Intel – A Segunda Guerra no Rio: “O Meu Vizinho Espião”

Capitulo do livro “Trincheira Tropical”, A Segunda Guerra Mundial no Rio de Janeiro, do jornalista Ruy Castro, publicado com permissão da Insight INTELIGÊNCIA.
Publicada na edição de Março 2025, edição 108.

O Editor



O Meu Vizinho Espião

Ruy Castro, jornalista e escritor
do Livro “Trincheira Tropical”
A Segunda Guerra Mundial no Rio de Janeiro

Em 1942, a colônia alemã no Rio tinha cerca de vinte mil indivíduos. Eram relativamente poucos diante das centenas de milhares no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Mas estes se espalhavam pelo campo e em pequenas cidades do estado, e a maioria de seus membros eram velhos, mulheres e crianças. Os do Rio estavam concentrados numa metrópole, misturados à multidão, adultos, profissionais, ideologicamente formados. Muitos eram verdadeiros imigrantes, dispostos a aprender a língua e a se integrar com os locais – como o casal Hans e Miriam Etz, em cuja casa, em Ipanema, passaram a concentrar-se jovens publicitários, artistas plásticos e até sambistas. Outros não eram tão inofensivos.

Já operavam no Rio desde 1938, valendo-se da vista grossa do governo brasileiro. Filinto Müller lhes dava proteção. Dutra era abertamente simpático aos alemães – seus parentes e amigos comemoraram com champanhe num restaurante de Copacabana a queda de Paris, e no dia seguinte Dutra mandou sondar Prüfer sobre a possibilidade de o Brasil comprar o material do Exército francês. A consulta foi feita através de Olavo Egydio de Souza Aranha, representante no Brasil da Schroeder, empresa que intermediava a venda do café e do algodão brasileiro para a Alemanha – a proposta de Dutra não foi aceita, os alemães precisavam do armamento francês. Bejo Vargas, com ou sem conhecimento do irmão Getúlio, também mantinha relações comerciais diretas com a Embaixada.

E nem a declaração de guerra e a suspensão das exportações impediram que o Brasil continuasse a vender trigo e borracha para a Alemanha – por intermédio da “neutra” Argentina, que os revendia à Alemanha. Dizia-se que essa triangulação era articulada por Bejo.

Mas, acima ou por trás de tudo isso, havia o trabalho do Abwehr, que em alemão significava defesa ou contraespionagem. Antes de 1942, poucos no Brasil tinham ouvido falar dele. O Abwehr era o braço do Alto Comando das Forças Armadas do Reich no exterior. Não se confundia com a Gestapo, que era a polícia voltada para a perseguição, captura e interrogatório de opositores do regime. O Abwehr era muito mais fino e abrangente. Além de centralizar a busca de informações de interesse da Wehrmacht, dedicava-se a ações como falsificar documentos, fotos e passaportes, plantar agentes dentro das representações diplomáticas, penetrar nos serviços secretos estrangeiros, disseminar informações falsas, executar sabotagens, cifrar e “quebrar” – decifrar – códigos e desenvolver formas de envio de mensagens. Sua sede ficava em Hamburgo, base das operações internacionais alemãs por porto de mar. Seu dirigente máximo era o almirante Wilhelm Canaris, 54 anos, multilíngue (inclusive em português), especialista em estratégia e, corria a lenda, amante da espiã Mata-Hari durante a Primeira Guerra.

Seu homem no Brasil era Albrecht Gustav Engels, cinquenta anos, codinome “Alfredo”, engenheiro do setor de energia e eletricidade. Estava no país desde 1923, ganhara cidadania brasileira e tivera longas passagens profissionais por Belo Horizonte, Joinville e Rio. Uma simples viagem a Berlim em 1938, no entanto, fora suficiente para Engels se deixar cooptar pelo Abwehr e se tornar “Alfredo”. O apelo da nova Alemanha era muito forte para quem a deixara na miséria a que a derrota na Primeira Grande Guerra a submetera – e, agora, era a vez da pujança e de ir à forra. Em suas escalas pelo Brasil, “Alfredo” conhecera todo mundo que importava na área política, militar e de negócios, o que lhe permitiu montar a melhor cadeia de informações com que Hamburgo poderia sonhar. E foi o que ele fez. Com o esquema sobre rodas e funcionando, o Abwehr, por segurança, transferiu-o para São Paulo.

