Por Ricardo Fan, para DefesaNet
A geopolítica do Indo-Pacífico vive, em 2025, uma das maiores inflexões estratégicas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A crescente rivalidade entre China, Rússia e Japão não é apenas disputa por território ou poder militar — é uma batalha pela interpretação legítima do pós-guerra, pela memória coletiva e, em última instância, pela definição de quem tem autoridade moral para moldar o século XXI.
A reunião estratégica realizada em 2 de dezembro, em Moscou, entre Wang Yi e Sergei Shoigu, expôs essa mudança de forma nítida. Na 20ª rodada de consultas de segurança entre Pequim e Moscou, as duas potências declararam oposição “resoluta a qualquer tentativa de reviver o fascismo¹ ou o militarismo japonês”.
A frase, amplamente repercutida nas mídias oficiais chinesas e russas, não é retórica cerimonial: é a ancoragem ideológica de uma nova convergência geopolítica¹.
O retorno do Samurai: militarismo japonês como risco estrutural

Para a China e a Rússia, o Japão de Sanae Takaichi rompe com os consensos fundamentais estabelecidos em 1945. A antiga imagem de potência pacifista dá lugar a um ator que:
- amplia gastos militares;
- flexibiliza interpretações constitucionais;
- expande alianças no Indo-Pacífico;
- sinaliza disposição de intervir militarmente em uma contingência envolvendo Taiwan — linha vermelha absoluta para Pequim.
Essa percepção é reforçada pela leitura histórica chinesa: para Beijing, o Japão jamais lidou integralmente com sua herança imperial e colonial, e setores nacionalistas seguem influentes no governo. Sob Takaichi, essa sombra ganha luz.
Ao rotular o movimento japonês como “revivalismo militarista”, China e Rússia buscam enquadrar o debate no terreno simbólico onde ambas detêm vantagem narrativa: o legado da vitória antifascista.
Contudo — e este é o ponto que raramente aparece nas análises chinesas e russas — o rearmamento japonês não ocorre no vácuo. Ele é, em grande medida, reação direta:
- ao expansionismo militar chinês no Mar do Sul e ao redor de Taiwan;
- às ameaças repetidas ao espaço aéreo e marítimo de vizinhos regionais;
- à ausência de resolução das Ilhas Curilas do Sul, ocupadas pela Rússia desde 1945 e jamais devolvidas ao Japão.
É nesse contexto que ressurge um fenômeno político profundo: o despertar do “guerreiro adormecido”. Para muitos estrategistas japoneses, se China e Rússia abandonam o espírito de 1945, o Japão não tem a obrigação moral de manter restrições que só ele respeita.
Takaichi, a “nova Thatcher da Ásia: nacionalismo, ruptura e ambição geopolítica

A primeira-ministra Sanae Takaichi projeta-se como líder modernizadora, reformista e firme — mas sua agenda rompe com a essência da Constituição pacifista de 1947.
Seus pilares estratégicos incluem:
- rearmamento acelerado e ampliação de capacidades de ataque;
- aproximação operacional plena com os EUA, especialmente em cenários ligados a Taiwan;
- retórica nacionalista, reverberando grupos conservadores que relativizam o passado imperial;
- ideia de protagonismo regional, abandonando o papel de potência exclusivamente defensiva.
Para Xi Jinping, essa mudança representa antagonismo direto ao projeto chinês de “destino comum da humanidade” e estabilidade econômica-regional. A visão de Takaichi reativa o modelo de esferas de influência e alianças armadas — um choque conceitual com o discurso oficial de Beijing.
A ordem pós-1945 em disputa: quem tem o direito de interpretar a Segunda Guerra?
O centro da disputa deixou de ser apenas militar. Tornou-se historiológico.
China e Rússia, que perderam dezenas de milhões de vidas no conflito, consideram-se guardiãs do legado antifascista. Para elas:
- o pós-guerra não é um marco jurídico, mas um trauma fundacional;
- qualquer flexibilização militar japonesa sugere risco moral, não apenas estratégico;
- a história é instrumento de legitimação global.
Já para o Japão, o pós-guerra está sendo distorcido para justificar o comportamento revisionista de outras potências. Beijing e Moscou evocam 1945 — mas são elas que alteram fronteiras de facto (no Pacífico e na Ucrânia) e pressionam países vizinhos.
Assim, a história deixa de ser memória e torna-se campo de batalha.
Taiwan: o epicentro da crise
A declaração de Shoigu, apoiando “firmemente” a posição chinesa sobre Taiwan, eleva a questão a novo patamar. O que antes era visto como disputa sino-americana torna-se problema de arquitetura de poder global.
Para a China, a simples menção de Takaichi a uma eventual intervenção japonesa é provocação máxima. Para o Japão, porém, a defesa de Taiwan é proteção do próprio perímetro estratégico — um amortecedor vital diante da expansão naval chinesa.
Taiwan, portanto, assume o papel de sarajevo potencial do século XXI.
A multipolaridade em maturação: a convergência sino-russa

