CEBRAP – Para os EUA, Brasil era campo de batalha na Guerra Fria

FELIPE WERNECK, HELOISA ARUTH STURM
  RIO – O Estado de S.Paulo

 

O norte-americano Peter Bell chegou ao Brasil em setembro de 1964, pouco depois do golpe militar, para assumir o recém-criado escritório da Fundação Ford no Rio. Ficou no cargo até 1969 e permaneceu no programa da fundação para a América Latina até 1973. Hoje, com 72 anos, Bell é pesquisador sênior no Hauser Center for Nonprofit Organizations da Harvard University, nos EUA. Procurado pelo Estado para uma entrevista sobre os 50 anos de atuação da Fundação Ford, que distribuiu mais de US$ 350 milhões em doações no País, Bell revela o encontro que teve com um oficial da CIA após ter comunicado à matriz em Nova York a intenção de conceder verba para a criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Conta também quando foi recebido com uma bomba em sua primeira visita à Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. "No contexto do período, entendo que alguns brasileiros possam ter desconfiado de mim", diz.

O sr. poderia falar dos objetivos da Fundação Ford ao chegar no Brasil, há 50 anos?

O escritório brasileiro foi estabelecido logo no início das atividades na América Latina. O objetivo principal era conceder recursos para promover o desenvolvimento por meio de apoio a programas voltados ao ensino superior. Naquela época, "desenvolvimento" era entendido sob viés econômico, infraestrutural e científico, e mensurado a partir do aumento da renda per capita. Por isso, as bolsas apoiaram cursos de pós-graduação em ciências, engenharia, administração pública e economia, áreas "seguras" para uma fundação recém-chegada. Sua essência era tecnocrática e apolítica. Recursos para universidades e para instituições como CNPq, Capes e Fundação Getúlio Vargas provaram a sua importância. Nota-se mudança no perfil das doações ao longo dos anos. No início, eram privilegiadas áreas como produção agrícola e controle populacional. Nos anos 1970, migraram-se recursos para órgãos de pesquisa e, mais recentemente, para ONGs.

Como ocorriam essas escolhas, o que motivava as decisões?
 

Com o tempo, a percepção sobre o termo "desenvolvimento" evoluiu, assim como nossa familiaridade com o Brasil. Mais do que isso, o contexto brasileiro para a concessão de recursos mudou. A fundação focou sua atenção nas ciências agrárias, por acreditar que a agricultura, embora essencial, havia recebido apoio insuficiente. Também tivemos a audácia de apoiar a criação de serviços para saúde reprodutiva e planejamento familiar. Simultaneamente ao meu ingresso na fundação, em setembro de 1964, e no início do regime autoritário, começamos a financiar pesquisa e cursos de pós-graduação em ciências sociais. Fizemos isso porque acreditávamos, assim como nossos colegas brasileiros, que os cientistas sociais poderiam ajudar a explorar e clarificar as dimensões política e social do desenvolvimento. Não demorou muito para descobrir que o apoio às ciências sociais poderia ser tão controverso quanto o dado ao planejamento familiar. Em meio à guerra fria, o governo militar confundiu cientistas sociais com socialistas e limitou sua liberdade. A Fundação percebeu que era insuficiente presumir que nós éramos "apolíticos" ou "tecnocráticos".

Como organização transnacional, tínhamos a obrigação de explicitar os valores que regiam nossa concessão de subsídios e que eram essenciais para o progresso das ciências sociais e naturais. Ao mesmo tempo, não poderíamos ser partidários. Nas décadas mais recentes, com o escritório da fundação composto cada vez mais por brasileiros, e, à medida que o País se tornou mais democrático, a fundação engajou-se no apoio a programas para promover direitos humanos e reduzir a pobreza, frequentemente por meio de recursos a ONGs.

Como representante da fundação no início de sua atuação na América Latina, como o senhor avalia os críticos que, principalmente nos anos 1960 e 1970, viam tais instituições como agentes da política externa americana? No ápice da guerra fria, o governo norte-americano e suas agências de inteligência viam a América Latina e a maior parte do mundo através do prisma do combate ideológico e de poder contra a União Soviética. Nas décadas de 1960 e 1970, os EUA frequentemente viam o Brasil e outros países como "campos de batalha" na Guerra Fria. O que me motivou a trabalhar na Fundação Ford foi que nós, como organização independente, não precisávamos adotar essa mentalidade. No contexto do período, pude entender por que alguns brasileiros podem ter desconfiado de mim. Nunca vou me esquecer de quando fui recebido com uma ensurdecedora explosão na minha primeira visita à Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Os professores com os quais me encontrava tentaram me garantir que eram fogos de artifício. Um deles depois me disse que era uma bomba detonada por estudantes como um aviso para manter distância.