Alguns dos resultados conseguidos por “Alfredo” eram impressionantes. Em 1941, o almirantado em Hamburgo tinha, em detalhes, o perfil de cada porto importante do Brasil – Pará, Natal, Recife, Bahia, Rio e Santos –, compreendendo importância operacional, extensão e condições de navegação de cada um, sugestões para ataque e efeito moral junto à população pela tomada deste ou daquele porto – o do Rio seria o de maior impacto. Há tráfego aéreo sobre esses portos? – queriam saber. Quantos aviões o sobrevoavam por dia em média? A que distância ficava uma base militar? Com esses dados planejou-se uma Operation Brasilien (Operação Brasil), o bombardeio do Rio e um maciço ataque naval e aéreo aos outros portos e aeroportos. Uma espécie de Pearl Harbor brasileira, para dar uma eloquente demonstração de poder. Depois de equacionada, a operação foi cancelada temporariamente, por inoportuna, e, por fim, abandonada, por custosa e desnecessária. O Abwehr tinha outros trunfos.

O Abwehr conhecia o âmago da economia brasileira, graças a seus agentes nas assembleias de acionistas das empresas e nas reuniões das associações comerciais. Os “empresários” alemães que trocavam informações com os brasileiros na Associação de Comércio Teuto-Brasileira eram homens do Abwehr. Havia quinta-colunas sentados às mesas de reuniões nos ministérios da Fazenda e da Agricultura. E muitos funcionários da Embaixada, expulsos do país no corte de relações, apenas simularam embarcar para a Europa. Na verdade, não chegaram a passar nem uma noite no navio. Continuavam aqui, na clandestinidade.

Todas as grandes empresas alemãs no Brasil, como Bayer, Merck, Shering, Siemens e Telefunken tinham agentes como “funcionários”, alguns em altos cargos, de forma a justificar sua presença em certos círculos. A própria Brahma, nacional, mas ainda com interesses alemães, os acolhia. O Rio estava tomado por operadores simples ou duplos, falsos diplomatas, decodificadores, falsificadores, correios clandestinos, químicos, operadores de rádio e, se preciso, matadores.

Para o povo, eles eram apenas o vizinho de porta de apartamento ou o morador da casa ao lado. Seus sotaques, ternos brancos amarfanhados e colarinhos ensopados não chamavam a atenção na cidade internacional. O financiamento das operações vinha dos bancos alemães no Rio, como o Deutsche Bank, o Banco Germânico da América do Sul e o Banco Alemão Transatlântico. A sede deste último, na rua da Alfândega, era um marco arquitetônico, de autoria do arquiteto Joseph Gire, o mesmo do Copacabana Palace. Tinha sete andares, hall com dez metros de pé direito, colunas em estilo helênico revestidas de pedra-sabão, e seu cofre fora construído pela Panzer, fabricante de tanques de guerra.

As mensagens reservadas dentro do país podiam ser escritas com tinta secreta, à base de comprimidos do analgésico Pyramidon dissolvidos em álcool, reversível com a aplicação de um revelador à venda em farmácias. Mas as comunicações de fato importantes, como as que traziam as chaves dos códigos, passavam obrigatoriamente por “Alfredo” e usavam a incrível técnica do mikropunkt – o microponto –, um método criado no Instituto de Tecnologia de Dresden, pelo qual o texto contido numa folha de papel era reduzido fotograficamente ao tamanho de um selo postal. Essa redução, por sua vez, era fotografada por um microscópio especialmente adaptado, até ficar do tamanho do ponto sobre a letra “i”, exatamente como o que você acabou de ver. Esse microponto era transcrito no texto de uma carta comum, de assunto banal, enviada para um endereço neutro. E, de lá, partia para seu verdadeiro destinatário, que, para lê-lo, ampliava-o usando o mesmo microscópio. Só os agentes mais categorizados tinham acesso ao microponto.

