Por: Rui MARTINS da MOTA, MARS ✠ Senior Staff
1. Introdução – A Zona Cinza como Campo de Batalha
A crise entre os Estados Unidos e a Venezuela em 2025 não pode ser compreendida como o prenúncio de uma guerra convencional entre Estados soberanos, mas sim como um episódio paradigmático daquilo que a doutrina contemporânea vem denominando de Guerra Híbrida e eu, pessoalmente, prefiro chamar de Guerra Furtiva, pelos motivos já apresentados em outros trabalhos anteriores.
Nesse tipo de conflito, as ações não se desenrolam no campo aberto da batalha clássica, mas no espectro da chamada Zona Cinza, espaço híbrido em que as fronteiras entre paz e guerra, legalidade e clandestinidade, se tornam deliberadamente difusas. Trata-se de uma arena em que incidentes controlados, operações psicológicas, pressões econômicas, campanhas de desinformação e o uso seletivo da força convergem para produzir resultados estratégicos sem a necessidade de uma declaração formal de guerra.
Nesse sentido, eventos recentes como o ataque naval contra embarcações ligadas ao grupo criminoso transnacional Tren de Aragua ou os sobrevôos de caças F-16 venezuelanos sobre o destróier norte-americano USS Jason Dunham não devem ser interpretados como atos preparatórios de uma invasão, mas como gestos teatrais.
São manifestações cuidadosamente encenadas para alimentar narrativas, tanto internas quanto externas, destinadas a reforçar percepções de legitimidade, projetar força e, sobretudo, criar casus belli seletivos que justifiquem ações futuras. Essa teatralização da guerra, que transforma incidentes limitados em instrumentos de manipulação cognitiva, é característica central dos conflitos assimétricos do século XXI e revela como o campo de batalha se deslocou do terreno físico para o espaço informacional e psicológico.
A presente análise sustenta-se em um cruzamento metodológico entre fontes abertas de alta confiabilidade — relatórios diplomáticos, comunicados oficiais, informações de imprensa especializada — e dados provenientes de fontes humanas (HUMINT) confiáveis, que permitem avaliar o ambiente interno da Venezuela com maior precisão.
Essa triangulação de informações é indispensável porque a própria natureza da guerra furtiva impede a observação direta e transparente dos acontecimentos: a dissimulação, a negação plausível e o mascaramento da intenção são elementos centrais da estratégia. Assim, compreender a crise exige ir além dos sinais superficiais e examinar como Washington e Caracas mobilizam instrumentos não convencionais para moldar percepções, fragilizar instituições e manipular o ritmo da escalada.
A hipótese que guia esta introdução é clara: a crise EUA–Venezuela configura-se como uma operação de mudança de regime conduzida por meios indiretos, na qual o poder militar convencional assume papel secundário.
O eixo da disputa encontra-se na capacidade dos Estados Unidos de explorar as vulnerabilidades políticas, econômicas e psicossociais do regime de Nicolás Maduro, pressionando suas fissuras internas até precipitar a implosão do sistema, enquanto mantém, ao mesmo tempo, a hegemonia hemisférica sem recorrer à ocupação prolongada.
A análise das forças norte-americanas e da deterioração estrutural da Venezuela permitirá compreender como se articula essa estratégia de erosão controlada, cujos efeitos ultrapassam o plano nacional e repercutem diretamente na segurança hemisférica.
2. Venezuela – Uma Fortaleza Sitiada por Dentro
A Venezuela, no centro desta crise, apresenta-se como uma fortaleza sitiada por dentro, cuja estrutura de poder é sustentada por um núcleo restrito e profundamente fechado. Nicolás Maduro, Cília Flores, Diosdado Cabello, Vladimir Padrino López e os irmãos Jorge e Delcy Rodríguez formam a elite dirigente que controla os mecanismos do Estado e concentra em suas mãos a sobrevivência do regime.

