A ascensão do poder aéreo árabe

Por Florence Gaub – Texto do International Relations and Security Network
 
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

 
Quando imagens da major Mariam Al Mansouri – primeira aviadora de combate dos Emirados Árabes – rodaram o mundo em setembro deste ano, não se tratava apenas da mudança do papel das mulheres no mundo árabe e da luta coletiva contra o Estado Islâmico. As fotografias também capturaram um novo fenômeno militar: depois de décadas de irrelevância estratégica, o poder aéreo está em ascensão na Arábia.
 
Um novo equilíbrio de poder no ar
 
Até pouco tempo, as forças aéreas árabes não tinham nenhum papel na paisagem estratégica do Oriente Médio. Mesmo Egito e Síria tendo frotas numericamente fortes, nenhum dos países participou de combates nos últimos 30 anos. Também é notório o fato de ambas as forças terem sido destruídas em questão de horas por Israel durante a Guerra dos Seis Dias em 1967. O Egito, maior potência aérea da época na região, perdeu 338 aeronaves, a maioria das quais sequer conseguiu decolar. Apesar de ambos os países teres se recuperado até certo ponto em 1973, poder aéreo não foi decisivo para retomar a região do Sinai, apesar de uma batalha aérea bem-sucedida, comandada por Hosni Mubarak, ainda ser comemorada todo ano no dia 14 de outubro. Em 1982, uma grande batalha entre Síria e Israel danificou consideravelmente o sistema de defesa antiaérea sírio, mas no geral as forças aéreas árabes vêm passando boa parte do tempo em solo desde então.
 
Na verdade, a Guerra do Golfo em 1991 e a Guerra do Iraque em 2003 mostraram que o espaço aéreo do mundo árabe pertencia a todos menos os árabes. Os bombardeios comandados pelos Estados Unidos contribuíram significativamente para a libertação do Kuwait e posteriormente a queda de Saddam Hussein. O bombardeio americano à Líbia em 1986, as incursões regulares de Israel no espaço aéreo do Líbano, e o ataque israelense às instalações nucleares da Síria em 2007 confirmaram a noção de que as forças aéreas locais serviam basicamente para fins cerimoniais. Antes da Primavera Árabe, Egito e Síria tinham forças aéreas poderosas no papel, com 461 e 555 aeronaves aptas para combate, respectivamente – em parte resultado de décadas de governo por ex-oficiais da área, Mubarak e Hafez al-Assad. Mas fazia tempo que nenhum dos países participava de ações significativas.
 
Já em 2014 o quadro mudou dramaticamente. Teoricamente, o Egito continua liderando o ranking aéreo regional com 569 aeronaves de combate, enquanto a Síria sofreu os danos severos de uma guerra civil travada em boa parte pelo ar. As estimativas mair recentes pontam que o país tenha 295 aviões, apesar de muitos deles não serem mais operacionais. Ambas as forças aéreas estão envolvidas em conflitos que não podem ser vencidos apenas no ar. Seus adversários não só adquiriram mísseis superfície-ar (um helicóptero egípcio foi abatido em janeiro na região do Sinai), como esses aparatos só podem ser neutralizados em terra.
 
Ainda que poder aéreo seja útil para destruição em larga escala, por exemplo, de depósitos de munição, rotas de suprimentos ou centros de comunicações, e também tenha algum impacto no moral do inimigo, obviamente aviões não podem travar combate de casa em casa. E mais importante, superioridade aérea depende crucialmente de inteligência, sem a qual ataques aéreos não vão muito além de adivinhação. Em ambas as áreas, Egito e Síria são fracos atualmente.
 
A Líbia também está em uma situação delicada. O general aposentado Khalifa Haftar está conduzindo a Operação Dignidade, basicamente com as sobras da Força Aérea do país. O regime anterior perdeu a maior parte das 374 aeronaves de combate durante o conflito de 2011 – a zona de exclusão aérea tinha como alvo deliberado aviões que bombardeavam civis. No terceiro trimestre de 2014, relatórios apontavam que Haftar tinha 12 aeronaves, mas dados recentes afirmam que restam apenas três, principalmente pela falta de manutenção e peças. A situação atual na Líbia mostra que poder aéreo não vai resolver o problema da violência localizada no território.
 
