de que, nas mãos do Talibã, esses MEM resultarão no aumento da violência no país. Numa perspectiva regional e global, é interessante grifar que o Talibã necessita de recursos financeiros para administrar o Afeganistão e não possui recursos humanos capacitados para operar/manusear boa parte desses MEM recém-adquiridos.

Assim, é provável que, por meio da dark web ou de outra rede clandestina, o grupo venda parte desses espólios para outros grupos extremistas ou até para determinados Estados, fato que aumentará consideravelmente a violência ao redor do planeta.

4º Motivo – Espólios de guerra (materiais sensíveis)

Além dos MEM, cumpre salientar que o Talibã herdou, como espólios de guerra, os materiais sensíveis que equivocadamente os norte-americanos deixaram em seu processo de retirada do Afeganistão: documentos estratégicos, relatórios de inteligência, computadores, planos operacionais e documentos diplomáticos são apenas alguns dos inúmeros materiais sensíveis existentes em solo afegão (CANCIAN, 2021).

Apesar dos vultosos recursos que podem ser auferidos pela venda dos MEM, não restam dúvidas de que os materiais sensíveis representam os bens mais preciosos encontrados pelo Talibã.

Detentores de cifras incalculáveis, esses materiais guardam informações de tudo aquilo que é considerado importante no Afeganistão e em todos os países da região, pois possuem a incrível capacidade de concatenar o passado, o presente e o futuro do país e da Ásia Central sob duas importantes perspectivas: intra corporis (percepção dos afegãos) e extra muros (percepção dos norte-americanos). A posse desses espólios indubitavelmente ocasionará a mudança de patamar do grupo extremista no cenário mundial.

Não restam dúvidas de que o Talibã tentará se estabelecer como Estado e atuará nas mais diversas plataformas políticas para legitimar seu intento. Não por acaso, em 21 de setembro de 2021, o Talibã solicitou à ONU estar presente na conferência da instituição, enviando o seu representante e discursando em nome do Afeganistão (NICHOLS, 2021).

Além das Nações Unidas, outras plataformas que certamente serão utilizadas, será o estabelecimento de um diálogo com Estados considerados relevantes na estratégia do grupo extremista.

Por exemplo, com os EUA, o Talibã poderá utilizar o artifício da chantagem para obter apoio político ou auferir recursos financeiros (vide o caso Wikileaks). Com a Rússia, a China e o Irã, o Talibã poderá empregar os materiais sensíveis como moeda de troca para receber apoio político, financeiro e até militar, haja vista que esses Estados estão ávidos para saber quais são os reais interesses dos norte- americanos em suas respectivas áreas de responsabilidade: Ásia Central.

Por fim, mesmo sendo um Estado colapsado e estando longe de ser um player global, o Afeganistão ocupa uma posição estratégica no tabuleiro geopolítico. Com o Talibã no poder estatal, há reais possibilidades de que sejam desencadeados vários fenômenos importantes em escalas local, regional e global, fato que o coloca no epicentro da geopolítica global.

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REFERÊNCIAS: 

YAYBOKE, Erol. The Next Big Refugee Crisis Just Started. Defense One. Washington DC, 2021.

CANCIAM, Mark. Afghanistan is not done with US; four long-term dangers await. Center for Strategic and International Studies. Washington DC, 2021.

NICHOLS, Michelle. Reuters. Nova York, 2021.

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