Essa coesão aparente, no entanto, é permeada por fissuras internas latentes, pela perda da legitimidade social
e pela incapacidade de engendrar um projeto nacional além da própria autoconservação.
O poder não se sustenta no consenso, mas sim na coerção, na rotatividade de cargos que impede a formação de facções rivais, na manipulação de narrativas “anti-imperialistas” e no apoio estratégico de Cuba, Rússia e Irã, atores externos que oferecem consultoria, tecnologia limitada e respaldo político, mas que, aparentemente, não se dispõem a intervir de forma decisiva em favor de Caracas.
Do ponto de vista político, o regime é marcado por uma legitimidade corroída, sobretudo após as eleições de 2024, amplamente contestadas pela comunidade internacional e denunciadas como fraudulentas por parte da própria oposição interna.
A governança transformou-se em um exercício de cleptocracia, no qual as decisões não têm como horizonte o desenvolvimento nacional, mas a perpetuação da elite no poder.
O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) tornou-se uma máquina de sustentação clientelista, enquanto o Estado, capturado, perdeu sua capacidade de prover serviços básicos, deixando um vazio que é ocupado pelo crime organizado e por estruturas paralelas de poder.
Na dimensão econômica, a contradição é gritante. Apesar de deter as maiores reservas comprovadas de petróleo do planeta, a Venezuela encontra-se mergulhada em uma crise estrutural que inviabiliza o pleno uso dessa riqueza.
O colapso da Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA), corroída por má gestão e corrupção, aliado às sanções internacionais que restringem exportações e acesso a capitais, reduziu drasticamente a capacidade produtiva.
O resultado é uma economia criminalizada, sustentada em grande medida pela mineração ilegal de ouro e coltan e pelo narcotráfico, setores dominados por redes criminosas que mantêm relações ambíguas com segmentos do próprio regime.
As sanções impostas por Washington, como a expiração das Licenças Gerais 8 e 41B, têm impacto limitado sobre a elite no poder, mas agravam a crise humanitária, deteriorando as condições de vida da população e alimentando um êxodo migratório que já ultrapassa sete milhões de pessoas.
No campo militar, a Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) simboliza o paradoxo da abundância numérica e da impotência operacional. Embora disponha de efetivos consideráveis, sua estrutura é corroída pela falta de manutenção, pela precariedade logística e por baixos estoques de munição.
A maior parte de seu poder é orientada para a repressão interna e para o controle social, e não para a defesa externa. Os sistemas de defesa antiaérea de origem russa, como os S-300, e a frota de caças, composta em parte por F-16 da década de 1980, estão tecnologicamente obsoletos e incapazes de representar qualquer dissuasão real frente à superioridade norte- americana.
A hierarquia militar é controlada por um sistema de lealdades compradas, com privilégios e postos distribuídos de forma a neutralizar eventuais dissidências, mas a coesão interna é cada vez mais artificial. Há, ainda, a Milícia Bolivariana, apresentada como números de milhões de integrantes. Esta, no entanto, possui vocação e
capacidade somente de controle ideológico interno sobre a população venezuelana, sem as mínimas possibilidades de emprego operacional, a não ser de apoio logístico muito limitado.
A dimensão psicossocial revela um regime que substituiu o consentimento popular por propaganda e coerção. O Estado promove uma narrativa permanente de cerco imperialista, encenando festivais patrióticos e mobilizações em torno da disputa do Essequibo para reforçar a identidade nacional em oposição aos Estados Unidos e à
Guiana.
Eventos como o chamado “Essequibo Fest” não são demonstrações autênticas de patriotismo, mas sim instrumentos de manipulação psicológica, destinados a produzir uma coesão artificial em meio ao esfacelamento da confiança social.
Essa estratégia, contudo, tem efeito limitado: não é capaz de deter a erosão da moral coletiva, tampouco
de interromper o fluxo contínuo de emigração que esvazia o capital humano do país e mina as bases de sua sobrevivência futura.
