Amorim: Permanência indefinida no Haiti daria ‘falsa sensação de conforto’

O ministro, que acompanha a presidente Dilma Rousseff em visita ao Haiti nesta quarta-feira, defende que a ONU não abandone o país – devastado por um terremoto em 2010 -, "mas progressivamente passe desse viés de segurança para um viés de desenvolvimento".

A partir de março, o Brasil deverá começar a retirar mais de 200 militares enviados à missão de paz da ONU no Haiti e reduzir paulatinamente o efetivo de 2,2 mil soldados brasileiros.

Amorim disse que a tarefa da Minustah, sob comando brasileiro, está sendo cumprida. Mas ele considera que já é hora de as tropas voltarem para casa.

Questionado também sobre a instalação da Comissão da Verdade no Brasil, para investigar abusos cometidos no país entre 1946 e 1988, o ministro disse que o governo não está preocupado com o mal-estar gerado pelos trabalhos entre integrantes das Forças Armadas.

"A verdade vai ser apurada corretamente. A verdade tem que ser descoberta", afirma.

A Comissão da Verdade deverá apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 e identificar os responsáveis pelas mortes, torturas e desaparecimentos neste período. Os responsáveis não serão punidos.

Leia a seguir trechos da entrevista com Amorim, feita em Caracas durante uma visita do ministro, entre 24 e 25 de janeiro, para traçar com o presidente venezuelano Hugo Chávez um plano de cooperação e desenvolvimento militar, de olho no ambicioso projeto de criação de uma indústria de defesa sul-americana.

BBC Brasil – Depois de sete anos de atuação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), o Haiti está pronto para a saída das tropas estrangeiras? Como será o processo de retirada dos soldados brasileiros?

Celso Amorim – Esse processo já começou. Em março, devem sair 200 e poucos soldados brasileiros. Houve um acréscimo no número de soldados depois do terremoto.

A ideia é que tem que haver uma redução gradual (das tropas). Não faz sentido, o Haiti, já tendo sua segunda eleição democrática, mesmo com as dificuldades que tem um país pobre, continuar durante muito tempo dependente de forças internacionais para manter a ordem.

Até porque se você olhar o aspecto político, o Haiti está pacificado. O [ex-presidente Jean Bertrand] Aristide voltou pra lá, até o Baby Doc (ex-presidente Jean-Claude Duvalier) voltou.

Não estou emitindo juízo de valor, mas isso demonstra uma certa pacificação do país. Hoje em dia [em Cité Soleil e Beleher] o nível de violência é baixíssimo. Claro, é baixíssimo porque a Minustah está lá, mas temos que progressivamente transferir isso à polícia haitiana.

Ninguém admite publicamente que (a presença da Minustah) vai se eternizar, mas se ficar este sentimento de que ela vai ficar indefinidamente, isso dá uma falsa situação de conforto.

Isso não é bom, nem para os governantes haitianos, que têm que tomar as providências deles, mas sobretudo para a comunidade internacional, que diz: "Ah, o problema do Haiti está resolvido. Estão os brasileiros, os latino-americanos por lá", mas com isso o que é realmente importante – que é ajudar na reconstrução, no desenvolvimento do Haiti – deixa de ser feito.

Acho que a ONU não deve abandonar o Haiti, mas progressivamente tem que passar desse viés de segurança, basicamente, e manutenção da ordem, para um viés de desenvolvimento. E o Brasil continuará comprometido.
 

BBC Brasil – Há uma previsão de retorno definitivo da totalidade das tropas brasileiras?

Amorim – A primeira saída é agora. Acho que tem que ser uma coisa progressiva, que não coloque em risco a segurança imediata, mas não vou dar um prazo certo. É razoável imaginar que antes da próxima eleição isso já esteja (definido).

BBC Brasil – A retirada é da Minustah ou somente das tropas brasileiras?

Amorim – As duas coisas. A Minustah não é uma decisão do Brasil. Acho que o Brasil não tem por que abandonar, mas não tem por que ficar com o ônus totalmente. (A situação) tem que ser analisada e deve haver uma redução gradual. Esse sentimento é comum entre os países sul-americanos que têm o grosso do contingente lá.

BBC Brasil – Uma das tarefas da Minustah no Haiti era a de ajudar na reorganização da Polícia e do Exército haitiano – dissolvido por Aristide em 1995 – para que os haitianos pudessem assumir com autonomia a segurança do país. Isso foi feito?

Amorim – A questão policial ficou a cargo dos canadenses. Acho que tem evoluído. Essa é sim uma tarefa muito importante e na próxima semana terei a possibilidade de avaliar melhor isso. Não podemos ficar dando a sensação que vamos ficar eternamente e não podemos sair irresponsavelmente, até porque seria injusto com os próprios brasileiros que perderam a vida lá para ajudar o Haiti.

BBC Brasil – Nesta semana, a Minustah admitiu novas acusações de violação sexual das tropas contra a população. Como o senhor vê esses novos questionamentos?

Amorim – Não é um local onde não ocorram problemas deste tipo. Na última acusação que houve, que envolveu brasileiros, a própria ONU já reconheceu que era pouco provável que eles estivessem envolvidos. Uma coisa é o comando geral, que está sob o comando de um general brasileiro, mas não é o Brasil que determina o procedimento.

