O dilema dos EUA na Síria

A quase completa derrota do grupo jihadista "Estado Islâmico" (EI) no Iraque e na Síria está alterando o tabuleiro estratégico na região e criando situações conflituosas que, já previsíveis, permaneciam latentes apenas por causa do perigo representado pelo EI e pelo interesse maior em derrotá-lo.

Uma dessas situações se origina no tênue equilíbrio entre as alianças simultâneas dos EUA com dois rivais: a milícia curda Unidades de Proteção Popular (YPG) e a Turquia, esta no âmbito da Otan. No norte da Síria, as YPG são o principal grupo apoiado pelos americanos na luta contra o EI. Ao mesmo tempo são classificadas pela Turquia de terroristas e de ameaça à integridade nacional.

Esse tênue equilíbrio começou a ser posto à prova no sábado passado (20/01), quando a Turquia iniciou uma operação militar em Afrin, um enclave curdo no noroeste da Síria, para expulsar as YPG de lá. A ofensiva começou depois de os Estados Unidos terem anunciado que iriam treinar um exército para patrulhar a fronteira da Síria, com as YPG como elemento central.

Assim, tudo indica que muito em breve os Estados Unidos estarão diante de um dilema: manter o apoio às YPG, e assim arriscar um conflito com a Turquia, ou retirar esse apoio, passando a serem vistos como traidores pelos curdos, que combateram do lado dos EUA na Síria.

Outro ponto claro é o tamanho da influência que a Rússia angariou na Síria – ocupando o vácuo criado pela ausência dos Estados Unidos. Analistas dão como certo que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, teve que buscar o aval de Moscou para iniciar sua operação no noroeste da Síria. A Rússia, afinal, controla o espaço aéreo sobre Afrin – na verdade, sobre toda a região a oeste do rio Eufrates.

A evolução das prioridades de Erdogan mostra como ele teme a formação de um Estado curdo no norte da Síria. Quando a guerra civil síria começou, em 2011, a prioridade era derrubar o presidente Bashar al-Assad. Quando o "Estado Islâmico" ganhou terreno no país vizinho, o objetivo passou a ser combater o grupo extremista. Agora, a prioridade é evitar que os curdos ganhem autonomia ou mesmo um Estado – para isso, Erdogan já parece até mesmo disposto a tolerar Assad no poder.

O surgimento de um Estado ou região autônoma curda no norte da Síria é visto como uma ameaça existencial pelo governo turco. Porém, essa área já existe e tem até nome: Rojava, ou Curdistão Ocidental. Ela corresponde à área contígua à fronteira com a Turquia controlada pelas YPG, no norte da Síria. Seus pilares são três regiões administrativas, em torno das cidades de Afrin (extremo oeste), Kobanê (centro) e Qamishli (no extremo leste).

A região dominada pelas YPG se estende do extremo leste até o rio Eufrates, além de um enclave em torno de Afrin, no extremo oeste. O objetivo da Turquia é evitar que os curdos sírios conquistem mais território e consolidem seu domínio na região.

Os curdos são um grupo étnico espalhado por quatro países: Turquia, Irã, Iraque e Síria. A região por eles habitada, e que abrange áreas desses quatro países, é historicamente chamada de Curdistão. Unir as quatro partes numa nação é um anseio antigo de grupos nacionalistas curdos.

A coluna Zeitgeist oferece informações de fundo com o objetivo de contextualizar temas da atualidade, permitindo ao leitor uma compreensão mais aprofundada das notícias que ele recebe no dia a dia.

Membro das YPG perto de Tel Abyad, no norte da Síria

Saiba quem são os curdos

Os curdos não têm um Estado próprio ou uma instituição que os represente. Não se sabe exatamente quantos eles são, pois censos étnicos não foram feitos nos países em que eles vivem. Algumas estimativas sugerem entre 25 milhões e 30 milhões de pessoas. Outras falam de 30 milhões a 40 milhões de pessoas.

A área habitada pelos curdos se estende por Iraque, Irã, Síria e Turquia. A organização política e o grau de autonomia dos curdos é diferente em cada um desses países.