A Venezuela, portanto, apresenta-se como um Estado em que as cinco expressões do Poder Nacional — política, econômica, psicossocial, militar e científico-tecnológica — estão gravemente comprometidas.
Politicamente isolado, economicamente inviabilizado, psicossocialmente desmoralizado, militarmente
fragilizado e tecnologicamente dependente, o regime de Maduro não é uma fortaleza inexpugnável, mas uma estrutura sitiada por suas próprias contradições internas.
Essa vulnerabilidade constitui exatamente o espaço explorado pela estratégia norte-americana de Guerra Furtiva, que identifica nessas fissuras a oportunidade de conduzir um processo de erosão gradual até a eventual implosão do sistema, sem recorrer à invasão direta ou ao confronto aberto.
3. Estados Unidos – A Estratégia de Guerra Furtiva
A postura norte-americana diante da crise venezuelana revela a consolidação de um método que se tornou característico de sua atuação no século XXI: o uso da Guerra Furtiva como instrumento de poder, em substituição às invasões convencionais de alto custo político e humano.

Washington, ao invés de lançar mão de operações militares em larga escala, opta por uma campanha de pressão multidimensional que combina a presença dissuasória de meios convencionais com a primazia de operações especiais, inteligência estratégica e instrumentos de coerção econômica e informacional.
Esse arranjo permite que os Estados Unidos preservem sua hegemonia hemisférica sem se expor ao desgaste que historicamente marcou intervenções diretas, como as do Iraque e do Afeganistão.
Nesse contexto, a movimentação de meios militares no Caribe – incluindo a presença da 22ª Marine Expeditionary Unit, destróieres e submarinos de ataque, além do deslocamento de aeronaves F-35 para Porto Rico – não deve ser interpretada como preparação para uma invasão de Caracas, mas como demonstração controlada de capacidade.
Esses ativos têm dupla função: no plano externo, servem para dissuadir qualquer aventura militar venezuelana contra a Guiana, especialmente na disputa pelo Essequibo; no plano interno, projetam para a comunidade internacional e para os próprios venezuelanos a imagem de que o regime de Maduro enfrenta uma ameaça existencial que está além de sua capacidade de confrontar.
Trata-se de uma coreografia militar calculada, em que a simples presença física das forças norte-americanas gera o efeito psicológico de paralisar a iniciativa adversária, reafirmando a lógica da superioridade sem recorrer ao embate direto.
No entanto, o verdadeiro centro de gravidade da estratégia dos Estados Unidos não se encontra nos meios convencionais, mas sim no emprego dos seus meios de Guerra furtiva, em particular das Forças de Operações Especiais (SOF).
Essas unidades, altamente treinadas e integradas com sistemas de inteligência, vigilância e reconhecimento (ISR), configuram a principal ferramenta para a execução de ações seletivas, cirúrgicas e furtivas. Washington preserva a opção de desencadear incursões limitadas contra alvos de alto valor – desde centros de comando e controle até lideranças políticas e militares – numa lógica de “decapitation strikes” capazes de provocar choques
internos e acelerar a desagregação do regime.
Ainda mais relevante é a capacidade das SOF e da Inteligência de atuar como catalisadoras de fissuras, identificando dissidências no interior da FANB, oferecendo treinamento clandestino a forças rivais ou até mesmo
apoiando movimentos internos de contestação armada.
O potencial multiplicador dessas forças, quando combinado à guerra de informação e à pressão diplomática, transforma pequenos grupos dissidentes em instrumentos estratégicos de alto impacto, exatamente o que caracteriza a essência da Guerra Furtiva.
A dimensão informacional e psicológica dessa estratégia merece atenção particular. As Operações de Informação (InfoOps) e as Operações Psicológicas (PsyOps) são utilizadas para reforçar a percepção de que o regime é frágil, ilegítimo e condenado ao colapso.
