O BRASIL E A PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

O BRASIL E A PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

SERGIO DUARTE

Embaixador, ex-Alto Representante das
Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash sobre
 Ciência e Assuntos Mundiais.

O ano de 2023 se inicia com sombrias perspectivas que suscitam graves preocupações e riscos crescentes para a paz e a segurança internacional. A guerra movida pela Rússia contra a Ucrânia entra em seu décimo mês sem que se possa vislumbrar a possibilidade de acordo e nem mesmo de um cessar-fogo duradouro,que permita progressos em busca do fim das hostilidades. Os prejuízos humanos e materiais na área de conflito são imensos e os sofrimentos da população civil ucraniana são a esta altura incalculáveis. Em outras regiões permanecem focos de graves divergências entre potências nuclearmente armadas que poderão dar lugar a enfrentamentos militares de consequências imprevisíveis, inclusive uma catástrofe nuclear.

Ao mesmo tempo, até o momento não tem sido possível encontrar acordos decisivos capazes de estancar, ou ao menos reduzir, o impacto da deterioração do meio ambiente em todo o planeta. Finalmente, apesar da adoção de alguns instrumentos multilaterais orientados para a diminuição das desigualdades, a distância entre os níveis de vida dos países mais ricos e dos mais pobres não cessa de alargar-se, dificultando o progresso econômico material e social de grande parcela da humanidade e fomentando frustrações e ressentimentos.  

O Conselho de Segurança das Nações Unidas é o principal órgão encarregado da manutenção da paz e segurança internacional. No exercício dessa responsabilidade o CSNU age em nome de todos os demais estados integrantes da ONU. Segundo a Carta das Nações Unidas, adotada em 1945 após a Segunda Guerra Mundial, cinco potências desfrutam do status de membros permanentes do Conselho e nessa qualidade possuem o direito de vetar suas decisões.

Ao longo dos setenta e sete anos decorridos desde sua instituição, a atuação das Nações Unidas por intermédio do Conselho tem sido essencial para evitar o agravamento ou encaminhar a solução de diversas situações em que ameaças à paz, seu rompimento ou atos de agressão pudessem comprometer a segurança da comunidade internacional como um todo. Com efeito, inúmeras operações de restabelecimento e manutenção da paz em diversas regiões, levadas a efeito pelas Nações Unidas sob a égide do Conselho de Segurança, têm contribuído para a promoção da convivência pacífica e para a solução de controvérsias entre estados de maneira a não colocar em perigo a paz, a segurança e a justiça, nos termos do artigo 2.3 da Carta. Muitas dessas operações contaram com a participação direta de forças brasileiras.

Sempre houve, nesse longo período, desentendimentos, desconfiança e por vezes aberta animosidade entre algumas nações e também entre as principais potências, especialmente as cinco dotadas de representação permanente no âmbito do Conselho de Segurança, que são também aquelas às quais o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1970, reconheceu com exclusividade a condição especial de possuidoras do armamento nuclear. Vale notar que esse reconhecimento não é absoluto e perpétuo, isto é, está sujeito a certas condicionalidades enumeradas – ainda que com pouca precisão e especificidade e sem normas  para a  implementação dos compromissos – no artigo VI daquele instrumento. Por sua vez, o status de membros permanentes do CSNU e o privilégio conferido pelo TNP atribuem a esses cinco países responsabilidades especiais, não apenas na tomada de decisões relativas à paz e segurança, mas também na condução de seu relacionamento com o restante da comunidade internacional.

Nos dias de hoje, pela primeira vez na história posterior à Segunda Guerra Mundial algumas dessas potências se acham envolvidas como adversárias em um conflito no território europeu. Em décadas passadas essas mesmas potências participaram indiretamente, em campos opostos, de conflitos restritos a outras regiões do mundo. Nessas ocasiões, assim como até o momento na guerra em curso, não houve enfrentamento militar direto entre elas. O perigo de alastramento da atual conflagração, no entanto, parece cada vez maior.j

As doutrinas de uso de armas nucleares adotadas pelos países possuidores, além das declarações oficiais e da retórica de seus dirigentes, deixam aberta a possibilidade de que tais meios venham a ser empregados nas circunstâncias que eles julgarem adequadas. Os arsenais de que dispõem vêm sendo constantemente aperfeiçoados, com o desenvolvimento de armas e sistemas de lançamento cada vez mais velozes, eficazes e mortíferos, para não falar no uso bélico de tecnologias inovadoras, como mísseis hipersônicos, enxames de drones, uso de técnicas cibernéticas, militarização do espaço exterior e emprego de inteligência artificial com finalidades bélicas, entre outras.