Mas todo esse esquema, de operadores e agentes incógnitos, dependia de Filinto Müller na chefia de Polícia. Filinto tinha ligação direta com o adido militar alemão no Rio e provavelmente com elementos do Abwehr na Embaixada. Sem ele, substituído pelo tenente-coronel Alcides Etchegoyen e com a polícia ligada agora aos serviços secretos britânico e americano, os agentes começaram a cair. A prisão de cada um deles e sua confissão (sob tortura, obviamente) levavam a mais prisões. A tortura era o “Cristo Redentor”: o preso, de pé, com os braços abertos durante horas e, se abaixados pela dor, alvos de borrachadas. Pouco depois de declarada a guerra, foram apanhados cerca de quinhentos suspeitos. O próprio “Alfredo” caiu, denunciado pelo sérvio Dusko Popov, o “Ivan”, homem de confiança do Abwehr, mas que, por trás do alfinete de gravata com uma suástica estilizada, era informante para o FBI. Popov era tão competente que, com seus contatos no FBI em Miami, Lisboa e no Rio, era visto pelo Abwehr como, ao contrário, um agente alemão infiltrado na polícia americana. Por sua causa, boa parte da operação foi desmantelada e, só então, com a montagem das confissões, o Brasil teve ideia da extensão da penetração nazista.

Uma surpresa foi a descoberta de que as comunicações Rio-Hamburgo e Nova York-Rio pelos radiotransmissores eram mais intensas que as de Hamburgo-Nova York – por causa dos polos magnéticos, as transmissões no sentido norte-sul eram melhores do que no sentido leste-oeste. Com isso, Nova York e Hamburgo mandavam para o Rio as mensagens que queriam trocar entre si e, daqui, eram retransmitidas para ambos. Agentes que dominavam várias línguas eram valorizados, como Eduard Arnold, Erich Immers e Wolfgang Eberhard Neise. A captura deles levou a Hans Curt Werner Meyer Clason.

Meyer Clason, 31 anos em 1942, louro, bonitão, elegante – rigoroso em matéria de gravatas e sapatos –, 1,84 m, exímio dançarino de salão (seu apelido era “Fred Astaire”) e sócio do Germania e de clubes de tênis em Porto Alegre, São Paulo e no Rio, talvez fosse o alemão mais sofisticado do Brasil. Apresentava-se como exportador de algodão, estava sempre bem acompanhado por brasileiras e alemãs em seu conversível e parecia senhor de si em qualquer situação.

Falava e escrevia em inglês, francês, espanhol e português, e, talvez por isso, lhe tivesse sido confiado um importante segredo: a técnica do microponto. Assim que começaram as delações, Meyer Clason foi preso em Porto Alegre, trazido para o Rio, condenado a vinte anos e mandado para a Ilha Grande. Ninguém adivinharia que, libertado no pós-guerra e de volta ao seu país, ele ficaria famoso nos anos 1960 como o tradutor em alemão de Guimarães Rosa: “Sagarana”, “Corpo de baile”, “Tutameia”, a novela “Meu tio, o Iauaretê” e, principalmente, “Grande sertão: veredas”.

O Brasil estava minado com uma rede de radiotransmissores clandestinos, quase toda no Rio, da qual só se deu conta com os endereços estourados em sequência pela polícia. Alguns ficavam em casas nas ruas Barão de Jaguaripe e Redentor, em Ipanema, e João Lyra e General Artigas, no Leblon, mas aparelhos foram encontrados também em Santa Teresa, em Jacarepaguá e na Ilha do Governador. O principal deles, pelo tamanho da antena no telhado, era o do prédio em estilo seminormando na rua Campos de Carvalho, 318 (atual General San Martin), no Leblon. Seu aparelho, com alcance de quinze mil quilômetros, era um transreceptor, feito para transmitir e receber. Outra estação foi encontrada no porão da Embaixada, no Flamengo. O equipamento para a montagem dos transmissores vinha da Europa como se fossem peças de reposição para a Telefunken, trazido pelas empresas aéreas alemãs em operação no Rio, a Lufthansa e sua subsidiária, o Sindicato Condor. O tráfico desse equipamento dentro do território nacional ficava a cargo da Varig ou da Vasp, com seus mecânicos e pilotos alemães.