Relatos de deserções, disputas internas e crises na cadeia de comando são amplificados por canais de comunicação coordenados, enquanto narrativas que destacam a corrupção e a criminalização do Estado venezuelano circulam como munição política destinada a corroer a já abalada confiança social.
Ao mesmo tempo, mensagens dirigidas ao interior da FANB buscam fomentar a desobediência e a quebra de lealdade, promovendo uma guerra invisível nas mentes dos atores-chave.
A batalha, nesse sentido, desloca-se do campo físico para o cognitivo, em perfeita consonância com a teoria das guerras híbridas e com a prática consolidada das forças norte-americanas no combate irregular.
Outro elemento central da estratégia norte-americana é a exploração das fissuras internas do regime venezuelano. Washington não precisa provocar uma guerra aberta para atingir seus objetivos: basta acelerar os processos de implosão que já estão em curso.
A inteligência norte-americana, alimentada por fontes abertas e HUMINT, concentra-se em monitorar os sinais vitais do regime – deserções, expurgos, disputas entre generais, resistências internas ao núcleo do PSUV – e em transformá-los em alavancas de pressão.
Esse acompanhamento permite calibrar sanções, ajustar campanhas de informação e, quando necessário, oferecer canais discretos de negociação ou cooptação. A lógica é simples: enfraquecer a coesão até que a estrutura caia por dentro, reduzindo o custo político de qualquer intervenção externa.
Por fim, a estratégia dos Estados Unidos também revela um movimento mais amplo de preservação de sua hegemonia hemisférica. O colapso da Venezuela não é apenas a queda de um regime hostil, mas um aviso estratégico de que nenhuma potência extrarregional – seja Rússia, China ou Irã – terá espaço para consolidar influência no “quintal estratégico” norte-americano.
A pressão sobre Caracas serve, assim, como mensagem de reafirmação da Doutrina Monroe em versão contemporânea, atualizada pela linguagem da Guerra Furtiva e pela primazia das operações especiais. O recado é claro: a América do Sul permanece sob a esfera de segurança dos Estados Unidos, e qualquer tentativa de infiltração hostil será contida por meios assimétricos, furtivos e de baixo custo.
Assim, a análise da postura norte-americana mostra que os Estados Unidos não buscam uma guerra aberta contra a Venezuela, mas sim uma vitória estratégica na Zona Cinza. Sua campanha é projetada para minar gradualmente a capacidade de resistência do regime de Maduro, combinando presença militar dissuasória, inteligência avançada, operações especiais e ação informacional. Trata-se de uma estratégia de longo alcance
que, ao mesmo tempo em que preserva a imagem internacional de Washington, garante a reconfiguração da segurança hemisférica de forma quase imperceptível, mas não menos decisiva.
Embora a estratégia norte-americana revele coerência no emprego da Guerra Furtiva, é impossível ignorar o fator de imprevisibilidade associado ao presidente Donald Trump.
Seu estilo de liderança na política externa é marcado por um padrão de negociação duro, confrontativo e pouco afeito à mediação tradicional. Muitas vezes prescinde do assessoramento técnico das áreas de Relações Internacionais e Defesa, preferindo pautar-se por instinto, vaidade e cálculo imediato de ganhos políticos internos.
Essa postura reforça sua imagem de negociador implacável, mas, ao mesmo tempo, amplia a margem para decisões abruptas e de alto risco, tomadas sem a devida “paciência estratégica” que costuma caracterizar a diplomacia norte-americana. Essa combinação torna o curso da crise especialmente sensível a impulsos pessoais, criando a possibilidade de reviravoltas súbitas que podem desestabilizar a lógica planejada de contenção.
Nesse contexto, ganha relevo também o papel de Marco Rubio, também senador da Flórida e conselheiro de peso na formulação da política externa em relação à Venezuela. Sua forte ligação com a comunidade latino-caribenha confere legitimidade política adicional ao tema, reforçando sua centralidade na agenda de Washington.