Enquanto isso, surgiram novas potências nos ares. A Arábia Saudita, que tinha uma Força Aérea relativamente pequena no começo dos anos 2000, agora opera 305 caças e ocupa o segundo lugar entre as frotas da região. O país também tem o monopólio de facto do Sistema Aéreo de Alerta e Controle (AWACS), o que dá uma vantagem importante em caso de combate aéreo. Os Emirados Árabes, país com 5,6 milhões de habitantes, agora ocupa o quarto lugar entre as forças aéreas com 201 aeronaves de combate. O país também é sede do Gulf Air Warfare Center, onde militares locais e dos Estados Unidos conduzem treinamentos e exercícios.
 
Essas nações atualmente lideram o panorama aéreo regional de longe, enquanto o Irã quase se equipara à Arábia Saudita em números, mas não em qualidade. Já a quinta Força Aérea do mundo árabe é a da Argélia, com pouco mais da metade da frota dos Emirados. Depois da Argélia, nenhuma outra nação chega perto – o Iraque, que já teve uma Força Aérea poderosa, hoje tem três caças, enquanto o Líbano tem nove. Já Omã usa sua frota principalmente como gerador de empregos, lançando campanhas de recrutamento – atualmente o páis opera 52 aeronaves de caça.
 
Um aspecto crucial a ser observado é que as potências aéreas emergentes no Golfo não relutam em agir contra outras nações árabes. Tanto o Qatar quantos os Emirados enviaram caças para ajudar a OTAN durante as operações na Líbia em 2011. A Força Aérea do Qatar, atualmente com 18 aeronaves, enviou um terço do efetivo. Os Emirados Árabes mandaram 12 caças. O papel ativo desses países em conflitos atuais é muito maior do que as contribuições anteriores de nações locais em operações coordenadas pelo Ocidente.
 
No terceiro trimestre deste ano, Emirados Árabes e Egito teriam bombardeado focos islamitas na Líbia, apesar de não ser claro se o Cairo mandou aeronaves próprias ou permitiu que aviões dos Emirados decolassem a partir de suas bases. Mais recentemente Emirados, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein (39 aeronaves) e Jordânia (85) se juntaram a outra coalizão para combater o Estado Islâmico, resultando na fama da major al-Mansouri.
 
Apesar de não se ter um número exato de quantos ataques aéreos foram conduzidos pelos Emirados e pela Arábia Saudita. Uma coisa é clara: os dois países estão construíndo forças aéreas poderosas não só em termos numéricos. O que falta a ambas as nações não são equipamentos, mas treinamento e prontidão – elementos que estão sendo adquiridos agora, com a realização de ataques de verdade.
 
Poder aéreo: uma ferramenta entre muitas
 
Em grande parte, a expansão aéra no Golfo é resultado do antagonismo com o Irã. A implosão do Iraque, há tempos considerada um bastião contra possíveis agressões por parte de Teerã, além da descoberta do programa nuclear iraniano, certamente contribuíram para a necessidade de forças aéreas mais capazes. Esse reforço impressionante é em boa parte uma mensagem de projeção de poder destinada a Teerã – por conta de sua localização geograficamente estratégica, um conflito em potencial com o Irã se faria por ar e pela água, e não por terra, a menos que o Iraque fosse usado como campo de batalha.
 
Além disso, sistemas de defesa antiaérea proliferaram na região, dificultando missões de bombardeio estratégico. O sistema sírio, reformado após os ataques israelenses de 2007, agora é considerado forte o bastante para conter ações militares contra o regime de Bashar al-Assad. As nações do Golfo buscam um sistema de defesa integrado, capaz de deter mísseis, e o Egito também atualizou seus equipamentos. No geral, o espaço aéreo está sendo retomado pelos países árabes.
 
Porém, o problema com poder aéreo é que sua utilidade estratégica é frequentemente supervalorizada. Capanhas com componente aéreo relevante, como a da Sérvia em 1999 e da Líbia em 2011, criaram a impressão de que forças terrestres não são mais essenciais para lutar e vencer guerras. Mas poder aéreo, e especialmente bombardeios, não são uma estratégia em si. São apenas ferramentas que precisam sempre ser usadas em conjunto com outras, incluíndo forças navais e em terra, apoiando uma estratégia mais ampla. Especialmente para nações pequenas como os Emirados Árabes e o Qatar, ter forças aéreas capazes faz sentido, mas não representa muita proteção, por exemplo, contra uma invasão terrestre de larga escala, que continua sendo principal tática na região.

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