Até o rompimento de relações, a sensação de inexpugnabilidade determinava o comportamento das autoridades alemãs no Rio. O embaixador, fosse Karl Ritter ou Curt Prüfer, tinha livre acesso aos palácios oficiais. Ritter sentia-se um mini-Führer, por sua capacidade de intervir no destino de quem chegasse da Europa, como ao ordenar a Filinto Müller para dificultar a obtenção de documentos por refugiados. Através de seus serviços de informação, Ritter identificava os refratários ao nazismo entre os alemães residentes no Brasil e os ameaçava com retaliações contra seus parentes na Alemanha. Outra medida era afastá-los do círculo social da colônia, barrando sua entrada no Germania, orientando os bancos alemães a lhes negar crédito e infernizar-lhes a vida de modo geral.

Prüfer também era muito atuante. Ligado a Lourival Fontes, conseguiu até que uma notícia particularmente desagradável aos brasileiros ficasse desconhecida aqui: aos 42 anos, em 1941, a princesa Maria Carolina de Saxe-Coburgo e Bragança, bisneta de D. Pedro II, vítima de “mal súbito” no castelo de Hartheim, na Áustria. Na verdade, o castelo era uma casa de extermínio reservada aos prisioneiros com problemas mentais, caso de Carolina. Ela fora levada nua à câmara de gás e, antes de ir para o crematório, tivera extraídos seus dentes e obturações a ouro.

Quinta-colunas, principalmente ex-integralistas que prestavam serviços de espionagem para os alemães, estavam sendo identificados em toda parte. Descobriu-se que havia um no serviço de informações reservadas do Itamaraty e outro na Embaixada brasileira em Berlim. Os dois, peritos em abrir e fechar envelopes, controlavam a mala diplomática e tinham acesso às cartas antes que fossem lidas pelos funcionários. No próprio Palácio do Ingá, em Niterói, residência do interventor Ernani do Amaral Peixoto, genro de Getúlio, foi encontrada uma bandeira com a suástica atrás da cama no quarto do motorista – que conduzia nada menos que a esposa de Ernani, Alzira, e a sogra dele, dona Darcy, respectivamente a filha e a esposa de Getúlio. O motorista era casado com uma alemã de Santa Catarina.

Os cassinos, frequentados por empresários alemães e italianos e seus pares brasileiros, eram lugares seguros para se fazer contatos, porque todos estavam muito interessados nos quadrinhos em vermelho e preto para perder tempo escutando as conversas dos outros. Os agentes alemães ficavam atentos a quem estava perdendo no jogo ou aparentando desequilíbrio etílico e os abordavam simpaticamente para extrair informações. A Urca, sob o frêmito das coqueteleiras no grill e das roletas no salão, era o cenário ideal para a captura de segredos. O inimigo parecia onipresente. Andando pelas calçadas da Zona Sul, ouvia-se “Die Fahne Hoch”, hino da SS, saindo pelas janelas dos apartamentos térreos. A fonte podia ser a eletrola dos moradores ou uma transmissão da Deutsche Welle, emissora oficial alemã, irradiando para o Brasil. Ninguém escutava “Die Fahne Hoch” por meras razões musicais.

Com o corte de relações e sua expulsão do país, Prüfer, antes de tomar o navio, armou uma rede de espionagem com cerca de vinte operadores brasileiros. A liderança coube a seu melhor homem aqui, o catarinense Tulio Regis do Nascimento, capitão do Exército na arma de Artilharia e vindo de uma família de militares. Prüfer já o admirava por ter-se infiltrado numa fábrica de aviões nos Estados Unidos. No Brasil, Tulio, como militar, teria passe livre nos quartéis para converter colegas. Seus conhecimentos o tornavam também o herdeiro natural dos códigos e fórmulas de tintas usadas para a troca de mensagens secretas.

O segundo em comando passou a ser o poeta cearense Gerardo Mello Mourão, 25 anos, formado num seminário católico, fluente em latim e recrutado do integralismo. A serviço do então adido naval alemão Hermann Bohny, Mourão fora mais de uma vez a Buenos Aires como pombo-correio de mensagens entre nazistas brasileiros e argentinos. Sob o comando de Tulio, ele ficou responsável pela arregimentação de olheiros encarregados do fluxo de navios ingleses e americanos no porto do Rio. Na companhia de um militar reformado para instruí-lo, Mourão foi observar também a construção das bases aéreas e navais americanas no Nordeste e repassou essas informações a Hamburgo via Tulio. Outra de suas missões era a contratação de sabotadores para incendiar o Winduck, navio orgulho da Marinha alemã, apreendido no porto do Rio e cedido aos americanos. O Winduck estava fundeado na Ilha das Cobras, e o mecanismo para a explosão chegara até a ser fabricado, mas o plano, por impraticável, foi abandonado às vésperas da execução.

