Capitalismo em choque

Jarbas Passsarinho
Coronel reformado, foi governador, senador e ministro de Estado


Os que fazem a defesa póstuma do comunismo, já que reabilitar o seu regime é tarefa impossível, esforçam-se para argumentar que seu contrário é ainda pior e que um mérito não se lhe pode negar, o de barrar o domínio exclusivo do liberalismo, o "pensamento único". Importante líder socialista, no governo Lionel Jospin, afirmou que o século 20 "evidenciara o fracasso do pensamento liberal". De fato, nunca depois do colapso da economia administrada, do estilo stalinista e do livro vermelho de Mao Tsé-tung, leram-se pensadores discordantes do capitalismo e não mais da ideologia coletivista, mas do ultraliberalismo, apelidado de selvagem.

O Partido Trabalhista britânico não reza mais a oração de Harold Laski, mas a de Tony Blair. Um pensador francês, Jean-Cristopher, publicou, recebido em 1994 com elogios da mídia e dos intelectuais, o livro La ditadura liberal. Se o pensamento único existisse, teria sido combatido ferozmente e não apenas provocara risos. Três anos depois, como afirma Jean-François Revel, os liberais diziam-se espantados como se verdadeiramente a França estivesse ameaçada de um "capitalismo totalitário".

George Soros condena o capitalismo (no qual fez fortuna entre as maiores do mundo), em artigo para jornal americano em 1977. Justificou-se dizendo que, na sua infância na Europa, viu o liberalismo causar o desemprego e este, em consequência, gerar o totalitarismo. O argumento é discordante da história, pois não foi o desemprego o responsável nem pelo bolchevismo nem pelo fascismo italiano contemporâneos da infância dele, apenas fator secundário no nazismo.

Viviane Forrester, escritora talentosa, em 1996 em seu livro L"horreur économique, de imenso sucesso, sustenta que a globalização e o liberalismo destroem as ofertas de emprego. Ao contrário, contesta Revel, em La grande parade, criaram centenas de milhares de empregos desde 1980 em toda parte do mundo, salvo na Europa, onde o desemprego médio é, nesse período, o mais elevado e a criação de empregos a taxa mais fraca. Por quê? Porque em vez de estudar seriamente a questão, os países subdesenvolvidos preferem inventar que os empregos americanos e britânicos são uma forma mascarada de imperialismo, ao lado da exploração dos recursos naturais dos supostos beneficiados.

No âmago das revoluções de 1848 na Europa, pondera o notável cientista político italiano Giovanni Sartori, os conceitos de democracia e socialismo são equivocadamente confundidos antes da conceituação de liberalismo. Ora, o elo dessas confusões é a igualdade. Mas a democracia quer a igualdade sob a liberdade de todos, e o socialismo reduz a igualdade para servir só à pobreza e aos escravos.

Para sua notável obra Democratic theory, comunismo, socialismo e democracia eram claramente definidos a partir de 1918, mas a palavra liberalismo provocava estranhas interpretações. Enquanto a fusão conceitual de comunismo e socialismo eliminou o conflito comunismo e socialismo, a contestação passou a ser entre liberalismo e democracia. O liberalismo vinha a ter duas variantes, simplesmente liberalismo ou social liberalismo. De duas formas: estatizante ou bem-estar do Estado de providência. Uma terceira interpretação inspira-se na Revolução Industrial, com suas misérias e crueldades, como liberdade econômica. A repulsa de Sartori a essa liberdade mantenedora das desigualdades econômicas levou-o a criar para ela a palavra italiana "liberismo".

Atualmente, com a crise econômica da Europa atingindo deficit generalizado na balança de pagamentos, grande número de países, para evitar défaults (calotes), estão dependendo de somas vultosas de empréstimos a juros baixos e a longo prazo, suficientes para pagar as contas. O socorro de entidades multilaterais como FMI, bancos centrais e Banco Mundial, criados em Bretton Woods para anular a profecia de Marx de falência do capitalismo em face de crises sucessivas, já ultrapassa as pesadas somas a dispor.

De resto, as condições para a assistência salvadora provocam enormes manifestações de protestos nos países a receberem o auxílio, inconformados com exigência de demissão de pessoal e aumento da idade para aposentadoria. Às primeiras ocorrências da crise econômica, o presidente da França, Sarkosy, conservador, proclamou a necessidade de mudanças no capitalismo. Isso parece necessário para construir um capitalismo de face humana sem os defeitos que Sartori condenou na liberdade econômica .Há, ainda, os ingênuos que sonham com o socialismo utópico pré-Marx. Têm receio da oposição da China comunista, mas não é do comunismo da China, tão afastada do marxismo, que se deve temer, mas do capitalismo chinês.

Compartilhar:

Leia também

Inscreva-se na nossa newsletter