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Roberto Campos – O fim sem fim do Capitalismo

Roberto de Oliveira Campos Publicado Dezembro 1981
texto recuperado pelo Prof. Ricardo Bergamini


*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.

Poucas coisas têm sido mais profetizadas que o fim do capitalismo. Parafraseando Mark Twain, pode-se dizer que as notícias de sua morte são algo exageradas. Se duas lições a história nos ensina é, primeiro, que a história não é dialética: “o socialismo não sucedeu ao capitalismo”, para usar a expressão de Daniel Bell. E, segundo, que a crise do socialismo parece hoje mais séria que a do capitalismo. As coisas não se passaram exatamente como previa Marx. Não houve a “pauperização” do proletariado. O capitalismo monopolista sobreviveu à perda dos impérios. O socialismo não surgiu do proletariado industrial amadurecido, senão que resultou do comando de intelectuais revolucionários sobre massas primitivas. O Estado não feneceu nos países que supostamente eliminaram o conflito de classes.
 
De um simples dispositivo de espoliação econômico-feudal, burguesa ou industrial, o capitalismo evoluiu para se transformar num sistema trinitário, com três vetores distintos em tensão criadora pontilhada de avanços e retrocessos: o aspecto econômico, o político e o cultural. O socialismo marxista ao invés, partindo de uma ampla análise social, tornou-se um sistema monístico, em que esses diferentes valores se unificam e confundem, em rigidez pragmática. O socialismo, que nascera como ciência, virou religião. O capitalismo, que parecia, simples obsessão econômica, absorveu valores de credo liberal, e se revelou politicamente mais flexível e culturalmente mais diversificado.
 
Nenhum dos dois sistemas hoje existe, obviamente, em sua forma pura, o que torna os termos “capitalismo” e “socialismo” simplificações duvidosas. Mas não se deve exagerar a convergência dos dois sistemas. As “economias de mercado” são perfeitamente diferenciáveis das “economias de comando”, ainda que as primeiras tenham absorvido graus intensos de intervenção governamentais e as segundas comecem a admitir os sinais do mercado no tocante a preços incentivos. Isso é dramaticamente perceptível nas zonas de confrontação: Alemanha Ocidental versus Alemanha Oriental, Coréia do Norte versus Coréia do Sul, China Continental versus Taiwan, e assim por diante.
 
Se quisermos, para simplificar as coisas, especificar as diferenças que permanecem fundamentais, citemos duas. A primeira é que as “Economias de mercado” tendem a ser politicamente pluralistas, enquanto as “economias de comando” são basicamente monistas, isto é, o Partido define os valores econômicos, políticos e sociais. Uma segunda espécie de “marca de berços” é, como disse Irving Kristol, que na postulação socialista, o importante é a distribuição, antes que a produção. Com isso elide, ou pensa elidir, o problema vital dos “incentivos” materiais. Pequenas sociedades, como os kibbutzin de Israel e os mosteiros medievais, podem assim funcionar. As grandes sociedades perdem eficiência sem incentivos materiais e individuais. A preocupação distributiva explica em parte o secreto fascínio que o socialismo exerce sobre muitos cristãos, que assimilam distribuição à caridade. A tal ponto que se esquecem da face inaceitável do socialismo, isto é, seu antiespiritualismo de origem, implícito no materialismo dialético.
 
À busca de raízes éticas
 
Se o capitalismo, ou melhor, as “economias de mercado”, têm sobrevivido às “crises” profetizadas por Marx, assim como às “contradições culturais” denunciadas por Daniel Bell, resta saber a que necessidade básica correspondem. Para Hayek, a explicação é simples. Reside em ser o único sistema compatível com a liberdade do indivíduo. E a liberdade, definível como a “ausência de constrangimento”, é mais fundamental que a justiça, pois que esta depende de uma impraticável avaliação de mérito. Uma sociedade livre pode ser justa, enquanto uma sociedade não-livre nunca é justa, pois nega ao individuo oportunidade de auto-realização.
 
Poucos têm hoje a coragem libertária de Hayek e preferem assim outras justificativas para o “ethos capitalista”, em face da crueldade do mercado. Irving Kristol, por exemplo, lembra, sem endossá-las, três explicações tradicionais:
 
– A ética protestante, ou seja, o conceito weberiano de que o sucesso econômico se justifica em função do exercício de virtudes pessoais, como a inteligência, a sobriedade, a ambição honesta. (Esqueçamos, por inoportuno discuti-las, as teorias antiweberianas de que o capitalismo comercial nasceu nas cidades italianas, e a organização do trabalho horário nos mosteiros medievais, antecedendo assim a ética calvinista).
 