O dinheiro para custear essas operações vinha da própria Alemanha, através de algum país neutro europeu e provavelmente em libras. Nisso incluíam-se os salários de Tulio e Mourão. Não que eles fossem mercenários, mas espionar custava dinheiro. Tulio e Mourão tiveram suas despesas consideravelmente reduzidas a partir de 1943, quando foram presos, julgados e condenados a trinta anos pelo Tribunal de Segurança Nacional.

Logo após os primeiros afundamentos de navios, o governo expedira portarias obrigando os súditos alemães, italianos e japoneses no Brasil, pessoas físicas e jurídicas, a “indenizar os prejuízos causados pelas agressões de seus países”. Declarada a guerra, as portarias foram postas em ação. Alemães, italianos ou japoneses eram todos os inscritos no Registro de Estrangeiros e que tivessem entrado no Brasil com passaporte atribuindo-lhes tais nacionalidades. Não se aplicava aos que, mesmo nascidos naqueles países, possuíssem a nacionalidade brasileira e aos filhos de brasileiros em serviço no exterior. Os alemães naturalizados que estivessem fora do país ficavam proibidos de voltar. Já os que estivessem fora havia cinco anos perdiam a nacionalidade brasileira.

Ficava proibida aos alemães, italianos e japoneses qualquer espécie de reunião, social, profissional ou mesmo particular, como festas de casamento ou de aniversário e até frequentar bailes de Carnaval. Não podiam filiar-se a sindicatos ou associações de classe nem frequentar suas sedes. Estavam proibidos de deixar o país e obrigados a declarar deslocamentos internos e mudanças de endereço. Não podiam possuir barcos, automóveis, aviões e motocicletas nem manter em casa máquinas fotográficas, binóculos, laboratório químico e aparelhos de rádio, e muito menos transmitir por radioamador. Não podiam comprar gasolina, e os postos que desobedecessem a essa norma estavam sujeitos a suspensão de seu fornecimento. Sua correspondência ficava sujeita a censura e estavam proibidos de escrever cartas em sua língua, só em inglês. Ficavam também proibidos de falar sua língua em público, cantar hinos, comemorar datas cívicas de seus países ou exibir cartazes com fotos de seus governantes. Clubes, escolas e sociedades cuja diretoria não fosse formada por dois terços de brasileiros eram ilegais. E, desnecessário dizer, a descoberta de armas, munição, pólvora ou qualquer explosivo em suas casas justificava prisão em flagrante.

As medidas econômicas eram duríssimas. Os alemães, italianos e japoneses no país eram obrigados a declarar todos os seus bens e se submeterem a tributos que variavam segundo as características dos valores, depósitos bancários e aplicações patrimoniais, como apólices, juros e hipotecas. Trinta por cento de seus ativos acima de dois contos de réis, cerca de cem dólares, eram confiscados. Isso incluía o sequestro de depósitos, seguros, imóveis, terrenos, bancos, fábricas e lojas. O dinheiro recolhido era depositado no Banco do Brasil ou em instituições do governo. Todos os bancos e companhias de seguros alemães foram estatizados e ganharam novos nomes. Empresas poderosas, como os laboratórios Schering, Bayer e Merck, foram desapropriadas, sem compensações. Indústrias alemãs de qualquer tamanho foram fechadas – uma fábrica de fósforos podia ser um paiol de explosivos.

