Narrativa de colapso que não se sustenta: desinformação, guerra híbrida e o caso do artigo sobre a Ucrânia no MSN

Introdução

Circulou recentemente em portal de grande alcance — o MSN — um artigo que descreve uma suposta “catástrofe” nas Forças Armadas da Ucrânia, atribuindo-lhes colapso operacional, deserções em massa e perdas humanas de proporções incompatíveis com qualquer dado verificável. O texto, assinado por João Cláudio Platenik Pitillo, apresenta-se com verniz acadêmico, mas carece de fundamentos empíricos sólidos e reproduz, quase integralmente, narrativas centrais da propaganda estratégica russa desde 2022.

Este artigo analisa criticamente tais alegações, demonstra suas inconsistências factuais e lógicas e questiona, de forma objetiva, como um conteúdo dessa natureza alcança difusão em um portal de alcance global.

A fragilidade factual: números que não resistem à verificação

O ponto mais grave do texto analisado é a afirmação de que a Ucrânia teria sofrido 1,7 milhão de mortos e desaparecidos.
Essa cifra:

  • Não é reconhecida por nenhuma fonte independente, seja ocidental, ucraniana ou neutra.
  • Contraria estimativas de projetos OSINT, serviços de inteligência e centros de estudos estratégicos, que situam as perdas ucranianas totais (mortos e feridos) em ordens de grandeza muito inferiores.
  • Excede, inclusive, a capacidade de mobilização histórica da própria Ucrânia sem colapso institucional completo — algo que claramente não ocorreu.

O uso de números hiperbólicos, desacompanhados de metodologia, fontes primárias ou critérios de cálculo, é técnica clássica de guerra informacional, destinada a produzir choque psicológico e sensação de inevitabilidade da derrota.

Deserção e mobilização: fatos reais distorcidos por narrativa

É verdadeiro que a Ucrânia enfrenta:

  • Desgaste humano,
  • Problemas de mobilização,
  • Casos documentados de ausência sem licença (AWOL) e deserção.

Contudo, o artigo transforma fenômenos reais e conhecidos em evidência de colapso sistêmico, ignorando deliberadamente que:

  • Processos por AWOL não equivalem automaticamente a deserção definitiva.
  • Muitos soldados retornam às unidades ou têm processos arquivados.
  • Todos os países em guerra prolongada — inclusive a Rússia — enfrentam problemas semelhantes, frequentemente em escala comparável ou superior.

A omissão completa das dificuldades russas de mobilização, do uso extensivo de presidiários, mercenários e contratos coercitivos revela uma seleção intencional de fatos.

O paradoxo central ignorado: se a Ucrânia colapsou, por que a Rússia não venceu?

Aqui reside a contradição lógica fundamental do artigo.

Se as Forças Armadas da Ucrânia fossem:

  • Majoritariamente desmotivadas,
  • Incapazes de combater,
  • Com unidades sofrendo 80% a 90% de baixas,
  • Sustentadas apenas por mobilização forçada e corrupção,

então a pergunta inevitável é:

Por que a Federação Russa, potência militar superior, com maior população, maior base industrial e maior estoque de meios, não obteve uma vitória decisiva após quase três anos de guerra?

Existem apenas duas explicações possíveis:

  1. A narrativa do colapso ucraniano é falsa ou severamente exagerada, ou
  2. As Forças Armadas Russas seriam estruturalmente incompetentes, incapazes de derrotar um inimigo menor, supostamente desmoralizado e mal equipado.

O autor evita enfrentar esse dilema. Qualquer análise séria de defesa precisa fazê-lo.

Avaliação de viés e possível influência pró-Rússia

Ao comparar o texto com dados independentes e relatos de fontes verificadas, identificam-se elementos que coincidem com narrativas usadas pela propaganda russa e seus simpatizantes:

Pontos de preocupação

O texto reproduz, de forma quase literal, os principais eixos da comunicação estratégica do Kremlin:

  • Exagerar perdas ucranianas para sugerir um colapso iminente.
  • Dizer que a mobilização só existe porque o exército é incapaz de continuar sem ela.
  • Afirmar que desertores representam a maioria do efetivo, sem contextualização adequada.
  • Retratar a liderança ucraniana como totalmente incapaz de manter um exército funcional.

Fontes independentes de checagem de fatos ressaltam que narrativas que minimizam a eficácia do exército ucraniano e exageram a extensão das deserções ou a escala de colapso fazem parte de campanhas de desinformação que buscam minar a confiança em Kiev e o apoio ocidental.

Sobre o autor e o contexto

Mesmo que o autor apresentado tenha afiliação acadêmica, isso não garante que as afirmações específicas feitas no texto sejam precisas ou equilibradas. Um artigo pode refletir opiniões pessoais ou interpretações seletivas de dados com viés — inclusive alinhado com uma leitura pro-Rússia do conflito — mesmo que o autor tenha credenciais acadêmicas.

Isso não prova intenção consciente, mas indica alinhamento inequívoco com narrativas pró-Rússia, típicas de operações de influência voltadas a audiências externas, especialmente na América Latina.

Credenciais acadêmicas não blindam um autor contra viés ideológico, nem transformam opinião em fato.

Narrativa de colapso que não se sustenta: desinformação, guerra híbrida e o caso do artigo sobre a Ucrânia no MSN
Narrativa de colapso que não se sustenta: desinformação, guerra híbrida e o caso do artigo sobre a Ucrânia no MSN

O problema editorial: como isso chega ao MSN

A publicação de um texto dessa natureza em um portal como o MSN é problemática por três razões:

  1. Ausência de checagem factual rigorosa, especialmente sobre números de baixas.
  2. Falta de contraponto analítico, transformando opinião em suposta análise.
  3. Amplificação de desinformação estratégica, ainda que não intencional, em um ambiente informacional sensível.

Portais de grande alcance não podem tratar conflitos em curso — especialmente guerras convencionais de alta intensidade — como espaço para artigos opinativos travestidos de análise factual.

Conclusão

O artigo em questão não resiste a uma análise crítica mínima. Ele se apoia em números infundados, omissões estratégicas e contradições lógicas evidentes. Mais grave: alinha-se, consciente ou não, à arquitetura narrativa da propaganda russa, cujo objetivo central é minar a percepção de resiliência ucraniana e o apoio internacional.

A guerra na Ucrânia é longa, custosa e brutal. Mas justamente por isso exige análises sérias, baseadas em dados verificáveis e coerência lógica, não textos que prometem colapso iminente há quase três anos — e que seguem sendo desmentidos pela realidade do campo de batalha.

Em guerra, quando a narrativa não explica os fatos, o problema não está nos fatos. Está na narrativa.

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