– A ética darwiniana, segundo a qual o sucesso representa uma solução natural, pela sobrevivência dos mais capazes.
 
– A ética tecnocrática, segundo a qual o mercado organiza sua própria meritocracia e premia a liderança em função da performance.
 
Nenhuma dessas explicações chega a constituir uma teologia moralmente tranqüilizadora, comprável ao fervor dogmático do socialismo.
 
O fato é que, seja pelas crueldades do mercado – onde fatores acidentais, como a herança, ou imperfeições políticas, como a discriminação racial, criam desigualdades chocantes – seja pelo contágio de pregação socialista (que melhora a igualdade mas retarda a eliminação da pobreza), o capitalismo moderno desenvolveu sua própria Angst, uma espécie de complexo de culpa. Exemplos desse complexo de culpa são a reação contra o “comunismo” e a “depredação ecológica“.
 
Isso revela no sistema capitalista ao mesmo tempo debilidade ideológica (que o torna menos exportável), e a flexibilidade pragmática (que o torna mais durável). Donde poder-se falar hoje nas “economias de mercado corrigido”, nas quais o mercado sofre intervenções que refletem as contínuas tensões resultantes que se poderia chamar o “triplica compromisso” entre riqueza individual, equidade social e liberdade política. O mercado privado seria o criador de riqueza, o governo, o promotor de equidade, e o sistema democrático, o preservador da liberdade. A sucessão de fases intervencionistas e libertárias na Europa Ocidental, assim como nos Estados Unidos, caracterizadas pela alternância de partidos sociais-democráticos ou conservadores, conforme predominam preocupações produtivistas ou distributivistas, denotam as cambiantes predominâncias dos elementos constitutivos do tríplice compromisso.
 
A superposição de crises
 
Tendo sobrevivido a inúmeras crises no passado, inclusive o vendaval da Grande Depressão dos anos trinta, há poucas dívidas de que as economias de mercado sobrevivam à presente crise de estagflação. Registrem-se entretanto três complicadores. Primeiro, a adaptação ao choque do petróleo requer ajustamentos de estrutura, e não apenas remédios de conjuntura. Segundo, há uma grande perplexidade doutrinária, pelo desaparecimento de antigas certezas sobre métodos de gerenciamento global da economia. Terceiro, as sociedades ocidentais, habituadas a um quarto de século de avanço continuo na renda real, tem percepção mais aguda daquilo que se chama o “índice de desconforto”, medida compósita do grau de inflação e do índice de desemprego, aos quais se agrega o novo conceito de deterioração ambiental. Da mesma maneira que os países em desenvolvimento foram sacudidos pela “revolução das expectativas crescentes”, os países industrializados foram atacados pela presunção de “direitos crescentes” (the “Revolution of rising entitlements”).
 
Limitaremos nossa análise à desordem conceitual que se instalou nas teorias econômicas, onde se podem citar quatro controvérsias intensificadas pela teimosa persistência da estagflação:
 
– a controvérsia entre gradualismo e tratamento de choque;
                                                                                                                        
– o debate entre monetarismo e keynesianismo;
 
– as novas teorias de “administração da oferta” (supply side economics); e
 
– a ressurreição dos ciclos de longo prazo (a teoria da “onda larga” de Kondratieff, economista russo da década dos vinte).
 
A controvérsia do gradualismo versus tratamento de choque tornou-se cada vez menos interessante. O bom senso indica que o tratamento de choque só não transpõe o limite de tolerância política se a inflação é moderada, e se as expectativas não se tornaram cronicamente viciadas, de modo a permitir que o trauma recessivo seja curto. Caso contrário, as sociedades estão condenadas ao gradualismo. O que é importante, como nota o Professor William Fellner, é que seja um “gradualismo a velocidade perceptível”, isto é, suficiente para modificar as expectativas. 
 