O setor aéreo, dos mais importantes no esquema nazifascista, foi profundamente atingido. O Sindicato Condor, radicado no Brasil desde 1926 – quando inaugurou a aviação comercial brasileira com o anfíbio Wal –, e a Lufthansa tiveram de entregar seus aviões. A Condor tornou-se a Cruzeiro do Sul; a Varig passou do alemão Meyer para um de seus funcionários, o gaúcho (neto de alemães) Rubem Berta. Mas as principais linhas aéreas no país, nacionais e internacionais, foram herdadas pela Pan American, através de sua subsidiária brasileira, a Panair – não fazia sentido os Estados Unidos procederem a uma ampliação e modernização dos aeroportos nacionais em benefício de potências que lhes eram hostis. Além disso, descobriu-se que a Condor fazia espionagem aérea na costa atlântica, sobrevoando os cargueiros rumo à Europa e informando sobre suas rotas. Os bombardeiros, caças e helicópteros alemães recém-comprados pelo Brasil, como os Dornier, Junkers e Focke-Wulf, e ainda não de todo pagos, foram incorporados à frota nacional. O mesmo no mar: dezesseis navios do Eixo, estacionados em portos brasileiros, foram apreendidos pela Marinha e rebatizados com nomes indígenas.

Tudo isso foi uma avalanche de patriotismo, mas, em nome dele, cometeram-se equívocos e injustiças. Mal declarada a guerra, uma das primeiras capas da revista O Cruzeiro foi a de uma bonita jovem fardada e fazendo o “V de Vitória” diante da bandeira brasileira. A foto, produzida no estúdio do fotógrafo Avila, foi ideia do cineasta português radicado no Brasil, Fernando de Barros, e a modelo era uma estudante carioca chamada Zelma. Quando a revista foi para as ruas, paranoicos descobriram que, com a capa na horizontal, a letra M do “Ordem e progresso”, em maiúsculas na bandeira, tornava-se o sigma, símbolo do extinto Partido Integralista. Para eles, aquilo era uma mensagem nazista camuflada e, antes que os já suspeitos Diários Associados se explicassem, exemplares foram tomados às bancas e incendiados.

Ia-se à Light com os endereços de cidadãos alemães suspeitos apenas por serem alemães, para sugerir que tivessem a luz cortada e com isso não pudessem montar transmissores. Se a Light se recusasse, ameaçavam agir por conta própria e cortar os fios dos postes com alicate. Alemães residentes em imóveis alugados eram denunciados à polícia por seus próprios senhorios: “É nazista fanático. Fala com sotaque. Não cumprimenta ninguém no prédio. Seu filho estuda na Deutsche Schule e pertence à Juventude Hitlerista.” Um alemão que morava numa vila na rua Montenegro, em Ipanema, teve sua casa bombardeada com ovos. Alemães despejados não conseguiam alugar um novo imóvel e tinham de ir para os hotéis que os aceitassem ou para a propriedade de outro alemão. Descendentes de alemães enraizados aqui havia décadas, mas chamados Hans, Fritz ou Wolfgang, pediam aos amigos que os chamassem por outros nomes, para não serem hostilizados.

Mas o Brasil era um país de imigrantes. Sabendo disso, as secretarias de Segurança estaduais emitiram editais exortando o povo a “em nenhuma hipótese adotar atitude agressiva para [com] os súditos do Eixo residentes no país, suas pessoas, seus bens, sua honra. Práticas de destruição e violência cometidas contra indivíduos desafinados [sic] são proibidas pelo Direito Internacional e indignas do bom nome de nossa pátria, além de repercutirem prejudicialmente na economia nacional”. Mas não adiantou. Muitos teuto-brasileiros, que haviam adotado o Brasil para fugir da fome na Alemanha nos anos 1920, foram demitidos de seus empregos, estigmatizados em seus bairros e ofendidos por transeuntes.

Patrulhas saíam às ruas para quebrar estabelecimentos alemães na Zona Sul e no Centro, principalmente bares e restaurantes. Uma delas era composta por João Saldanha e seu irmão Aristides, esportistas ligados ao Botafogo, o grã-fino José Nader, os jornalistas Paulo Silveira e Moacir Werneck de Castro, o funcionário público José Gomes Talarico e os jovens Sandro Moreyra, Sergio Porto, Carlinhos Niemeyer, Gastão Rosa e Gustavo Carvalho. Seus alvos foram os bares Rhenania, Berlim e Zeppelin, todos em Ipanema. Exceto Carlinhos Niemeyer, que, dois anos depois, se alistaria como piloto na FAB (Força Aérea Brasileira), nenhum deles jamais seria visto fardado – seu esforço de guerra consistiu em atirar açucareiros contra espelhos, virar mesas e varrer as garrafas nas prateleiras com as cadeiras. O próprio Carlinhos Niemeyer nunca correria risco. Sua única proeza na guerra se daria em 1945, durante um estágio como aviador em Los Angeles, quando passaria um mês nos braços de Carmen Miranda.

