Autor: Rui MARTINS da MOTA,
Coordenador-Geral MARS – Senior Staff
Apresentação
O ataque antissemita ocorrido recentemente na Austrália constitui um exemplo concreto e trágico dos efeitos periféricos da Guerra em Gaza, conforme antecipado na apresentação para o III Simpósio da Percepção Terrorista, organizado pela FISEMG, e no artigo “Guerra Furtiva:
Análise Estratégica do Conflito em Gaza”, que será publicado pela ESG e o site DefesaNet nos próximos dias. A análise sustenta que o conflito não se limita ao Oriente Médio, irradiando polarização ideológica, radicalização de percepções e ações de “lobos solitários” em diversas regiões do mundo, especialmente em países caracterizados por cenários políticos polarizados e pela presença de comunidades judaicas significativas.
Com base em nossa análise completa contida no artigo “Guerra Furtiva: Análise Estratégica do Conflito em Gaza”, apresentamos abaixo um exame sintético e de opinião sobre o atentado na Austrália como resultado dos impactos psicossociais, informacionais, políticos e securitários associados à globalização da Guerra Cognitiva, indicando como disputas narrativas e processos de radicalização simbólica podem gerar violência real fora do teatro original de operações. O caso australiano é destacado como alerta estratégico para a Europa, a América
Latina e, em particular, o Brasil.
Introdução
O atentado antissemita ocorrido recentemente na Austrália constitui um episódio emblemático dos efeitos periféricos da Guerra em Gaza no sistema internacional contemporâneo. Embora geograficamente distante do teatro principal de operações, o evento evidencia como conflitos assimétricos modernos extrapolam fronteiras físicas e passam a impactar sociedades externas por meio de dinâmicas sociopsicológicas, informacionais e securitárias.
O ataque, direcionado a um evento da comunidade judaica durante a celebração de Hanukkah, na Austrália, em 14 de dezembro de 2025, não pode ser interpretado como fato isolado ou circunstancial. Trata-se da manifestação concreta de um ambiente internacional progressivamente polarizado, no qual narrativas ideológicas, ressentimentos identitários e processos de radicalização individual produzem violência real em contextos historicamente considerados estáveis.
Efeitos periféricos em quatro eixos
Conforme detalhado no artigo já mencionado, verifica-se quatro eixos de impactos do conflito em Gaza sobre o sistema internacional:
Eixo Psicossocial
No plano psicossocial, o conflito em Gaza passa a ser internalizado por sociedades externas como símbolo de disputas morais e ideológicas domésticas. A guerra deixa de ser percebida como evento externo e converte-se em metáfora identitária, mobilizando emoções, ressentimentos e lealdades políticas.
Nesse contexto, observa-se a legitimação simbólica da violência quando setores políticos, acadêmicos e militantes passam a defender ou relativizar a atuação do Hamas, frequentemente minimizando ou silenciando o massacre de 7 de outubro. Essa inversão narrativa cria um ambiente no qual judeus, enquanto grupo social concreto, são tratados como representantes simbólicos de um conflito distante, tornando-se alvos legítimos de hostilidade.
Eixo Informacional
No eixo informacional, a Guerra Cognitiva assume papel central. Campanhas de desinformação exploram clivagens políticas, religiosas e identitárias, promovendo narrativas simplificadas e moralmente binárias. O antissemitismo reaparece, de forma recorrente, disfarçado sob a retórica do “antissionismo”, o que dificulta sua identificação e contribui para a normalização de discursos de ódio.
As redes sociais funcionam como aceleradores desse processo, amplificando teorias conspiratórias, discursos desumanizantes e enquadramentos ideológicos que reforçam a radicalização digital. O resultado é a fragmentação do debate público e a erosão de referências factuais mínimas, favorecendo o esquecimento seletivo de eventos fundacionais do conflito, como o ataque de 7 de outubro.
