Alemanha reavalia alistamento militar obrigatório em meio a nova era de incertezas geopolíticas

Bundeswehr completa 70 anos diante de novos dilemas

Por Ricardo Fan – Especial para Defesanet

A Alemanha se encontra novamente diante de um dilema que a acompanha desde a sua reconstrução pós-guerra: como equilibrar sua tradição pacifista contemporânea com a crescente necessidade de garantir a defesa nacional e cumprir seu papel dentro da OTAN.

A coalizão governista de Berlim chegou a um acordo que pode redefinir o modelo de alistamento militar no país, estabelecendo um novo processo que obriga todos os homens com mais de 18 anos a se apresentarem às Forças Armadas (Bundeswehr) para exames médicos e um questionário de motivação e aptidão.

O plano marca o fim do atual modelo exclusivamente voluntário, introduzido após a suspensão do serviço militar obrigatório em 2011. Entretanto, o novo sistema não impõe, de imediato, a obrigatoriedade do serviço militar — apenas o alistamento.

A Bundeswehr continuará operando com metas de recrutamento, preenchidas prioritariamente por voluntários. Caso a demanda não seja atendida, o Bundestag (Parlamento alemão) poderá autorizar um processo seletivo aleatório para compor as fileiras militares.

Resposta às pressões estratégicas do Leste

A iniciativa ocorre em um contexto de tensão crescente na Europa. A guerra na Ucrânia, o aumento das manobras militares russas próximas às fronteiras da OTAN e a instabilidade no Báltico reacenderam em Berlim a percepção de vulnerabilidade. O ministro da Defesa, Boris Pistorius, alertou que a Alemanha deve estar “preparada para uma possível guerra até 2029”, sublinhando que a prontidão nacional é uma prioridade estratégica.

Atualmente, a Bundeswehr conta com cerca de 180 mil militares na ativa, número considerado insuficiente para as metas estabelecidas pelo governo — que pretende alcançar 260 mil soldados ativos e 200 mil reservistas nos próximos anos.

A carência de pessoal tem sido apontada como um dos principais gargalos na operacionalização das novas brigadas alemãs, incluindo a recém-instalada unidade para proteção da infraestrutura crítica e a primeira brigada estacionada no exterior desde a Segunda Guerra Mundial.

O novo modelo de alistamento pretende não apenas ampliar o contingente disponível, mas também identificar, com antecedência, quem está apto a servir em caso de crise. “Queremos saber exatamente quem é capaz de agir em uma emergência de defesa”, explicou Pistorius.

Incentivos e estrutura do novo modelo

O texto do acordo prevê incentivos significativos para os voluntários, como salários próximos a 2,6 mil euros (cerca de R$ 15,9 mil) mensais, além de benefícios adicionais para quem servir por mais de 12 meses, incluindo o status de “soldado temporário” e auxílio financeiro para obtenção de carteira de motorista.

O projeto de lei, que deverá entrar em vigor em 2026, ainda precisa ser aprovado pelo Bundestag. Caso o número de recrutas exceda o necessário, será aplicada uma seleção aleatória para definir quem será efetivamente convocado.

Algumas questões, no entanto, permanecem indefinidas — entre elas, como o modelo se aplicará às mulheres, o que exigiria uma emenda constitucional aprovada por dois terços do parlamento. Também não está claro o tratamento para casos de objeção de consciência em tempos de mobilização.

Da reconstrução à redefinição do ethos militar

O atual debate ecoa os dilemas que marcaram a fundação da Bundeswehr há sete décadas. Criada em 1955, no auge da Guerra Fria, a força armada da então Alemanha Ocidental nasceu sob o princípio do “cidadão de uniforme” — um soldado que serve à democracia e está subordinado ao controle civil. Era a antítese da antiga Wehrmacht, símbolo de obediência cega e instrumentalização política.

A resistência ao rearmamento foi intensa. Após o trauma da Segunda Guerra Mundial, parte expressiva da população rejeitava a ideia de reconstituir um exército nacional. Contudo, a ameaça soviética e a pressão dos aliados ocidentais levaram o então chanceler Konrad Adenauer a defender a criação de uma força alemã integrada à OTAN.

Durante as décadas seguintes, a Bundeswehr tornou-se uma peça essencial da defesa europeia. Em meados dos anos 1980, atingiu seu auge com 495 mil soldados, antes de ser drasticamente reduzida após o fim da Guerra Fria e a reunificação alemã. O foco da defesa territorial deu lugar a missões internacionais, como o prolongado e controverso envolvimento no Afeganistão (2001–2021).

Um novo ciclo de rearmamento europeu

O cenário atual marca o início de um novo ciclo militarista na Europa. A invasão russa da Ucrânia em 2022 levou Berlim a adotar o chamado “Zeitenwende” — uma virada histórica na política de defesa, com investimentos bilionários em modernização, aumento de efetivos e ampliação do orçamento militar, que poderá chegar a 5% do PIB nos próximos anos.

O chanceler Friedrich Merz declarou que a meta é transformar a Bundeswehr no “exército convencional mais forte da Europa”. O desafio, contudo, é mais humano do que tecnológico. Sem pessoal suficiente, mesmo os sistemas de ponta e novas brigadas não alcançarão plena capacidade operacional.

O retorno da Alemanha à lógica da dissuasão

O renascimento do debate sobre o alistamento obrigatório é, na prática, um reflexo do retorno da Alemanha ao tabuleiro geopolítico como potência militar relevante. Setenta anos após sua fundação, a Bundeswehr volta a enfrentar os dilemas que moldaram sua identidade — entre a prudência democrática e a necessidade de dissuasão.

Seja com voluntários ou com recrutamento parcial, Berlim se prepara para um mundo onde a paz já não é garantida apenas por diplomacia e economia. A Europa, mais uma vez, parece depender da disposição da Alemanha em empunhar armas — não para invadir, mas para defender.

Fonte: DW (Deutsche Welle)

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