END – A Política da Composição dos Efetivos das Forças Armadas


Francisco Carlos Pereira Cascardo
Texto publicado no Tuiuti, õrgão da AHIMTB/RS


Desde a sua aprovação presidencial em 18 de dezembro de 2008 a Estratégia de Defesa Nacional tem sido tema permanente no noticiário nacional. Foram as diversas exposições feitas pelos: Ministro da Defesa, Comissão de Defesa da Câmara dos Deputados, os numerosos seminários organizados pelas instituições privadas, as manifestações de estudiosos no assunto em artigos publicados na imprensa e aparições na televisão.
 
Como oportunamente ressaltado na Exposição de Motivos encaminhada ao Presidente da República, os ministros signatários esclarecem que a referida END fundamenta-se em… Três eixos estruturantes:
 
– Reorganização das Forças Armadas;
– Reestruturação da Indústria Brasileira de Defesa; e
– Política de Composição dos Efetivos das Forças Armadas…"
 
Este último, a – Política da Composição dos efetivos das Forças Armadas – será o tema do presente trabalho.
 
A sua escolha deve-se a dois motivos: o primeiro encontra-se na inexistência de trabalhos específicos, contrastando fortemente com a apreciável frequência dos atraentes temas dos dois outros eixos estruturantes, tais como:
 
– o submarino de propulsão nuclear;
– a defesa das plataformas marítimas de exploração de petróleo;
– a preferência de navios de múltiplo emprego em detrimento dos Navios Aeródromos;
– a defesa da região amazônica;
– a redistribuição da Força Terrestre pelo território nacional;
– a aquisição do caça de quinta geração; e
– a retomada da indústria de defesa.

O segundo motivo reside na necessidade da adequada identificação da natureza da "Política" empregada na Composição dos Efetivos das Forças Armadas. Isto porque a sua redação vale-se de termos específicos que aparentam serem originários de uma conhecida terminologia que já caminhara para o desuso.

Mesmo com o risco de recair em truísmo é oportuno registrar que qualquer Plano e, no caso o END, fundamenta sua elaboração em três fases:
 
– identificação da situação;
– análise; e
– proposta de ação.
 
Os autores do END, ao não se furtarem em percorrê-las, consequentemente revelam, no caso dos militares, o que pensam, o que pretendem alterar e a solução a ser implantada.
 
A apresentação deste trabalho, para facilitar o entendimento do leitor, constará na focalização naqueles aspectos da EDN considerados característicos e que serão denominados de DESTAQUES. Eles extraídos, ipsís lítteris, do texto original e acrescidos das observações pertinentes.
 
DESTAQUE 1 – Natureza e âmbito da END
 
"… seu propósito é zelar para que as Forças Armadas reproduzam, em sua composição, a própria Nação –para que elas não sejam uma parte da Nação pagas para lutar por conta em beneficio de outras partes …a Nação possa encontrar-se acima das classes sociais …"
 
OBSERVAÇÃO:
 
Auto explicativo. Chama atenção a frequência de emprego das expressões como "classes sociais".
 
DESTAQUE 2 – Diretriz 23 – Manter o Serviço Militar Obrigatório
 
"… também instrumento para afirmar a unidade da Nação acima das divisões das classes sociais …”
“… Devem as Escolas de Formação de oficiais das três forças continuarem a atrair candidatos de todas as classes sociais.
É átimo (sic) que número cada vez maior deles provenha da classe trabalhadora …”
 
OBSERVAÇÃO:

 
Os autores identificam, no seu entender, atual disfunção desvantajosa, e para corrigi-la propõem a solução de incrementar o ingresso de candidatos da classe trabalhadora. Na terminologia das classes sociais, a mais comum, denomina a referida classe como proletariado. Aumentando a sua participação, provavelmente, pretendem reduzir a influência da atual situação encontrada nas Escolas Militares por julgá-las desfavorável, possivelmente considerada como a "burguesia". Em resumo, provavelmente, os autores pretendem aumentar a participação dos alunos oriundos do "proletariado" em detrimento daqueles provenientes da "burguesia".

O repetido lugar comum de "classes" e "divisão das classes", mesmo com a ausência da ilação "luta de classes", sugere possível viés ideológico.
 
Ressalte-se que a admissão às Escolas Militares faz-se mediante concurso público e a aprovação dos candidatos é mediante a rigidez do princípio do mérito. O comparecimento às formaturas dos alunos das três escolas permite aos presentes observação da heterogênea origem sócio-econômica de seus integrantes. A negação da realidade pode servir de fundamento para introduzir as alterações até então julgadas não necessárias.

