Ecos da IIª Guerra Mundial – Família Renault busca reparação da França em relação a passado nazista

Quase 70 anos após o pioneiro fabricante de automóveis Louis Renault morrer em uma prisão francesa, acusado de colaborar com os nazistas, seus netos estão tentando restabelecer a sua reputação – e obter compensação pelo que dizem ter sido o confisco ilegal de sua companhia pelo Estado.

Os membros da família, cujos esforços de reparação legal haviam sido bloqueados desde que o governo De Gaulle nacionalizou provisoriamente a Renault no dia 16 de janeiro de 1945, aproveitaram uma nova lei que permite aos indivíduos contestar a constitucionalidade das ações do governo nos tribunais. Se vencerem, eles podem receber mais de 100 milhões de euros (US$ 143 milhões) do Estado, disse seu advogado.
 

A família insiste, porém, que o dinheiro não é o fator motivador de sua ação. "Não é minha prioridade monetizar isso", disse Helene Renault-Dingli, uma dos sete netos que procuram derrubar a nacionalização. "Estamos lutando para reconquistar nosso lugar, mas nenhuma quantidade de compensação poderia compensar essa violência que tem sido experimentada pela nossa família".

Ninguém contesta que a Renault trabalhou para os alemães, praticamente todos os grandes grupos industriais da França o fizeram. O que tem sido contestado desde a libertação do país é saber se o que aconteceu com a empresa logo depois foi legal.

Terceiro Reich

A Renault, assim como as outras grandes fabricantes de automóveis francesas – Citroën, Peugeot e Berliet – produziram veículos para o Terceiro Reich. A unidade de produção de tanques da Renault era diretamente controlada pelos alemães, enquanto suas unidades de produção de automóveis e aeronaves, como aconteceu com as outras empresas, estavam sob gestão francesa, supervisionada por executivos da Daimler-Benz.

No entanto, a Citroën e a Peugeot não foram nacionalizadas após a guerra, seus proprietários foram considerados como tendo sido patriotas, e a Berliet eventualmente ganhou de volta o seu estatuto de entidade privada.

Louis Renault morreu na prisão em 24 de outubro de 1944, antes que pudesse ser julgado. Ele tinha afasia e o relatório oficial lista uremia como a causa da morte. Sua família afirma que ele foi assassinado, embora não tenha provas.

O caso ilustra a contínua sensibilidade do país a respeito da ocupação alemã, na qual Hitler impôs sua vontade sobre a nação francesa entre 1940 e 1944, transformando o país em um apêndice da máquina de guerra nazista. Os alemães dependiam, em grande medida, da disposição da polícia, dos empresários e dos gestores franceses para operar.

Em uma situação mais básica, milhões de pessoas enfrentavam a necessidade constante de escolher ou não cooperar com os ocupantes para sobreviver. Isso torna as avaliações em preto-e-branco de muitas ações algo difícil. "É extremamente difícil dizer em que medida Louis Renault deve ser considerado um colaborador", disse Patrick Fridenson, professor de história empresarial da Faculdade de Estudos de Ciências Sociais de Paris e autor de um livro sobre a Renault.

Renault, disse ele, "corria o risco de expropriação completa se resistisse aos alemães".

Monika Ostler Riess, uma estudiosa alemã que investigou fontes francesas e alemãs enquanto pesquisava para um livro sobre a história da empresa durante a ocupação, disse que não encontrou nenhuma evidência de que a Renault colaborou mais do que as outras empresas automobilísticas. "Ele só tentou salvar o que tinha, o que ele construiu", disse ela. A alternativa à cooperação com os ocupantes era ver os alemães assumirem sua empresa, ela acrescentou.

Histórico

Renault, junto com dois irmãos, fundou a companhia automobilística em 1899. Depois de viajar para os Estados Unidos e ver as técnicas de produção revolucionárias de Henry Ford, ele introduziu os métodos de gestão americanos na França. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele liderou o desenvolvimento de carros de combate, incluindo o Renault ft17, o primeiro tanque a empregar uma torre rotativa, e foi aclamado como um patriota depois.

Na época que a Segunda Guerra Mundial começou na Europa, em 1939, a Renault era um conglomerado altamente diversificado, o maior grupo industrial da França, que empregava cerca de 40 mil pessoas. Renault mantinha 96% do capital, com membros da família e gestores do topo da empresa dividindo o resto.