A convergência entre a imprevisibilidade de Trump e a capacidade de Rubio de pautar a questão venezuelana torna o cenário ainda mais instável e sujeito a oscilações de difícil previsão.
4. Contexto Hemisférico e Internacional – Isolamento, Contenção e Projeção de Força
A crise entre Estados Unidos e Venezuela, embora tenha epicentro em Caracas e Washington, projeta efeitos muito além das fronteiras nacionais e deve ser entendida dentro de um contexto hemisférico e internacional marcado por isolamento diplomático, contenção regional e disputas por projeção de força.

Na América do Sul, o regime de Nicolás Maduro encontra-se cada vez mais isolado, tendo perdido a capacidade de mobilizar alianças regionais consistentes e reduzido seus espaços de negociação a uma retórica inflamada que serve mais ao consumo interno do que à construção de parcerias externas.
Os mediadores tradicionais do subcontinente, como Brasil e Colômbia, ainda tentam oferecer vias diplomáticas para evitar uma escalada, mas sua influência sobre Caracas é limitada pela falta de confiança do regime, que os enxerga mais como instrumentos indiretos da pressão norte-americana do que como interlocutores legítimos.
Esse vácuo de mediação eficaz reforça a sensação de cerco que o regime venezuelano alimenta em sua narrativa, ao mesmo tempo em que restringe suas margens de manobra política.
No plano internacional, a Organização das Nações Unidas enfrenta sérias limitações para atuar de forma efetiva. Restringida a operações de caráter humanitário, a ONU evita medidas políticas mais contundentes sob risco de expulsão de suas agências do território venezuelano, como já ocorreu em outras situações de regimes
autoritários.
O Conselho de Segurança permanece paralisado pela divergência entre Estados Unidos, Rússia e China, que bloqueiam mutuamente qualquer iniciativa que vá além das declarações protocolares. Esse cenário de inércia institucional favorece a perpetuação da crise e oferece a Washington a oportunidade de moldar o curso dos acontecimentos sem o constrangimento de uma supervisão multilateral efetiva.
Rússia e China, por sua vez, mantêm a retórica de apoio ao regime de Maduro, mas seu envolvimento prático não ultrapassa a esfera da cooperação técnica limitada, da venda de equipamentos e da defesa diplomática em fóruns multilaterais.
Moscou, atolada no prolongado conflito da Ucrânia, não dispõe de recursos militares ou econômicos para sustentar uma presença significativa no hemisfério ocidental. Pequim, embora tenha interesses econômicos relevantes na América Latina, adota uma postura cautelosa e pragmática: evita confrontar frontalmente os Estados Unidos em seu próprio entorno estratégico e prefere manter suas apostas em investimentos de longo prazo, sobretudo em infraestrutura e energia.
Assim, tanto Rússia quanto China funcionam como escudos retóricos para Caracas, mas não como garantias reais de defesa em caso de escalada militar.
Nesse tabuleiro, a questão do Essequibo ocupa papel simbólico mais do que operacional. A reivindicação venezuelana sobre o território em disputa com a Guiana é mobilizada como bandeira nacionalista para consolidar a narrativa de Maduro contra um inimigo externo e justificar a mobilização militar e social interna.
Contudo, qualquer tentativa de ofensiva efetiva sobre o Essequibo está condenada ao fracasso pela absoluta incapacidade logística da FANB e pela certeza de uma resposta imediata dos Estados Unidos.
A ameaça ao território guianense, portanto, funciona mais como instrumento de propaganda e manipulação psicossocial do que como um objetivo militar concreto, reafirmando a lógica da guerra narrativa em que o regime se apoia.
No entanto, os efeitos humanitários da crise se projetam para além da retórica e constituem um risco real para a estabilidade hemisférica. O êxodo venezuelano, que já ultrapassa sete milhões de pessoas, tende a se intensificar diante de qualquer agravamento do quadro político ou econômico, pressionando as frágeis fronteiras da Colômbia, do Brasil e dos países caribenhos.