O eixo entre Pequim e Moscou emerge mais coeso do que em qualquer momento desde os anos 1950. Não há aliança formal, mas há:
- alinhamento de narrativas;
- coordenação diplomática;
- exercícios militares conjuntos;
- percepções de ameaça convergentes.
Moscou vê o Japão como instrumento americano no Pacífico Norte. Pequim vê uma potência histórica ressurgente. Ambos veem um sistema internacional hostil.
Paradoxalmente, o rearmamento japonês — reação ao comportamento das duas — serve de combustível para essa aproximação.
Conclusão: o passado não passou — ele voltou ao centro da geopolítica
A reunião de Moscou formaliza uma leitura comum: velhos fantasmas regressaram ao tabuleiro asiático. E o Japão, novamente, está no epicentro.
Para China e Rússia, Takaichi representa ameaça à arquitetura pós-guerra. Para Tóquio, a ameaça é precisamente o revisionismo de Pequim e Moscou. Para Washington, o Japão é peça vital da contenção à China. E para Taiwan, é uma questão de sobrevivência.
A história — antes lembrada em cerimônias oficiais — transformou-se em arma diplomática e justificativa estratégica. O Indo-Pacífico entra em uma era onde narrativas, memórias, ameaças e alianças se misturam em tempestade perfeita.
A nova tempestade asiática está formada — e seus trovões reverberam muito além do Pacífico.

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¹Nota analítica – o outro lado de tabuleiro
A narrativa sino-russa, que acusa o Japão de “reviver o militarismo”, ignora deliberadamente uma contradição central: China e Rússia, embora se apresentem como guardiãs do legado antifascista por terem perdido dezenas de milhões de vidas entre 1931 e 1945, hoje operam sistemas político-estratégicos que se aproximam justamente das características clássicas de regimes de orientação fascista.
Entre esses elementos, analistas destacam:
- centralização extrema do poder em lideranças pessoais (Xi Jinping e Vladimir Putin);
- partidos únicos ou hegemonia partidária, com repressão sistemática a oposição política;
- culto à liderança, simbolismo estatal e mobilização emocional da população;
- militarização crescente da sociedade por meio de narrativas de ameaça externa permanente;
- expansionismo territorial ou revisionismo geopolítico ativo, visível na fronteira ucraniana, no Indo-Pacífico e nas fronteiras marítimas.
Essas características aproximam os dois regimes dos pilares funcionais do autoritarismo nacionalista do século XX — mesmo que sob novas roupagens.
O contraste com o Japão é significativo.
Ao contrário da China e da Rússia, o Japão contemporâneo é uma democracia consolidada, com:
- sistema multipartidário real;
- liberdade de imprensa;
- alternância institucional de liderança;
- judiciário independente;
- sociedade civil ativa;
- política de defesa rigidamente supervisionada por controles parlamentares.
Portanto, quando Pequim e Moscou acusam Tóquio de “revivalismo militarista”, há uma dissonância evidente entre discurso e realidade política interna.
Além disso, é preciso recordar que:
- O rearmamento japonês é reação direta ao expansionismo militar chinês no Mar do Sul e no Estreito de Taiwan;
- A Rússia jamais devolveu os territórios japoneses ocupados após 1945 (as Ilhas Curilas);
- O comportamento estratégico de China e Rússia — e não o contrário — é o que está despertando o “guerreiro adormecido” no Japão.
Em síntese: as duas potências que discursam como defensoras do pacifismo são, paradoxalmente, as que mais contribuem para o retorno da assertividade militar japonesa.
China e Rússia afirmam guardar o espírito de 1945; mas são elas, não o Japão democrático, que hoje mais se aproximam dos métodos e lógicas que o pós-guerra pretendia superar.
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