Eixo Político
No eixo político, ocorre a tribalização do espaço público. Grupos organizam sua identidade política a partir da adesão incondicional a determinadas narrativas, rejeitando nuance, mediação ou contextualização histórica. O diálogo é substituído pela lógica amigo–inimigo, e a dissidência passa a ser percebida como ameaça moral.
Essa dinâmica reforça comportamentos de escalada simbólica que, em determinados contextos, transbordam para a ação física. Quando a identidade se torna gatilho emocional e a narrativa fornece justificativa moral, a violência deixa de ser percebida como exceção e passa a ser racionalizada como resposta legítima.
Eixo Securitário
No plano securitário, destaca-se o risco crescente de ações protagonizadas por “lobos solitários” ou pequenos núcleos radicalizados. Esses agentes não dependem de vínculos formais com organizações terroristas estruturadas; sua motivação decorre da exposição contínua a narrativas extremistas e da percepção de permissividade simbólica.
Eventos comunitários, instituições religiosas e espaços culturais tornam-se alvos preferenciais por sua carga simbólica e relativa previsibilidade. À medida que a retórica antissemita se normaliza em determinados círculos políticos e midiáticos, a vulnerabilidade dessas comunidades aumenta, mesmo em países com histórico reduzido desse tipo de violência.
O que aconteceu na Austrália pode ocorrer na América Latina e no Brasil
O fator decisivo não é a geografia, mas o ecossistema político-informacional. A mesma combinação de polarização ideológica, radicalização digital e fragilidade narrativa está presente na Europa e na América Latina, ainda que com intensidades distintas.
No caso brasileiro, elementos estruturais ampliam o risco: a importação acrítica de conflitos internacionais para o debate político doméstico; a presença de comunidades judaicas e árabes/muçulmanas relevantes; limitações institucionais no monitoramento de discursos de ódio; e a exposição contínua a campanhas de desinformação transnacional.
Soma-se a isso a sensibilidade histórica da Tríplice Fronteira, frequentemente citada em análises de inteligência
como área de potencial apoio financeiro ou logístico a grupos extremistas.
Embora o risco no Brasil tenda a se manifestar mais como ameaça latente do que como campanha organizada, a possibilidade de atentados isolados não pode ser descartada, sobretudo em ambientes onde a retórica ideológica já ultrapassou os limites do debate político legítimo.
Recomendações estratégicas
Diante desse cenário, impõem-se medidas preventivas de caráter multidimensional:
- Fortalecimento da inteligência preventiva, com foco no monitoramento de radicalização digital, redes de ódio e fluxos financeiros suspeitos;
- Ampliação da resiliência informacional, por meio de políticas de checagem de fatos, comunicação institucional e educação midiática;
- Reforço da proteção a comunidades e alvos simbólicos vulneráveis, especialmente em datas religiosas e eventos públicos;
- Promoção de canais de diálogo inter-religioso e político, visando reduzir a instrumentalização ideológica do conflito no ambiente doméstico. Essas ações não eliminam o risco, mas reduzem significativamente a probabilidade de transbordamento violento.
Conclusão
O atentado antissemita na Austrália deve ser compreendido como sintoma da globalização da Guerra Furtiva no século XXI. A combinação entre polarização psicossocial, Guerra Cognitiva e radicalização informacional produz efeitos concretos e violentos muito além das fronteiras do conflito original.
Europa, América Latina e Brasil já se encontram inseridos nesse campo de batalha invisível, no qual a disputa pela narrativa precede e condiciona a violência física. Ignorar essa realidade equivale a aceitar que eventos semelhantes se repitam de forma fragmentada, imprevisível e potencialmente letal.
A guerra contemporânea não se trava apenas em territórios distantes, mas no interior das sociedades, nas percepções coletivas e nas consciências individuais — e suas consequências podem ser tão destrutivas quanto as de qualquer confronto armado tradicional.
“A guerra do século XXI não é apenas travada em campos distantes, mas dentro das consciências.”
— Guerra Furtiva: Análise Estratégica do Conflito em Gaza (MARS – Senior Staff)





