Ao mesmo tempo, a humanidade assiste a um grave retrocesso da tendência ao tratamento multilateral de temas e situações de interesse de toda a comunidade internacional, iniciada com a tentativa de consolidação da Liga das Nações, em 1919, e levada adiante com maior grau de êxito pelas Nações Unidas.  Apesar de avanços obtidos até recentemente, com frequência as instâncias multilaterais nos diversos campos de interação entre as nações se mostram paralisadas ou disfuncionais. Isso ocorre especialmente na esfera do desarmamento e controle de armamentos, mas cabe mencionar, como exemplos adicionais, a crise no sistema de solução de controvérsias na Organização Mundial do Comércio e as dificuldades para atingir acordos vinculantes decisivos no âmbito da mudança do clima.  Tensões e divergências antigas, como a questão da Palestina e a situação de Taiwan, ameaçam periodicamente ressurgir em forma de enfrentamentos militares capazes de levar a crises mais graves.

Deve-se ressaltar que a atuação do Conselho de Segurança das Nações Unidas tem sido razoavelmente eficaz sempre que sua intervenção em situações previstas nos Capítulos VI e VII da Carta – isto é, respectivamente, solução pacífica de disputas, ações que ameacem a paz e atos de agressão – não  exigiu contrariar diretamente o interesse de qualquer das cinco potências que dispõem de poder de veto. Nas décadas recentes o diálogo e interação construtiva entre elas, condições essenciais para a convivência pacífica e para o reforço do sistema multilateral, vêm sendo substituídos por hostilidade, desconfiança e ausência de iniciativas que levem a entendimentos em busca de estabilidade e paz. 

É fundamental uma reforma do CSNU a fim de torná-lo capaz de reagir com maior eficiência em quaisquer circunstâncias que comportem soluções pacíficas ou o emprego de medidas para manter ou restaurar a paz e segurança internacional, mesmo quando tais remédios tenham de ser aplicados a alguma daquelas potências.  A paz e a segurança são bens comuns a toda a humanidade e não podem permanecer à mercê do arbítrio exclusivo dos poderosos em detrimento do interesse da coletividade.

Ao longo de sua história já bicentenária, o Brasil estabeleceu e mantém relações amistosas, pacíficas e profícuas com todas as nações, construindo uma sólida reputação de interlocutor e ator competente e confiável no plano mundial. Membro fundador das Nações Unidas, nosso país tem todas as condições para prosseguir e intensificar sua participação ativa no debate e encaminhamento de soluções para as grandes questões que interessam a toda a comunidade internacional.  Entre os países em desenvolvimento, o Brasil é também aquele que maior número de vezes tem integrado o Conselho de Segurança como membro não permanente e tem constantemente se esforçado para conferir a esse órgão maior representatividade e portanto maior autoridade em sua atuação.


No atual panorama de perspectivas inquietantes, a revitalização e fortalecimento das Nações Unidas são essenciais para a promoção dos objetivos fundamentais expressos no Preâmbulo da Carta: convivência pacífica, manutenção da paz e segurança, uso de força armada exclusivamente no interesse comum e progresso econômico e social de todos os povos.  O Brasil tem um importante papel  a desempenhar na consecução desses elevados propósitos, com base nos princípios consagrados no artigo 4 de sua Constituição e em sua tradição de solução pacífica de controvérsias, exemplificada na conformação de suas fronteiras e confirmada na constante e construtiva atuação de sua diplomacia ao longo da história, tanto no tratamento das questões bilaterais e regionais quanto no das multilaterais e universais. No atual panorama internacional de inquietação e incerteza a presença ativa do Brasil é legítima e necessária.

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