Defesa Aérea Brasileira: O Único Caminho São Sistemas de Longo Alcance com Transferência Tecnológica



Patrícia Marins
Analista independente de Defesa
Especialista em comunicação com foco na Europa e Eurásia

O Brasil enfrenta limitações significativas na busca por um sistema de defesa aérea de longo alcance. Até o momento, o país sondou pelo menos quatro fornecedores, e – por coincidência ou não – nenhum deles opera sistemas de abrangência estendida. Essa situação evoca o erro clássico do Iraque na Guerra do Golfo: eles possuíam mais de 1.000 sistemas de mísseis antiaéreos, mas a grande maioria tática, com alcance inferior a 40 km. Isso facilitou em demasia o domínio aéreo americano. Apesar dos recursos disponíveis, os militares iraquianos careciam de conhecimento, capacidade e planejamento para implementar um IADS eficaz, o que lhes custou caro.

Primeiro dia ações sobre Bagda, na Guerra do Iraque em 17JAN1991. Durante todo o período da Guerra era um festival pirotécnico todo o dia, porém sem afetar as ações aéreas. Foto DVIDS

Diferentemente do Iraque daquela época, o Brasil conta com meios técnicos robustos e recursos para testes operacionais. No entanto, é essencial ingressar nessa empreitada com postura estratégica e um planejamento de longo prazo, que demandará investimentos na casa dos bilhões de dólares. Há, ainda, uma linha divisória crucial nesse mercado: os sistemas testados no combate ucraniano versus aqueles nunca submetidos ao rigor do campo de batalha. Esse é outro fator primordial nos requisitos de avaliação do sistema a ser adotado.

Isso porque mais relevante que o hardware em si é o processo de maturação em ação real, com machine learning derivado de erros e acertos desde processo de detecção, tracking e interceptações. Apenas os sistemas russos e da OTAN atingiram um nível de refinamento aceitável nos campos da Ucrânia.

Outro aspecto crítico é o funcionamento via GNSS (Global Navigation Satellite System), presente nos modelos mais modernos. Isso requer pré-autorização do fabricante para reposicionar lançadores ou baterias, permitindo desativação remota e monitoramento de localização em tempo real. Tal mecanismo compromete seriamente a soberania do operador e deve ser levado em consideração na escolha.

A isso soma-se a impossibilidade de produzir mísseis interceptores próprios, limitando a autonomia – como ocorre na Ucrânia, que opera dezenas de baterias nacionais, mas sem munições devido às restrições industriais.

Para qualquer nação que aspire a uma defesa aérea autônoma, a produção local de interceptores é indispensável. Dadas as ambições brasileiras e o tamanho continental do país, o ponto de partida deve ser sistemas de longo alcance, com transferência tecnológica negociada no pacote. Tal medida tem em também potencial para alavancar o programa espacial, assim como ocorreu com outros países.

Hoje as principais opções globais incluem:

  • EUA – Patriot
  • Rússia – S-300 / S-400
  • Israel – David’s Sling / Barak MX
  • China  –  HQ-9B
  • Turquia –  SIPER
  • França / Itália – SAMP/T NG

Apenas russos e turcos demonstrariam alguma disposição para transferência tecnológica. Os russos trazem uma experiência vasta em defesa aérea, com equipamentos validados no teatro ucraniano, o que conferiu maturação excepcional aos seus sistemas. Essa expertise facilitaria a absorção tecnológica por empresas nacionais, transferindo know-how de batalha real e pavimentando o desenvolvimento de mísseis e radares de longo alcance próprios – base para sistemas totalmente nacionais nas próximas décadas.

Disparando o turco SIPER da Roketsan. O Russo S-300VM em operação na Venezuela. Desconhecido seu status operacional, mas de qualquer forma impõe respeito.

Os turcos, por sua vez, não só poderiam aceitar a transferência, mas provavelmente veriam o Brasil como parceiro no desenvolvimento de seu projeto. Embora não maturado como os equivalentes russos, isso configuraria uma solução nacional, com impactos profundos na estratégia soberana e impulso à nossa tecnologia espacial. Negociações similares poderiam envolver a Índia, cujos sistemas ainda não são de longo alcance e derivam de transferências russas. Mas neste ponto teria de ser algo muito vantajoso, pois a tecnologia indiana é baseada na russa.

E levantaria a questão: Mas, por que circuitar indiretamente quando o acesso direto aos russos para um acordo é viável?

Infelizmente os nossos parceiros preferências, que são os franceses não seriam adequados por duas questões:

1- o Sistema SAMP/T performou mal na Ucrânia, sendo também criticado pela lentidão na produção de seus misseis de defesa:

2 – Outro ponto é que a transferência tecnológica dependeria também da Itália. Ambos países da OTAN e, teríamos uma venda repleta de termos end-user, que amarrariam esses contratos.

Quando se fala em defesa aérea, não importa o quanto se tente arrastar a questões ideológicas. Vale sempre lembrar que metade das defesas aéreas mundiais remonta à herança soviética, inclusive a israelense, que absorveu essa influência em processos de engenharia reversa.

França / Itália – SAMP/T NG

O Brasil não dispõe de tempo para uma progressão linear: iniciar com MANPADS e canhões, avançar para curto e médio alcance, e só então longo. Já estamos atrasados décadas, e tal caminho consumiria mais uma geração. Ademais, o know-how em longo alcance é essencial para familiarizar as Forças Armadas com a interceptação de mísseis balísticos – ameaça vital para uma nação de nossas proporções.

O modelo mais adequado deve ser o indiano e israelense: priorizar médio e longo alcance, desenvolvendo em paralelo os de curto. Os indianos desenvolveram o PAD e o AAD; os israelenses, o Arrow, operacional desde 2000 – todos antes dos sistemas táticos de curto alcance.

Esse codesenvolvimento é factível porque os operadores não precisam ser os mesmos. Em nações como China e Rússia, a Força Aérea gerencia baterias de longa distância, enquanto o Exército cuida da defesa tática móvel, permitindo o desenvolvimento e aprimoramento dos sistemas sob distintas instituições, ambas ligadas a um pool de empresas locais.

O Brasil deve transcender o papel de mero operador para se posicionar como desenvolvedor. Isso requer abertura a parcerias tecnológicas e um ecossistema de empresas capacitadas para absorvê-las. Como país não alinhado, o caminho é negociar bilateralmente, à la Israel, Turquia e Índia.

O Israelense Barak MXO chinês HQ-9B

Sem ameaça iminente de conflito, temos o tempo precioso para forjar esse ecossistema local.

O desenvolvimento de tecnologia militar segue duas vias principais: transferência tecnológica ou engenharia reversa. O Brasil carece de ambas e, apesar de estarmos absorvendo tecnologia em projetos importantes, o de defesa aérea não pode ficar de fora.

Além disso, a realidade continental se impõe: baterias de 25 a 40 km seriam necessárias na casa das muitas dezenas e sem efetividade contra balísticos, o que é muito pouco para 8,5 milhões de km². Para referência: A Venezuela possui três sistemas de longo alcance, ao menos 12 de médio e mais de 70 de curto.

Qualquer projeto dessa escala exige transferência tecnológica, produção local, integração de dezenas de sistemas – radares secundários, doutrina própria e domínio para upgrades em software, guiamento e hardware. Um sistema forjado em parceria não só se autofinancia, mas abre mercados latino-americanos, transformando investimento em liderança regional. Esse deve ser o caminho.

O Brasil precisa pensar grande: investir com determinação, consolidar a soberania aérea e erguer uma indústria militar de vanguarda. Em um mundo de ameaças assimétricas, isso não é opção – é imperativo estratégico.

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