Por Ricardo Fan – Redação DefesaNet
O Oriente Médio, ao longo do século XX e início do XXI, foi palco de sucessivos conflitos que moldaram a arquitetura de segurança regional. A criação do Estado de Israel em 1948 desencadeou uma série de guerras árabe-israelenses, nas quais a questão palestina se consolidou como elemento central de instabilidade.
Na década de 1980, a Guerra Irã-Iraque evidenciou as rivalidades sectárias e estratégicas entre potências regionais, enquanto a invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 levou à consolidação da presença militar dos Estados Unidos no Golfo, especialmente em bases no Catar, Arábia Saudita e Bahrein.
O cenário pós-11 de Setembro trouxe novas camadas de complexidade, com a luta contra o terrorismo, a invasão do Iraque em 2003 e o fortalecimento de atores não estatais, como Hezbollah e Hamas. Paralelamente, o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), fundado em 1981, buscou criar mecanismos de defesa coletiva, embora sem alcançar a coesão de alianças militares ocidentais. Esse histórico de dependência de potências externas, principalmente dos EUA, contrasta com as tentativas recentes de buscar maior autonomia estratégica.
O ataque israelense em Doha e suas repercussões
O ataque inédito realizado por Israel contra alvos do Hamas em Doha, capital do Catar, no dia 9 de setembro, representou um marco nas dinâmicas de segurança do Oriente Médio. A ação, descrita como “além do horizonte”, envolveu o lançamento de mísseis balísticos que ultrapassaram a atmosfera antes de atingirem o alvo, causando seis mortes.
Apesar de os EUA manterem no Catar sua maior base militar no Golfo e de o país ser considerado um “aliado estratégico não-Otan”, a ofensiva expôs vulnerabilidades no sistema de defesa catariano e, por extensão, das monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG).
Impactos nas relações com os EUA
A operação israelense trouxe à tona questionamentos sobre a confiabilidade dos Estados Unidos como garantidores de segurança na região. Analistas como Kristin Diwan, do Instituto dos Estados Árabes do Golfo, destacam que o episódio rompeu com pressupostos históricos de defesa mútua entre Washington e seus parceiros árabes.
Já Sanam Vakil, da Chatham House, ressalta que cresce o desejo das monarquias do Golfo de adotar maior autonomia estratégica diante do risco de dependência exclusiva de Washington.
A retomada do debate sobre uma aliança militar islâmica
Diante do cenário, ressurge com força a discussão sobre a criação de uma aliança de defesa coletiva entre países árabes e islâmicos – uma espécie de “Otan islâmica”. Durante uma cúpula emergencial da Liga Árabe e da Organização da Cooperação Islâmica (OCI), autoridades egípcias sugeriram a constituição de uma força-tarefa conjunta.
O primeiro-ministro do Iraque, Mohammed Shia al-Sudani, reforçou o apelo por uma abordagem coletiva para a segurança regional.
Paralelamente, os seis membros do CCG – Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – anunciaram a intenção de reativar a cláusula de defesa mútua assinada em 2000, em formulação semelhante ao Artigo 5.º da OTAN. Em Doha, ministros da Defesa do Golfo decidiram aprimorar o intercâmbio de informações, criar um sistema regional de alerta contra mísseis balísticos e promover exercícios militares conjuntos.
O fator Paquistão
Outro desdobramento relevante foi o anúncio de um acordo estratégico de defesa mútua entre Arábia Saudita e Paquistão. Segundo o comunicado, qualquer agressão contra um dos dois países será considerada agressão contra ambos.
Esse movimento adiciona uma dimensão extra ao debate, estendendo a lógica de defesa coletiva além das fronteiras árabes e conectando-a ao eixo nuclear-islâmico representado pelo Paquistão.
Desafios à consolidação de uma aliança
Apesar dos avanços diplomáticos recentes, a viabilidade de uma “Otan islâmica” encontra obstáculos. Rivalidades históricas entre países árabes, diferenças na percepção de ameaças e interesses divergentes em relação a atores externos, como Irã, Turquia e Israel, podem limitar o alcance de tal iniciativa.
Além disso, a presença militar norte-americana e as alianças bilaterais já estabelecidas criam um ambiente complexo para a definição de uma arquitetura de defesa verdadeiramente autônoma.
Considerações finais
O ataque israelense em Doha funcionou como catalisador de um debate latente: a necessidade de mecanismos próprios de defesa coletiva no mundo árabe-islâmico.
Se, de fato, a ideia de uma “Otan islâmica” se materializar, ela poderá alterar significativamente o equilíbrio estratégico regional, reduzindo a centralidade dos EUA como garantidor de segurança e criando uma nova dinâmica de poder no Oriente Médio.
Fonte: DW





