A reativação da controvérsia entre monetarismo e keynesianismo foi conseqüência direta da estagflação. Por longo tempo no pós-guerra o Keynesianismo ganhou foros de ortodoxia, principalmente no mundo anglo-saxão (no continente europeu a escola austríaca manteve a tradição monetarista). A renitência da inflação e a incapacidade do keynesianismo de debelá-la provocaram uma ressurreição neomonetarista, com experimentos monetaristas ensaiados na Inglaterra e Estados Unidos, encorajados pela evidência de que os países mais bem-sucedidos na luta contra a inflação – Suíça, Alemanha e Japão – foram os que menos se haviam exposto à contaminação keynesiana.
 
A nouvelle vague nos Estados Unidos é a administração da oferta – “supply side economics”. A ênfase sobre a oferta é válida se interpretada como complemento e não como substitutivo da “administração da procura”. A “supply side economics” é, entretanto mais que simples metodologia. Aspira a ser uma filosofia de reabilitação do ethos capitalista, pela liberação das energias do produtor, restauração de incentivos à poupança e produtividade, estímulo à concorrência, redução de interferência governamental, seja assistencial, seja regulatória. (Os exageros da mania ecológica – a “economia” – nos Estados Unidos encareceram e retardaram investimentos).
 
A intratabilidade da atual fase de estagflação ressuscitou velhas teorias sobre ciclos econômicos, que a contínua prosperidade do pós-guerra parecia haver arquivado. Segundo o Professor Walter Rostow, a explosão dos preços de trigo, petróleo e outras matérias-primas em 1972/1973 prenuncia o advento de uma nova onda larga da conjuntura, o quinto ciclo Kondratieff, marcado pela relativa escassez de matérias-primas, especialmente energia. Como é sabido, o economista russo Kondratieff (que segundo Soljenitzn teria morrido num gulag) escrevendo na década de 20, identificara no exame de sérias estatísticas, relativas à Grão-Bretanha, França e Estados Unidos, a existência de ciclos ascendentes e descendentes de produção e preços num espaço de 40 e 50 anos entre 1790 e 1920.
 
Na extrapolação de Rostow, a Grande Depressão dos anos trinta marcaria a fase descendente do terceiro Kondratieff, enquanto o período recente (1972/79) marcaria o começo do ramo ascendente do quinto Kondrafieff. Nessa visão, as crises não seriam o canto de cisne do capitalismo e sim episódios de uma evidência evolutiva. É interessante anotar os pontos de convergência entre uma interpretação à la Kondratieff e a presente busca de uma teoria de “administração de oferta”. Pois se estamos no limiar de um novo Ciclo Kondratieff, caracterizado pela relativa escassez de produção primária e energia, a política adequada não deveria ser macroeconômica, nem no sentido monetarista de simples administração de procura nem no sentido keynesiano de estímulo global a investimentos, senão que direcionada seletivamente para o aumento da oferta setorial de matérias-primas e energias alternativas. A reorientação seletiva de investimentos, no sentido do rompimento de gargalos, representaria uma conciliação entre a necessidade antiinflacionária de conter a demanda global e a necessidade anti-recessiva de estimular a oferta.
 
Mas se o capitalismo hodierno superpõe às perplexidades da estagflação uma desorientação conceitual, o panorama não é nada melhor no campo socialista. O marxismo deixou de ser ciência para transformar-se em dogma. Sua eficiência ficou limitada à quebra de moldes feudais em sociedades primitivas. É uma técnica de conquista do poder mas não de organização do desenvolvimento. O planejamento centralista infirmou a criatividade tecnológica (exceto, no caso soviético, no tocante à tecnologia militar espacial), enquanto que o emudecimento dos sinais do mercado entorpece a agricultura, os serviços e as indústrias de bens de consumo. A falta do elo dos incentivos na corrente produtiva acabou prejudicando a distribuição e tornando as economias socialistas menos desiguais, porém globalmente mais pobres que as economias de mercado. O êxito do desempenho econômico tem estado na razão inversa e não na razão direta da ortodoxia socialista. Uma visão retrospectiva justifica a dúvida se a Revolução Socialista de 1917, pago o pesado preço de sua brutalidade política, conseguiu no fundo acelerar o desenvolvimento russo, comparativamente ao processo evolutivo das democracias ocidentais. Talvez Houphouet-Boigny, o astuto Presidente da Cota do Marfim, tenha feito mais que uma piada ao dizer que há um “r” sobrando na palavra “revolução”…..
 

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