Essa dimensão humanitária tem um duplo efeito: por um lado, aprofunda a instabilidade social e a pressão sobre serviços públicos nos países receptores; por outro, amplia a percepção internacional de colapso, reforçando o argumento de Washington de que a continuidade do regime Maduro representa não apenas uma ameaça interna, mas um problema de segurança regional e internacional.
Dessa forma, o contexto hemisférico e internacional da crise reforça a posição estratégica dos Estados Unidos e restringe drasticamente as opções de Caracas. A ausência de mediadores eficazes, a paralisia da ONU, o apoio retórico mas limitado de Rússia e China, a instrumentalização simbólica do Essequibo e a pressão crescente da
diáspora convergem para isolar a Venezuela e legitimar a narrativa norte-americana de que a mudança de regime é não apenas inevitável, mas necessária.
O resultado é a consolidação de um cenário no qual o regime bolivariano resiste cada vez mais cercado,
sem aliados efetivos, sem capacidade de contra-ataque e dependente de uma retórica que já não encontra eco suficiente para reverter a lógica de sua erosão interna e internacional.
Em resumo, teríamos o seguinte quadro:
- América do Sul: Brasil e Colômbia priorizariam gestão migratória e a defesa de fronteiras enquanto o CARICOM buscaria neutralidade;
- ONU: limitada a assistência humanitária seria incapaz de mediar politicamente;
- Atores Extra-Hemisféricos: Rússia e China ofereceriam apoio retórico e tecnológico, mas não interfeririam militarmente;
- Essequibo: seria apenas uma bandeira nacionalista útil ao regime, mas logisticamente inviável para ofensiva venezuelana, até porque qualquer ataque seria rapidamente neutralizado pelos EUA; e
- Efeito Humanitário: risco de intensificação da diáspora (já superior a 7 milhões) pressionaria países vizinhos e ameaçaria a estabilidade regional.
5. Cenários Prospectivos – Contenção, Escalada e Descompressão
A leitura prospectiva da crise entre Estados Unidos e Venezuela revela um horizonte de possibilidades que não pode ser compreendido apenas pela lógica binária da guerra ou da paz, mas sim como um continuum de tensões moduladas pela capacidade de Washington em calibrar pressões e pela habilidade limitada de Caracas
em resistir.
1) Cenário Mais Provável – Contenção e Teatro Narrativo (55%)
- Curto prazo: gestos simbólicos substituem ação militar direta; EUA mantêm dissuasão ativa.
- Médio prazo: sanções calibradas e repressão interna consolidam o impasse. Resultado: estagnação prolongada e agravamento humanitário.
O cenário mais provável, sustentado por fontes abertas e confirmando impressões oriundas de fontes humanas, é o da contenção prolongada, no qual gestos teatrais, exercícios militares e retórica inflamada substituem o confronto direto.
Nesse quadro, ambos os lados mantêm a tensão em níveis controlados: a Venezuela insiste na narrativa do cerco imperialista e utiliza o Essequibo como bandeira simbólica para mobilizar apoios internos, enquanto os Estados Unidos preservam sua postura de dissuasão ativa, deixando claro que qualquer aventura militar será respondida de forma imediata e devastadora.
O resultado dessa contenção não é a resolução do conflito, mas a sua perpetuação em estado latente, acompanhado pelo agravamento da crise humanitária e pela aceleração do êxodo populacional.
2) Cenário de Alto Impacto – Incidente Letal e Decapitação (20%)
- Curto prazo: incidente tático (ex. abate de aeronave) gera casus belli para incursão cirúrgica de SOF contra a liderança.
- Médio prazo: bloqueios ampliados e maior dependência venezuelana de Rússia e Irã. Risco elevado de spillover na Colômbia e Guiana.
Entretanto, não se pode descartar a possibilidade de uma escalada repentina, fruto de um incidente letal que funcione como catalisador para uma resposta cirúrgica norte-americana.