DESTAQUE 3 – Marinha do Brasil: a hierarquia dos objetivos Estratégicos e Táticos – itens 1 e 2 (páginas 20 e 21 da EDN);

"… a Marinha do Brasil se pautará por um desenvolvimento desigual e conjunto …" e
"…a doutrina de desenvolvimento desigual e conjunto tem implicações para a reconfiguração das forças navais…”

OBSERVAÇÃO:
 
A "…Doutrina de desenvolvimento desigual e conjunto…” constitui a aplicação da conhecida Lei de Trotsky, e da qual unicamente é diferenciada pela última palavra do seu enunciado. Eis a comparação:
 
Trotsky – …"a doutrina do desenvolvimento desigual e combinado; e a
EDN – "…a doutrina do desenvolvimento desigual e conjunto…“
 
A primeira Lei do desenvolvimento desigual coube a Lênin e seu texto não contemplava a palavra "combinado". Esta seria acrescentada por Trotsky alguns anos mais tarde. Lênin e Stálin a empregavam para explicar que o caminho da revolução dos países que se encontravam em estágio inferior de desenvolvimento teria como primeira etapa o crescimento econômico e daí sim, a passagem para a etapa seguinte, a revolução socialista.
 
Como consequência direta eles negavam a luta revolucionária como etapa inicial para os países mais atrasados. Estes teriam de percorrer etapa intermediária, pré-capitalista, denominada "revolução democrática – burguesa". Suas lideranças não seriam o partido comunista e sim as suas burguesias nacionais. Trotsky discordava de Lênin e Stálin e alertava que as ditas "burguesias – nacionais" mantinham fortes laços de interesse com os países mais adiantados o que dificultava, ou impediria, que guiassem o caminho da revolução. Esses laços eram de natureza de dependência de capitais estrangeiros, influência dos grandes proprietários rurais, etc., e todos os dois impregnados por seus elevados temores de que o proletariado pudesse chegar ao poder político.
 
Por sua vez as desigualdades entre as diversas nações desenvolvidas e subdesenvolvidas repercutiriam nestas últimas, obrigando-as a fazer adaptações nos seus caminhos revolucionários, devido aos seus diferentes níveis econô-micos e culturais. Estas adaptações, que ficaram conhecidas como "choque – adaptação" foram chamadas por Trotsky de "combinado” e, por ele acrescidas à anterior Lei de Lênin, passaram a denominar-se de Lei de Trotsky.
 
DESTAQUE 4 – O Serviço Militar Obrigatório: nivelamento republicano e mobilização nacional – ítem 6 (página 39 da EDN);
 

“… é importante para a defesa nacional que o oficialato seja representativo de todos os setores da sociedade brasileira…"
"… é bom que os filhos dos trabalhadores ingressem nas academias militares…"

OBSERVAÇÃO:

Já considerado no DESTAQUE n° 2, evidencia a preocupação com a classe de origem dos alunos das Escolas Militares. Julgando que a distribuição atual não favorece aos "filhos dos trabalhadores", propõe a alterar este estado de coisas, de forma a aumentar o seu ingresso. O resultado prático é a neutralização, ou superação da suposta atual constituição dos corpos de alunos das Escolas Militares considerada pelos autores como predominantemente burguesa.
 
DESTAQUE – 5 – Estruturação das Forças Armadas (página 49 da EDN)
 

"…Nesse sentido o sistema educacional de cada força ministrará cursos e realizará projetos de pesquisa e de formulação em conjunto com os sistemas das demais Forças e com a Escola Superior de Guerra.
"…A ESG restaurada como preceitua a EDN terá inferência no sistema educacional de cada Força …”
" … o ministério da Defesa deverá apresentar planejamento para a transferência da Escola Superior de  Guerra para Brasília de modo a intensificar o intercâmbio fluido entre os membros do governo Federal e aquela instituição de modo a otimizar a formação de recursos humanos ligados aos assuntos de defesa . "… o ministério da Defesa elaborará uma Política de Ensino… acelerar o processo de interação do ensino militar. ..atendendo as orientações da EDN..."

OBSERVAÇÃO:
 
O Ensino nas três FFAAs é regido por lei, específica para cada uma delas.

Com as alterações inclusas na EDN caberá ao ministério da Defesa formular a Política de Ensino, e a ESG restaurada terá ingerência no Ensino de cada Força.
 
DESTAQUE 6 – Recursos Humanos – ítens 1 e 6 (páginas 57 e 59 da EDN)
 
"…O recrutamento dos quadros profissionais das Forças Armadas deverá ser representativo de todas as classes sociais…"
 
OBSERVAÇÃO:

Registra-se a preocupação dos autores com o tema "classes sociais", já visto no DESTAQUE 2 .
 
DESTAQUE 7 – Recursos Humanos – ítem 6 (página 59 da EDN)
 
"…as instituições de ensino das três Forças Armadas ampliarão nos seus currículos de formação militar disciplinas relativas a noções de Direito Constitucional e de Direitos Humanos, indispensáveis para consolidar a identificação das Forças Armadas com o povo brasileiro …”
 
OBSERVAÇÃO:

Transparece a discutível preocupação de "consolidar" a identificação das FFAAs com o povo brasileiro. O fundamento para esta alteração é a assunção pelos autores de um "gap" entre o povo brasileiro e suas FFAAs.

Pergunta-se: qual a origem desta proposição que tão categoricamente estatui que há lapso entre o povo e FFAAs?
 