Embora ninguém tenha produzido provas de que ele era simpático aos objetivos ideológicos do Terceiro Reich, não há provas de que ele tenha ajudado a resistência e as forças do general De Gaulle também. (Fridenson disse que mais pesquisas são necessárias em arquivos relacionados, sobretudo na Alemanha).

Renault também criou atrito com a esquerda da França, demitindo 2 mil membros do sindicato em uma disputa de trabalho de 1938.

Tais ações o deixaram sem aliados políticos nos primeiros dias agitados da libertação, conforme os exércitos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha expulsavam os alemães da França e os gaullistas e os comunistas assumiam o controle.

Várias fotos de Renault com Hitler, incluindo uma no Auto Show de Berlim antes de a guerra estourar, também ajudaram a cimentar a sua imagem na França como uma ferramenta nazista.

Indenização

De todas as empresas nacionalizadas entre 1944-1948, apenas a Renault não foi indenizada, apesar de os acionistas minoritários terem sido compensados.
 

Fridenson disse que a política de nacionalização do governo de De Gaulle foi em parte uma forma de acelerar a modernização da economia francesa após a guerra. Como resultado, "a nacionalização da Renault não foi uma sanção pura", disse ele. "Cerca de metade dos argumentos feitos pelo governo na época tinha relação com a modernização. Uma razão era que a Renault não estava fazendo ‘carros populares’ como a Alemanha e os Estados Unidos".

A família já tentou derrubar a decisão e obter uma indenização duas vezes antes. Em 1954, a mulher e o filho de Renault foram informados por um juiz que ele não poderia examinar a validade da decisão do governo de De Gaulle. O Conselho de Estado, a mais alta corte administrativa do país, chegou à mesma conclusão em um recurso de 1961.

O caso judicial dos descendentes atuais contra o Estado foi possível graças a uma lei inovadora promulgada em março de 2010, que permite aos cidadãos contestar a conformidade da legislação com a Constituição francesa.

Apoiada pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy, como um meio de modernizar o sistema jurídico francês, a lei teve várias consequências não intencionais, principalmente uma enxurrada de processos nos tribunais de recurso. Ela já foi utilizada em centenas de casos, incluindo o julgamento de Jacques Chirac, o ex-presidente francês, que é acusado da criação de empregos fictícios como prefeito de Paris.

Tribunal

Thierry Levy, o advogado que representa a família Renault, apresentou o caso em um tribunal de alto nível civil em Paris na semana retrasada. Ele estima que a família poderia receber uma indenização de mais de 100 milhões de euros se os tribunais decidirem que a ordem de nacionalização de 1945 foi ilegal.

A questão jurídica, segundo ele, não é se Renault era um colaborador, mas como seus herdeiros foram tratados. "Se o governo decide confiscar a propriedade de alguém, essa pessoa deve ser julgada e declarada culpada de alguma coisa. Caso contrário, a apreensão é ilegal”, disse Levy.

A Renault tem um valor de mercado de cerca de 11,7 bilhões de euros, e o Estado francês mantém uma participação de 15,01% na empresa. A empresa não discutiu o caso com a família, disse Caroline de Gezelle, porta-voz da Renault. Ela se recusou a comentar o assunto além disso.

Renault-Dingli disse que a família não tinha projetos para a empresa, mas que se entristece com o fato de que seu avô tenha sido desacreditado por uma "pequena, mas ativa minoria" dentro da empresa. Apesar da perda da empresa Renault, disse ela, a família viveu confortavelmente de sua herança da fortuna pessoal de Renault.

A família ganhou uma pequena vitória em julho do ano passado, quando usou os tribunais para forçar um museu histórico – o Centro de Memória de Oradour – a remover a exposição de uma fotografia de Renault com Hitler no Auto Show de Berlim no final de 1930. A foto era exibida ao lado de uma legenda que dizia que Renault construiu tanques para o Exército alemão.

Independentemente do que for decidido nos tribunais, a campanha da família já está reabrindo velhas feridas políticas. O Partido Comunista francês emitiu um comunicado no dia 13 de maio acusando os netos de tentar "reescrever a história" e "extorquir os fundos do Estado”.

*Por David Jolly e Matthew Saltmarsh

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