Sobre uma luta inglória

Dimas Mecca Sampaio  E Flávio César Montebello Fabri

Impossível não acompanhar por intermédio da mídia e, principalmente, das redes sociais, a saída de um criminoso de alta posição no crime organizado, de um presídio, por decisão judicial, para logo depois, simplesmente ele sumir.

O traficante Integra uma facção paulista que se faz presente em todo território nacional e possui ramificações internacionais (por sinal, in tese ele era um dos responsáveis por tais ramificações).

Por mais que existam diversas teorias e interpretações jurídicas, por mais que se fale do cabedal legal vigente, por mais que se fale qualquer coisa, é irreal a soltura de alguém que era responsável por toda logística e articulação para o transporte de drogas para outros países, movimentando milhões e milhões de reais.

Beira o ilógico que o integrante de “alto escalão” de uma facção que já enfrentou o Estado em 2006, desferindo diversos ataques contra integrantes das forças de segurança, forças de segurança estas que, por sinal, enfrentaram sozinhas a sanha do terrorismo perpetrado pelo crime, pagando com o próprio sangue e vidas (ou algum teórico, acadêmico e congêneres dirigiu-se para as ruas e enfrentou o crime organizado?) tenha saído pela porta da frente e sumido, possivelmente para outro país.

Somente para relembrar, os ataques ocorreram na véspera do Dia das Mães de 2006. As mães de diversos policiais enterraram seus filhos nos dias subseqüentes. Os teóricos, políticos e analistas permaneceram seguros em seus gabinetes.

Conforme o cargo, alguns possuíam (como vários ainda possuem), inclusive, proteção policial. A análise sobre o evento, com claras características de terrorismo perpetrado pela criminalidade, ocorreu no decorrer dos anos subseqüentes.

Mas, até o dia 16 de maio, ocorreram mais de 250 ataques, rebeliões em 73 presídios e em 9 cadeias. A ação que começou em São Paulo alastrou-se para outros Estados como Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul.

Sim, é necessário recordar o que a facção fez. Sempre! Que mais de 90 ônibus foram queimados, que foi tentado o resgate de condenados, que dentro de estabelecimentos prisionais outros reeducandos foram torturados (tão como funcionários que acabaram por ser tomados como reféns também o foram).

Que a cidade de São Paulo viveu uma crise sem precedentes. Anos depois, novos ataques. Da mesma facção. A facção que o novo foragido da justiça integra.

E caberá às forças policiais colocá-lo novamente de onde não deveria ter saído. Tanto que em tempo recorde a decisão da soltura foi revertida. Mas serão os policiais que irão trabalhar muito, correndo riscos, para que o traficante volte para as grades.

Impossível, também, não lembrar das séries Narcos e Narcos México da Netflix.

O Estado de Jalisco (um dos 31 Estados do México) cuja capital é Guadalajara, é famoso por sua Tequila, bebida feita a partir do agave-azul.

Estado com tradições, beleza e um dos principais centros industriais daquela nação, infelizmente também ficou famoso pelo Cartel de Jalisco Nova Geração (CJNG), organização criminosa que atua no tráfico internacional de drogas e de armas, terrorismo, seqüestros e extorsões.

Além de cometer diversos assassinatos, principalmente de integrantes de grupos rivais (como os Los Zetas), o cartel é responsável por inúmeros ataques contra as forças de segurança.

DefesaNet já alerta há muitos anos sobre a ação dos cartéis de droga mexicanos. O que chama a atenção nas organizações criminosas é o poder de infiltração dentro das diversas esferas dos poderes constituídos. Por isso citamos as séries.

Criminosos com altíssimo poder financeiro que se relacionavam com as maiores autoridades de uma nação (detentores da capacidade de tomada de decisões estratégicas).

Muitos policiais e militares pagaram com a própria vida para que cessasse (ou ao menos fossem infligidos golpes) a ação do crime organizado. E mesmo assim a luta continua.

É uma luta inglória. Inglória não pelo fato de ser desnecessária (muito pelo contrário). Não pelo fato de que não deva continuar, por homens e mulheres que representam as forças do bem, vocacionados para servir e proteger a sociedade (e que pagarão, muitos, com cicatrizes no corpo e na alma). Ela é inglória porque é desigual para alguns. Para os policiais.

O custo pago pelos policiais é altíssimo. Essa luta contra o crime cobra muito de alguns poucos. Em território paulista, o suicídio de policiais atingiu proporção epidêmica.

Mal remunerados, estressados, “valorizados” única e exclusivamente com a venda de todas suas folgas para complementar o baixo soldo, mediante adesão a Atividade Delegada (atuando junto a prefeituras, principalmente coibindo o comércio ambulante) e nas DEJEM (Diária Especial por Jornada Extraordinária de Trabalho Policial Militar), onde “o período de descanso” é utilizado para idêntico trabalho policial, para o Estado, com seus riscos e desgastes inerentes à missão.