O abate de uma aeronave, a morte de militares em confronto ou um ataque não autorizado no mar do Caribe poderiam fornecer a Washington o casus belli necessário para executar operações de decapitação do regime contra a liderança política e militar de Caracas.
Esse cenário, embora menos provável, seria de altíssimo impacto. Nele, as Forças de Operações Especiais (SOF) dos Estados Unidos, apoiadas por ativos convencionais em prontidão, realizariam ataques seletivos com o objetivo de neutralizar centros de comando e impor uma paralisia decisiva ao regime.
A reação venezuelana, previsivelmente limitada, consistiria em reforçar vínculos retóricos com Moscou e Teerã,
mas não alteraria o curso da ofensiva, servindo apenas para aprofundar o isolamento do país. Esse quadro de escalada limitada, embora curto em duração, ampliaria enormemente os riscos de transbordamento para Colômbia e Guiana, elevando o grau de instabilidade regional e pressionando ainda mais os mecanismos de resposta humanitária.
3) Cenário de Alívio Tático – Descompressão com Concessões (25%)
- Curto prazo: acordos discretos permitem extensão de licenças econômicas (gás, petróleo).
- Médio prazo: concessões verificáveis em narcotráfico e direitos humanos resultam em alívio parcial das sanções, sem mudança de regime.
Por outro lado, também permanece aberto o caminho de uma descompressão tática, resultado de negociações discretas e concessões pontuais.
Nesse cenário, Maduro buscaria ganhar tempo e aliviar a pressão externa por meio de acordos seletivos, como a extensão de licenças para exportação de gás e petróleo, ou compromissos mínimos na área de combate ao narcotráfico.
Essa estratégia não implicaria em mudança estrutural do regime, mas sim em um alívio parcial que permitiria a continuidade de sua sobrevivência política. Para os Estados Unidos, a manutenção de um adversário enfraquecido, mas ainda funcional, poderia ser vantajosa no curto prazo, evitando os custos de uma intervenção direta e garantindo que Caracas continue a operar sob forte vigilância. Trata-se de uma saída temporária, que não resolve a crise, mas que pode retardar sua explosão, sobretudo em função de pressões internacionais e preocupações com os efeitos colaterais de um colapso abrupto.
A análise dessas possibilidades demonstra que a crise não se desenrola em linhas retas, mas em curvas sinuosas que se alimentam da própria lógica da Guerra Furtiva. A contenção prolongada garante a continuidade da narrativa estratégica, a escalada controlada oferece a oportunidade de uma vitória cirúrgica e a descompressão parcial preserva o jogo de pressões sem romper totalmente com o adversário.
Em qualquer dos cenários, no entanto, a Venezuela aparece não como sujeito ativo capaz de determinar seu destino, mas como objeto da disputa geopolítica, aprisionada entre a sua própria fragilidade interna e a capacidade hegemônica norte-americana de definir os termos da crise.
O que se decide, portanto, não é apenas o futuro de um regime, mas a reafirmação da lógica de poder no hemisfério, em que a hegemonia dos Estados Unidos é constantemente reiterada pela aplicação seletiva e furtiva de seus instrumentos de força.
Conclusão – A Hegemonia Reafirmada na Zona Cinza
A crise entre Estados Unidos e Venezuela em 2025 confirma que a lógica da Guerra Furtiva se tornou o instrumento preferencial das grandes potências na afirmação de seus interesses estratégicos.
Não há, nesse contexto, espaço para imaginar uma guerra convencional prolongada, com invasão territorial ou ocupação massiva de tropas, como ocorreu no Iraque em 2003 ou no Afeganistão em 2001.

O que se observa é um processo de erosão calculada, em que os Estados Unidos utilizam a combinação de
meios militares especiais, pressão econômica, guerra informacional e exploração de fissuras internas para enfraquecer progressivamente o regime de Maduro até o ponto em que sua manutenção se torne insustentável.