Foram ataques injustos. O Rhenania nada tinha de nazista – ao contrário, seu proprietário, o hoteleiro vienense Victor Fleischer, fugira da Áustria em 1938, quando o país foi anexado pela Alemanha. Viera para o Rio e abrira o Rhenania, na praça General Osório, com pratos típicos da Baviera. Em lágrimas, Fleischer viu seu restaurante ser depredado e cada copo e prato, destruído. Mas não desistiu. Acreditou no Rio, perdoou os agressores e reabriu o estabelecimento com um nome que marcaria época pelas quatro décadas seguintes: Jangadeiro. E o Bar Berlim, admirado por sua arquitetura Art Déco e pelos velhinhos do quarteto de cordas que tocavam valsas vienenses no mezzanino, levou dois anos para ser reconstruído e renasceu com o nome de Shangri-La – logo depois, alterado para Bar Lagoa.

Já o Zeppelin, sim, talvez justificasse o ataque terrorista. Seu proprietário, o austríaco Oskar Geidel, chegara ao Brasil em 1933 com um circo italiano, o Sarrasani, do qual era trapezista. O circo foi embora e ele ficou. Foi garçom no clube Caiçaras e, em 1937, depois de anos amealhando gorjetas, abriu seu bar, o Zeppelin, na rua Visconde de Pirajá. Era um botequim tematicamente nazista. O nome era uma homenagem ao garboso dirigível do Reich. As paredes exibiam fotos de Hitler e as tampas dos empadões eram decoradas com camarões dispostos em forma de suástica. Tamanha adesão ao nazismo podia ser meramente patriótica, porque, afinal, Oskar jamais passara um dia na Alemanha sob Hitler. Mas seus clientes eram todos adeptos da causa. Iam de ex-integralistas e oficiais do Exército brasileiro a agentes alemães no Rio e ao gauleiter Filinto Müller.

Saldanha e companhia puseram o bar abaixo e quase obrigaram Oskar a fechar as portas. Mas Oskar era de circo e não se abateu. Reformou-o, pintou as paredes de verde – para lembrar a bandeira nacional – e transferiu os camarões da tampa para o recheio do empadão. Corajosamente, conservou a placa na fachada com o nome do dirigível. Considerando-o desnazificado e fazendo justiça ao seu magnífico chope, o pessoal do cinema, teatro, jornal e literatura do Rio perdoou o Zeppelin e o adotou como um de seus pontos favoritos. Só depois, muito depois, descobrir-se-ia que Oskar nunca abdicara da admiração por Hitler – seu apartamento, em cima do Zeppelin, aonde ninguém subia, era quase um santuário nazista.

E houve o caso do Bar Adolf, na rua da Carioca, que esteve a ponto de ser arrasado por se chamar Adolf. Mas este Adolf não era uma louvação a Hitler. Era apenas o nome do imigrante alemão Adolf Rumjaneck, que, no longínquo ano de 1887 – quando Hitler nem sequer tinha nascido –, viera para o Rio e fundara o restaurante. Chamou-o de Zum Alten Jacob – Ao Velho Jacob, em português. Com sua morte, em 1915, o novo proprietário, Ludwig Voit, reformou o estabelecimento e o renomeou como Bar Adolf, em homenagem ao antigo proprietário. Quando a turba chegou para vandalizá-lo, Ary Barroso, já autor de “Aquarela do Brasil” e por acaso almoçando ali, arrancou o guardanapo do pescoço, subiu em uma cadeira e, com sua marcante voz de palmípede, defendeu Ludwig Voit. Era “seu amigo e tão brasileiro quanto… quanto…” – e buscou na memória algo bem brasileiro para fazer a comparação. Depois de breve pausa, encontrou: “Tão brasileiro quanto ‘Aquarela do Brasil’!”. Graças a Ary, a destruição cessou ali. Mas Ludwig achou mais prudente mudar o nome do restaurante e escolheu Bar Luiz – versão de seu nome em português.

Nota DefesaNet

Depois de todas as peripécias do Bar Luiz, na rua da Carioca, foi uma das vítimas da pandemia da Covid.

O editor

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