A Minustah tem um procedimento e tolerância zero com essas situações, agora o nível de educação, digo no sentido de treinamento de cada país para respeitar os direitos humanos, é diferente. Não posso falar pelos outros.

BBC Brasil –Acusações deste tipo não contribuem ainda mais para minar a imagem da Minustah, que já vem sendo questionada pelos haitianos?

Amorim – Claro que não é bom que essas coisas ocorram. Como disse, no caso dos brasileiros, tudo indicou que não eram eles (os responsáveis), que seus celulares não estavam no local, isso tudo foi objeto de investigação. É preciso primeiro investigar para ter certeza que isso ocorreu.

Tudo tem que ser apurado e o que está errado tem que ser corrigido. E, se for necessário haver punição de acordo com as regras de cada país, (isso) se fará com orientação da ONU.

Mas isso não é um jogo de golfe, estamos falando de uma situação de conflito. Às vezes é fácil falar em abstrato, mas muitas vezes se pode estar apartando uma situação de violência entre dois grupos, duas facções, e ao fazer isso, pode se fazer alguma coisa errada. Agora, evidentemente abusos sexuais como os que você menciona têm que ser condenados.
 

BBC Brasil- Qual balanço o senhor faz desses sete anos de atuação da Minustah? Valeu a pena o desgaste político?

Amorim – Não vejo desgaste político. Valeu muitíssimo a pena. Tivemos duas eleições democráticas seguidas no Haiti, com resultados reconhecidos. Não sei se foi perfeito. Mas em muitos lugares, muitas vezes mais desenvolvidos, as eleições não são perfeitas e nós sabemos. O povo hoje vive em relativa paz, livre das gangues armadas ligadas ao crime. Pergunte aos próprios haitianos.

A maioria deles é favorável (à missão). Há alguns grupos que talvez preferissem que houvesse ainda certa situação de desordem, que isso sempre cria oportunidades também. A tarefa está sendo cumprida, uma boa parte dela está completada, acho que temos que voltar pra casa de maneira responsável.

BBC Brasil – A presidente Dilma Rousseff deverá escolher os sete conselheiros que devem compor a Comissão da Verdade. O ex-presidente Lula participará desta seleção?

Amorim – Não sei. O Ministério da Defesa está interessado porque boa parte do assunto diz respeito às Forças Armadas, mas não tenho nenhuma interferência. Mas acho que quem vai escolher é a presidenta Dilma.

BBC Brasil – Familiares das vítimas da ditadura questionam a falta de transparência no processo de constituição da Comissão, falam da ingerência de militares e temem que o trabalho da Comissão não alcance a verdade sobre os crimes cometidos na ditadura. Como o senhor vê essas críticas?

Amorim – Não são todos, são alguns (que criticam). A disposição é de que tudo que tenha que ser apurado, seja apurado. E não há nenhuma ingerência de militares, não sei de onde isso está sendo tirado. Eles terão que cooperar, falar eventualmente se for o caso, mas vamos ver. A própria comissão é quem vai definir seus métodos de trabalho. A verdade vai ser apurada corretamente. A verdade tem que ser descoberta.

BBC Brasil – Há preocupação no governo de que a atuação da Comissão possa gerar mal-estar entre as Forças Armadas?

Amorim – Não vejo preocupação. Obviamente estas coisas são delicadas, mas têm que ser feitas. A verdade tem que ser conhecida. Isso é uma necessidade. Muitos dizem que isso é coisa só dos familiares. É dos familiares, sem dúvida que é, mas é uma necessidade da sociedade brasileira, do povo brasileiro conhecer a verdade sobre seu passado e cada um fará seu julgamento. Nós cooperaremos plenamente com isso.

BBC Brasil – A Comissão deve avaliar o período de 1946 a 1988 em dois anos. Haverá tempo suficiente para avaliar os documentos e obter informação sobre os crimes cometidos neste período?

Amorim – As pessoas terão que ser seletivas e concentrar-se nos períodos sobre os quais existe maior quantidade de dúvidas, de suspeitas e acusações. Tenho certeza que os membros da Comissão, que serão todas pessoas moralmente inatacáveis, terão discernimento para atacar os períodos que forem mais importantes.

BBC Brasil – Essa Comissão terá condições de fechar a ferida sobre a história da ditadura brasileira?

Amorim – Quem tem que fechar as feridas é o povo brasileiro. A Comissão vai descobrir a verdade, e nós temos que enfrentar a verdade. Olhar no espelho é duro, mas é preciso olhar e tirar suas conclusões.

BBC Brasil – Essa ferida pode ser fechada sem informação?

Amorim – Não. Mas é muito significativo que, no mesmo dia em que se aprovou a Comissão da Verdade, tenha sido aprovada a lei do direito à informação. Então, a informação vai ser buscada e estou convencido que, não sei se todas, mas muita coisa vai se saber, além de que muitas coisas vão se comprovar, muitas coisas que se suspeitavam se comprovarão, outras não.

É um processo. A disposição é essa: de que a verdade seja estabelecida.

BBC Brasil – A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, pediram a revogação da Lei de Anistia para que os crimes cometidos durante a ditadura possam ser esclarecidos.

Amorim – Não vou comentar sobre isso, porque houve uma decisão do Supremo Tribunal Federal no Brasil que é por onde temos que nos pautar.

 

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