Aliás, no dia 3 de outubro de 2020, 4 cabos da Polícia Militar, na Atividade Delegada (região central da capital paulista) foram agredidos com golpes de barras de ferro ao tentarem apreender mercadorias de vendedores ambulantes.

Sofreram diversas lesões e acabaram no hospital. Dias após, uma policial recebeu profundo corte na face, após ser agredida por ambulantes na Atividade Delegada também. Essa foi a “valorização” dada aos agentes da lei.

A Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo, em seu relatório Uma Análise Crítica Sobre Suicídio Policial (setembro de 2019), demonstrou que, no Brasil, a taxa média de suicídio para cada 100 mil habitantes é de 5.8. Sobre policiais, o relatório citado (e disponibilizado no site do Conselho Federal de Psicologia – CFP) menciona, levando em conta o número de policiais militares da ativa:

“Considerando o efetivo médio de 83 mil policiais militares no estado de São Paulo, as taxas de suicídio médias ano a ano foram: 19.3 em 2017 e 24.1 em 2018. Uma média de 21.7 por ano. Comparando a taxa média de suicídio policial em São Paulo com a taxa de suicídio na sociedade brasileira que é, em média, de 5.8, os policiais se suicidavam em uma proporção 4.5 vezes maior que no país.”

“Para a Organização Mundial de Saúde, quando se atinge a taxa de 10 suicídios para cada 100 mil habitantes é considerada uma situação epidêmica.”

“Na Polícia Militar, a taxa média de vitimização policial por suicídio em São Paulo, nos últimos dois anos, é de 21.7. Comparando esta taxa com a taxa de vitimização policial de policiais militares mortos por homicídio em serviço, que tem a média de 3.6, a taxa de suicídio policial na Polícia Militar é seis vezes maior que a taxa de homicídio em serviço.”

(fonte: https://site.cfp.org.br/estudo-aborda-o-suicidio-policial-no-estado-de-sao-paulo/ )

Recordamos que, em 2018, cometeram suicídio 19 (dezenove) policiais militares da ativa no período em que se encontravam de folga. No mesmo ano, 15 (quinze) veteranos abreviaram a própria vida.

Nota-se, também, que no Estado de São Paulo existem medidas para que, na prática, um veterano com décadas de serviço operacional (tão como viúvas e órfãos de policiais) acabem por receber menos do que policiais da ativa (que percebem a chamada Bonificação por Resultado).

A idéia que surgiu recentemente, conseqüência das “valorizações” dos anos anteriores, é a de recontratação de veteranos. Por sinal, nessa semana, o Projeto de Lei 529 / 2020 (que estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas), de autoria do governo do Estado de São Paulo, menciona:

 

“Estímulo aos Policiais Militares ativos para trabalharem nos períodos de descanso da escala de trabalho e dos policiais reformados para retornarem ao trabalho em atividades-meio, de forma a possibilitar a liberação de policiais ativos para as atividades-fim.”

O que sente um policial, que mal vê a família, pouco descansa, é “visto” pelo ente político que deveria apoiá-lo e valorizá-lo como somente mais “um número a ser disponibilizado no terreno” a trabalhar eternamente, que viu muitos dos seus parceiros abreviarem a própria vida e, mesmo assim se esforça para cumprir a missão de servir a sociedade, ao ver um criminoso como o poderoso traficante, sair pela porta de frente de um presídio, por decisão judicial (agora revertida) e desaparecer?

Essa é uma luta inglória por isso! Por mais que o policial trabalhe todos os dias, vendendo todas suas folgas (em São Paulo, as “valorizações), NUNCA poderia pagar por advogados do calibre que possui o traficante.

Se tomar uma única decisão errada (mesmo que a percepção esteja afetada pela exaustão e estresse) o policial responderá na justiça por seus atos. E pagará caro. Mas também percebe que as decisões “equivocadas” de outros não serão efetivamente cobradas da forma como são, quando recaem sobre os ombros do agente aplicador da lei.

Graças a Deus, ainda, existem aqueles que, fora dos gabinetes, se propõe a combater o crime. Que não se importam em colocar a vida em risco, mesmo que NUNCA sejam amparados por aqueles que justamente deveriam ser seus apoiadores (o Estado).

Que apesar de colocarem na cadeia aqueles que são nefastos para a sociedade, independentemente do poder financeiro que tenham os criminosos (ou mesmo a força que possui a facção que integram), também serão os responsáveis pela captura daqueles “equivocadamente” soltos.

Como já citamos em outras oportunidades, poucas frases foram mais lúcidas que a proferida pelo juiz de direito Alexandre Abrahão Dias Teixeira: “as ruas são diferentes dos gabinetes”.

Dimas Mecca Sampaio (policial militar e Deputado Estadual) e Flávio César Montebello Fabri (policial militar – reserva PMESP)

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