Com a ascensão do grupo extremista "Estado Islâmico" (EI), os curdos ganharam projeção e passaram a desempenhar um papel internacional cada vez mais importante. Isso se deve aos sucessos militares deles na luta contra o EI no norte da Síria. Com isso, antigos anseios dos curdos por mais autonomia ou até mesmo por um Estado próprio ganharam nova força.

Turquia e o PKK

Cerca de metade dos curdos vive na Turquia, onde eles compõem em torno de 18% da população e são, assim, a maior minoria étnica do país. Eles foram reprimidos por décadas pelos governos turcos. Como resultado, ativistas de esquerda se reuniram no início dos anos 1970 em torno de um líder, Abdullah Öcalan. Em 1978, esse grupo daria origem ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão, mais conhecido como PKK.

Nos seus primórdios, o PKK se orientava por ensinamentos marxistas e leninistas. Em 1984, a organização atacou pela primeira vez instalações militares turcas. Desde então, o PKK luta pela constituição de um Estado curdo ou por um território autônomo. Segundo estimativas, o conflito turco-curdo envolvendo o PKK já custou a vida de 40 mil pessoas em seus mais de 30 anos.

Em 1999, Öcalan foi condenado à prisão perpétua na Turquia. No final de 2012, o governo turco começou a negociar com ele, e havia sinais de que um acordo de paz com o PKK poderia ser alcançado.

Por causa dos acontecimentos recentes na fronteira da Turquia com a Síria, o governo turco rompeu o cessar-fogo com o PKK. Nesta terça-feira (28/07), o presidente Recep Tayyip Erdogan declarou o processo de paz encerrado.

HDP

Ao contrário do PKK, o Partido Democrático dos Povos (HDP, na sigla original) não se vê como uma agremiação exclusivamente curda. O partido é recente: existe desde 2012, quando formações até então concorrentes se uniram na sigla.

Um dos principais fundadores do HDP é o Partido da Paz e da Democracia (BDP). Esse partido pró-curdo desempenhou um papel importante nas negociações entre o PKK e o governo em Ancara. Por um lado, ele se engajou numa solução para o conflito, mas foi também acusado de ser o braço parlamentar do PKK.

O HDP é um agrupamento de seguidores de Öcalan, nacionalistas curdos, feministas, democratas e socialistas. Unidos, eles conseguiram superar a barreira dos 10% nas últimas eleições parlamentares turcas, em junho de 2015.

Síria

Não se sabe exatamente quantos curdos vivem na Síria, mas eles são mais de 10% da população – considerando-se a população do país antes do início da guerra civil, em 2011. Desde então, os curdos tiveram sucessos militares surpreendentes e conseguiram criar três regiões por eles administradas.

O Partido da União Democrática (PYD) é a principal força política entre os curdos sírios. Ele surgiu em 2003, apoiado pelo PKK como uma espécie de partido irmão. O PYD é de orientação secular.

O PYD tem um braço armado: as Unidades de Proteção Popular, conhecidas pela sigla YPG. As milícias das YPG são fortemente ligadas ao PKK. Elas lutam no norte da Síria e são o principal parceiro da coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos na luta contra o "Estado Islâmico".

As YPG controla hoje boa parte da região de fronteira da Síria com a Turquia. Na batalha por Kobanê, por exemplo, as milícias das YPG expulsaram os jihadistas do EI da cidade, com a ajuda dos ataques aéreos da coalizão internacional.

Combatente curdo ao lado de um menino em Kobane, cidade síria que foi libertada pelos curdos

Iraque

No Iraque, os curdos são uma força política estabelecida que administra uma área semiautônoma no norte do país, a Região Autônoma do Curdistão. Cinco milhões de curdos moram nessa região. A força militar deles é conhecida pelo nome de peshmerga, uma palavra curda que significa "aquele que enfrenta a morte", "aquele que olha a morte nos olhos".

A relação dos peshmerga com o PKK e as YPG é de desconfiança. O motivo é a colaboração do governo da Região Autônoma do Curdistão, liderado por Massoud Barzani, com a Turquia e os Estados Unidos, dois países que se posicionam contra o PKK. Ainda assim, curdos iraquianos lutaram ao lado das milícias YPG na retomada de Kobanê.

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