Diplomacia – O Brasil disse com quem anda

Conexão Diplomática – Silvio Queiroz


Tem várias camadas de leitura a abstenção do Brasil na votação da última terça-feira, em que uma resolução condenando o regime sírio foi vetada no Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. A mais imediata e superficial é a dos alinhamentos geopolíticos, e nela fica realçado um traço firme de continuidade com a política externa da dupla Lula-Amorim: a consolidação de um sistema internacional com polos de poder múltiplos e não excludentes, inclusive com áreas de interseção. No popular, o país joga ativamente pela quebra da hegemonia de Estados Unidos e Europa nos foros multilaterais, somando forças com quem tope a empreitada.

Nesse plano de análise se assenta a orientação de voto que a presidente Dilma e o chanceler Patriota passaram, de Bruxelas, à embaixadora Maria Luíza Viotti, que chefia a missão na ONU(na foto, com os colegas da Turquia e do Líbano). Até o debate no CS, diplomatas brasileiros faziam a ponte entre o bloco euro-americano e a "frente de rejeição" russo-chinesa, a exemplo de quando foi aprovada uma declaração sobre a crise síria, no mês passado. E parecia que, mais uma vez, tinha sido encontrada uma redação satisfatória.

Pesou na abstenção a aposta, feita desde o início do ano, em concatenar as ações no conselho com os parceiros no bloco dos Brics. Colocado entre dois campos antagônicos, o governo brasileiro optou por não bater de frente com Rússia e China. Ainda mais decisiva foi a determinação de acompanhar Índia e África do Sul, que completam os Brics, mas formam com o Brasil o Fórum Ibas — uma iniciativa até mais consistente e íntima, na qual o Planalto e o Itamaraty veem potencial para amplificar o alcance da intervenção do país no cenário global.

Precedente líbio

Em outra esfera de interpretação, o voto de abstenção no projeto sobre a Síria se remete à mesma linha de resistência exposta em março, quando o CS autorizou a ação militar contra Kadafi, na Líbia. Na ocasião, Moscou e Pequim apenas se abstiveram, permitindo que a resolução passasse. Agora, todos os cinco Brics acusam a Otan, braço militar do bloco atlântico, de ter aproveitado a cobertura legal da ONU para interferir em uma guerra civil e, no fim das contas, promover a mudança de regime.

O veto da semana que passou teve o propósito de sepultar o caso líbio como precedente para intervenções futuras. E a abstenção conjunta do Ibas se insinuou como tentativa de fazer coro com os parceiros do Brics sem sinalizar indiferença ou tolerância para com as tropelias do regime de Damasco.

Prévia da Palestina

Há ainda quem tenha visto, na votação sobre a Síria, uma projeção de como poderá transcorrer a decisão sobre o pedido de ingresso da Palestina como membro pleno das Nações Unidas. O jogo de pressões nos bastidores do CS é sempre duro, como exemplifica o voto sul-africano a favor da ação contra Kadafi — em dissonância com os parceiros do Ibas e do Brics. Mas há uma expectativa consistente de que os palestinos contem com os nove votos exigidos para a aprovação, o que obrigará os EUA a recorrerem ao veto em defesa de Israel. Quase num espelho da divisão de votos observada na última terça, não será surpresa uma abstenção de França e Reino Unido: Nicolas Sarkozy e David Cameron deixam para o parceiro Barack Obama o ônus de frustrar o estabelecimento do 194º Estado-membro da ONU, que ele próprio quase anunciara na Assembleia Geral de 2010…

Libertadores da América

Por sinal, se desenha nas próximas semanas uma batalha acirrada pelos últimos votos indefinidos entre os 15 membros do CS, e em uma das frentes o Brasil teria sido escalado pela Autoridade Palestina para disputar com Washington a adesão da Colômbia. O presidente da AP, Mahmud Abbas, desembarca em Bogotá nesta semana para interceder tête-à-tête com o colega Juan Manuel Santos. E, segundo o jornal israelense Haaretz, a diplomacia brasileira também empenha seu prestígio no esforço para afinar o tom do único vizinho sul-americano que destoa na questão palestina.

Crescente fértil

O apoio à Palestina é, no momento, a convergência mais visível do Brasil com a Turquia, outro parceiro no qual o Itamaraty enxerga o potencial de aproximar o país das questões do Oriente Médio — e não apenas numa perspectiva imediata. O governo de Ancara, por exemplo, apoia o ingresso do Brasil como observador na Organização da Cooperação Islâmica, um foro cujo peso está na diversidade: são 56 países-membros da umma (a comunidade muçulmana, em árabe), que se estende do Marrocos à Indonésia. Nela, o Brasil tem cultivado relações também com o Irã, que forma com Turquia e Indonésia o tripé das potências não árabes, em contrapeso à monarquia saudita. A recíproca é o voto declarado na candidatura turca para uma das cadeiras não permanentes do Conselho de Segurança no biênio 2015-2016.

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