Essa forma de operar, que desloca o centro da guerra do campo físico para o espaço cognitivo e social, tem como mérito reduzir custos políticos e humanos, ao mesmo tempo em que preserva a imagem internacional
de Washington como defensor da estabilidade hemisférica.
A Venezuela, por sua vez, aparece como um Estado sitiado por suas próprias contradições. Politicamente isolado, economicamente inviável, psicossocial mente desmoralizado e militarmente incapaz, o regime Maduro não possui as condições necessárias para resistir a longo prazo à pressão combinada que lhe é imposta.
Seu recurso à propaganda patriótica, à retórica anti-imperialista e à mobilização simbólica em torno do Essequibo revela-se mais como um instrumento de sobrevivência imediata do que como uma estratégia efetiva de defesa nacional.
Ainda que consiga retardar o colapso, o regime se mostra cada vez mais dependente de fatores externos que não têm disposição ou capacidade de intervir de forma decisiva, como Rússia, China e Irã.
O impacto dessa crise transcende, contudo, as fronteiras venezuelanas. O êxodo massivo, que já transformou a diáspora venezuelana em uma das maiores do mundo, pressiona os países vizinhos e coloca em evidência a fragilidade das estruturas regionais para lidar com emergências humanitárias.
Brasil, Colômbia e Caribe são diretamente afetados e obrigados a pensar em respostas não apenas assistenciais, mas também de segurança, dado o risco de infiltração do crime organizado e da violência transnacional.
A América do Sul, que historicamente se percebia como distante dos grandes confrontos geopolíticos globais, mostra-se vulnerável às dinâmicas externas e incapaz de oferecer, por si só, mecanismos eficazes de mediação e contenção.
Do ponto de vista geopolítico, a crise reafirma a centralidade da hegemonia norte-americana no hemisfério ocidental. Washington demonstra que, mesmo diante da ascensão global da China e do revisionismo russo, o seu entorno estratégico imediato continua sob seu controle e será defendido com todos os instrumentos de poder, ainda que de forma furtiva e indireta.
A mensagem é inequívoca: não há espaço para regimes hostis ou para potências extrarregionais no Caribe e na América do Sul. A Venezuela torna-se, assim, não apenas um caso de crise interna, mas um exemplo de como os Estados Unidos reafirmam sua posição de árbitro último da segurança hemisférica, aplicando seletivamente seus meios de coerção para modelar o resultado sem o desgaste de uma guerra total.
A conclusão que se impõe, portanto, é que o futuro imediato da crise não será decidido em um campo de batalha convencional, mas no terreno da informação, da psicologia e da política interna.
O destino do regime Maduro dependerá menos de sua capacidade de mobilizar a FANB ou de resistir a pressões militares externas, e mais de sua habilidade de sobreviver ao cerco econômico, à fragmentação social e às fissuras internas estimuladas por uma estratégia norte-americana de longo alcance.
Para os vizinhos, em especial o Brasil, resta o desafio de preparar-se para os efeitos colaterais inevitáveis – fluxos migratórios, instabilidade fronteiriça, pressões humanitárias – e de assumir um papel mais ativo na construção de mecanismos regionais que evitem que o subcontinente permaneça como espaço passivo diante da disputa entre potências.
Assim, a crise EUA–Venezuela é menos sobre Caracas em si e mais sobre a reafirmação da ordem hemisférica. Trata-se da demonstração de que a guerra no século XXI é travada muito mais pela manipulação de narrativas, pela pressão seletiva e pela ação invisível das forças especiais e das empresas militares privadas do que pelo choque aberto de exércitos.
Nesse campo invisível, a vitória não se mede pela conquista de territórios, mas pela capacidade de moldar consciências, fragilizar regimes e impor hegemonia. A Venezuela é apenas o palco mais recente de uma peça que, na verdade, encena a reafirmação dos Estados Unidos como poder incontornável na Zona Cinza do
hemisfério ocidental.





