Qual o estudo ou pesquisa que valida esta afirmação?
 
As pesquisas ora conhecidas envolvendo as FFAAs atestam a elevada credibilidade que o povo brasileiro atribui às suas FFAAs. Quanto às alterações dos currículos como preconizadas, sugerem semelhança com as conhecidas disciplinas de Estudos de Problemas Brasileiros e Organização Sócio-Política Brasileira.
 
APRECIAÇÃO FINAL
 
Os sete DESTAQUES anteriormente apresentados e comentados evidenciam o expressivo emprego das seguintes palavras ou expressões ou "indícios":
 
“…Divisões das classes sociais; todas as classes sociais; classe trabalhadora; o oficialato seja representativo da sociedade brasileira, filhos dos trabalhadores ingressem nas academias militares; ampla representação das classes das sociais; representativo de todas as classes sociais; consolidar a identificação das FFAAs com o povo brasileiro“.

O repetitivo e compulsivo emprego dos termos acima indica a importância dada pelos autores ao tema "classes sociais" bem como as suas "divisões". Uma vez integrando o texto do EDN, levam consigo, e por isso evidenciam, possível viés ideológico ao documento de mais alto nível que trata da Defesa Nacional.
 
Para facilitar o entendimento do leitor e dar clareza ao significado de "classes" recorre-se a trabalho do presidente da Associação Brasileira de Estudos Estratégicos – ABED, em livro publicado que conceitua:
 
"…classe…pela posição que ocupa no interior do sistema de produção e consequentemente caracterizam-se pelos seus interesses antagônicos. De um lado a minoria que controla os meios de produção (burguesia), e do outro, numericamente maior, que se distingue apenas pela posse da força de trabalho (proletariado).

Voltando ao texto do EDN, quando diz:
 
" … é zelar para que as forças Armadas reproduzam em sua composição a própria Nação , para que elas não sejam parte de uma da Nação, pagas para lutar por conta e em benefício das outras partes ".
 
Na eventualidade da frase acima ter apresentado alguma dificuldade para seu adequado entendimento o mesmo deixa de acontecer quando recorre-se à explicação que a antecede, obtendo-se o entendimento de que "partes" ou “divisões de classe" podem ser consideradas como de mesmo significado, ou sinônimos, isto é, de burguesia e proletariado.
 
O emprego da Lei de Trotsky reforça a hipótese de possível viés ideológico.
 
Ainda citando o ilustre professor atual presidente da ABED Eurico de Lima Figueiredo o papel dos militares é de:
 
– aqueles que as aceitam como a "expressão do militar" é razoável encontrar nelas a origem das alterações introduzidas no EDN e que foram como DESTAQUES, matéria deste trabalho;

– aos que não aceitam sugiro persistir no sentido de levar à grande maioria, que ainda não se manifestou, a necessidade de ampliar os debates e que discordando ou concordando com a autor expressem suas opiniões.
 
À reflexão dos que chegam ao término destas páginas, repetem-se as três frases:
 
"…representativo de todas as classe sociais…";
“…admissão nas academias militares dos filhos dos trabalhadores …”; e
" …é ótimo que número cada vez maior deles provenha da classe trabalhadora …".
 
A cinemática das três frases acima, apresenta a evolução programada da composição dos Corpos de Alunos das Escolas Militares. Com a consecução da terceira, ou última, é alcançado o desiderato estabelecido no END. Continua- se a ter burguesia e proletariado nas academias militares mas, agora, com o proletariado assumindo sua nova posição de hegemonia em detrimento da burguesia tornada minoritária.
 
(*) Capitão-de-Mar e Guerra Reformado. Graduado em Ciências Navais pela Escola Naval. Especialista em Armamento no Centro de Instrução Almirante Wandenkolk. Na Escola de Guerra Naval fez os cursos de Comando e Estado Maior e Superior de Guerra Naval, este último com o grau de Doutorado em Ciências Navais. No Ministério da Educação tem o registro de professor desde 1969.

Na Marinha, dedicou-se ao ensino, exercendo na Escola Naval as funções de Instrutor e de Avaliador Didático do seu Corpo de Professores; no Centro de Instrução Almirante Wandenkolk foi instrutor do Curso de Técnica de Ensino; no CIAGA – Centro de Instrução Almirante Graça Aranha, dirigiu a Superintendência de Ensino; no Navio-Escola Custódio de Mello foi chefe do Departamento de Ensino dos Guardas Marinha; na Diretoria de Ensino da Marinha foi chefe do Departamento de Planejamento, Assessor de diversos Almirantes Diretores e Vice-Diretor de Ensino da Marinha.
 
Nota do Editor do Tuiuti: As opiniões aqui expostas são de exclusiva responsabilidade do autor, mas representam um alerta sobre o futuro dos recursos humanos, principalmente de oficiais, nas FFAA.

Editor: Luiz Ernani Caminha Giorgis, Cel Inf EM Presidente da AHIMTB/RS.
 
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