O apoio da fundação à criação de um centro composto por cientistas sociais expulsos da USP pelo regime militar, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), é emblemático. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse a pesquisadores da FGV que o apoio financeiro dado pelo sr. ajudava pessoas perseguidas a se manterem no País e contou que, na época, era muito dinheiro, mas não lembrava o valor. O senhor recorda?

Eu era o diretor do programa, junto com o Frank Bonilla, assessor do programa na área de ciências sociais, que trabalhou com Fernando Henrique para elaborar a recomendação que o escritório brasileiro fez à Fundação para concessão de uma verba para a criação do centro. Eu não consigo lembrar a quantia exata, mas eu realmente considero-a uma das verbas mais gratificantes e importantes concedidas na minha gestão. O CEBRAPp não somente ajudou a manter Fernando Henrique e seus colegas produtivamente engajados no Brasil, como se tornou um centro líder de pesquisa e análise social no Brasil e em toda a América Latina. Embora Fernando Henrique não fosse político na época, ele se tornou uma força primordial no restabelecimento da democracia no Brasil. Em julho, ele recebeu o Prêmio Kluge, que é como o Prêmio Nobel para as ciências sociais. Mais de quatro décadas depois do primeiro benefício que concedemos, eu fiquei comovido quando ele me enviou um e-mail dizendo que, na época de maiores dificuldades no Brasil, a fundação tornou possível que ele escrevesse o que escreveu e fizesse o que ele fez.

É verdade que o senhor foi chamado pela embaixada americana para uma conversa após o apoio ao CEBRAP?

Pouco depois que enviamos para nossa sede em Nova York a recomendação do escritório brasileiro para a concessão da bolsa para o CEBRAP, eu recebi um telefonema de um representante da embaixada americana no Rio. Ele começou me avisando: "Se você sabe o que é bom para a sua carreira, você desistirá de obter a verba para o CEBRAP". Eu disse a ele que nós trabalhamos muito na recomendação, revisamos com cuidado a proposta e os planos de Fernando Henrique e seus colegas, e estávamos convencidos de que atendia aos nossos parâmetros. Realmente, nós estávamos entusiasmados com aquela oportunidade. Eu realmente disse, porém, que, se ele tivesse alguma informação que fosse relevante para nossa decisão sobre o apoio, gostaria de ouvi-la. Ele respondeu marcando um encontro para mim no dia seguinte com um oficial da CIA e chegou carregando uma pasta com memorandos e clippings de jornal. Eu examinei o material com ele: cada item simplesmente indicava que Fernando Henrique havia sido visto na presença de um "conhecido esquerdista". Eu disse ao meu visitante que a pasta era tão somente sobre "culpado por associação" e que eu não havia visto nada que invalidasse nossa recomendação aos representantes da fundação. Eles de fato rapidamente aprovaram a doação.

Com a crise financeira, estaria em curso uma mudança de perfil da filantropia norte-americana?

Não há dúvida de que as fundações estabelecidas nos EUA sofreram com a recessão dos últimos cinco anos e com a obrigação legal de despender 5% de todas as doações que recebem a cada ano. Mas a chegada das fundações Gates (criada por Bill Gates) e Buffet (do investidor Warren Buffett) e a proliferação de outras fundações sugerem que a filantropia organizada continuará a ser um colaborador vital para o pluralismo dentro dos Estados Unidos e para a inovação e o dinamismo entre as instituições sem fins lucrativos. O número de fundações filantrópicas no Brasil também está crescendo e vai desempenhar uma papel ainda maior no País. Eu esperaria que as fundações pelo mundo trabalhassem mais em parceria e aprendessem umas com as outras. Eu dirijo o comitê de uma fundação na Europa que em breve se reunirá com sua filial no Brasil justamente para promover um intercâmbio.
 

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