8JANBSB – Havia Vontade de Golpe, mas as Forças Armadas não Queriam

Múcio reconhece que houve ‘erro’ na condução do acampamento em frente ao QG do Exército, mas cobra o Poder Judiciário por não ter determinado a saída dos extremistas mais cedo

JENIFFER GULARTE
E THIAGO BRONZATTO 
O Globo
05 Janeiro 2024

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No segundo dia da série de entrevistas e reportagens do GLOBO sobre os ataques golpistas do 8 de janeiro, o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, admite que havia militares dispostos ao golpe, mas afirma que as instituições não embarcaram na empreitada. O titular da pasta responsável pelas Forças Armadas também reconhece que houve “erro” na condução do acampamento em frente ao QG do Exército, mas cobra o Poder Judiciário por não ter determinado a saída dos extremistas antes da invasão às sedes dos Três Poderes.

Onde o senhor estava quando soube dos ataques?

Preciso falar de como tudo começou. Não estava nos meus planos voltar para a política, mas não queria ser cúmplice do estado em que o Brasil vivia. No dia 5 de dezembro, eu cheguei em Brasília, conversei com o presidente e fui anunciado (ministro da Defesa). E começa aí o meu 8 de janeiro. Primeiro, tive uma dificuldade enorme de chegar aos comandantes (das Forças Armadas). Só consegui na segunda quinzena de dezembro. O comandante da Aeronáutica cumpriu a Constituição e saiu no dia correto. O da Marinha não me recebeu, mas saiu no dia correto. O comandante do Exército me disse que queria sair no dia 20, mas fiz um apelo, e ele saiu 30 de dezembro.

O sucesso do dia 1º de janeiro talvez tenha nos contaminado. Foi uma posse em que ninguém desafinou.

No dia 6 ou 7 de janeiro, o comandante do Exército disse que o movimento (em frente aos quartéis) estava enfraquecido. A inteligência tinha detectado uns ônibus, mas nada significativo. Combinamos que eles não entrariam no acampamento.

No dia 8, estava almoçando com a minha mulher e uma pessoa que trabalha comigo. Foi quando avisaram que o povo estava descendo. Saí correndo do restaurante.

Como o senhor atuou nos bastidores para conter os atos?

Fomos ao Ministério da Defesa e, depois, para o da Justiça. Havia um ambiente já de confusão. Ficamos bem perto das pessoas.

Foi um movimento de vândalos, financiados por empresários irresponsáveis.

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro — Foto: Cristiano mariz
O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro — Foto: Cristiano mariz

Como foi a conversa com o presidente Lula naquele dia?

O presidente estava querendo saber o que houve. Ninguém sabia de onde estava vindo, quem estava por trás. Todo mundo estava surpreso. O presidente estava zangadíssimo.

O senhor sugeriu ao presidente um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para que os militares controlassem a desordem nas ruas?

Alguém disse: “Olha, só com GLO para os soldados irem”. Eu não sugeri ao presidente, mas poderia ter sugerido. Era uma forma de o Exército ir para a rua e conter. Tínhamos 1.500 homens à disposição. Mas o presidente disse: “GLO não”. Havia um grupo que achava que, se houvesse GLO, os militares aproveitariam para materializar o golpe.

Mas havia esse risco?

Podia ser até que algumas pessoas da instituição quisessem, mas as Forças Armadas não queriam um golpe. É a história de um jogador indisciplinado em uma equipe de futebol: ele sai, a equipe continua.

No final, me parecia que havia vontades, mas ninguém materializava porque não havia uma liderança.

Há militares investigados por uma suposta participação em uma trama golpista…

Torço muito para que as investigações encontrem os culpados. Para as Forças Armadas, é fundamental, para que essa névoa de suspeição que paira sobre os militares se dissipe. Precisamos dos nomes, para puni-los. Isso é de interesse das Forças Armadas: dentro dos seus princípios e suas regras, punir os culpados. Agora, precisamos que a Justiça dê as provas e as ferramentas.

O senhor defendia uma retirada pacífica dos manifestantes da porta do Quartel-General do Exército. Mas alguns integrantes do governo, como o ministro Flávio Dino (Justiça), defendiam a saída assim que o presidente Lula tomasse posse. Olhando em retrospecto, sua visão estava equivocada?

Será que se nós tivéssemos tomado uma providência mais dura, não teríamos promovido uma cizânia dentro das Forças Armadas? Fomos dentro do que a lei mandava. Por que a Justiça não determinou que se tirasse? Por que tinha que ser um ato imposto pela Defesa? A Justiça não tirou, só depois do dia 8. O ministro Alexandre de Moraes mandou tirar, poderia ter mandado dias 7, 6, 5… Não poderia partir de nós. Poderíamos ter precipitado uma cizânia. Faria tudo de novo do jeito que eu fiz. Por ter sido feito daquela forma é que hoje nós vivemos nesse ambiente de tranquilidade nas Forças.

Houve uma reunião no QG do Exército na noite do 8 de Janeiro com ministros e integrantes do Alto-Comando. Como foi esse encontro?

Fomos lá negociar o que se faria, porque houve um momento de muita tensão, se a Polícia Federal entraria (no Quartel-General, para desmobilizar o acampamento). O comandante do Exército disse: “Aqui não entra”. Depois, fomos para lá e se negociou que a Polícia Federal poderia vir pegar as pessoas às 6h (do dia 9).

Como estava o clima?

O dia 8 de janeiro foi tenso, e minha vida continuou tensa pelos 90 dias que se seguiram. Amanhecemos no dia 9 com o Ministério da Defesa órfão.

O que levou o senhor a demitir o comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, que ficou só 20 dias no cargo?

No dia 20 de janeiro, surgiram as notícias de que o tenente-coronel Mauro Cid estava voltando. As coisas começaram a ficar tensas outra vez, porque estava destinada a ele uma promoção para um comando em Goiás, uma base importante do Exército. No sábado, 21, o presidente me ligou às 6h30m, contrariado. Desliguei o telefone e disse para minha mulher: “Isso tem que ser resolvido hoje”. Liguei para o comandante do Exército e pedi que fosse ao Ministério da Defesa. Então, falei que precisava do lugar dele. Ele respondeu: “O senhor está lembrando que me nomeou há 20 dias?” Eu disse: “Estou, mas a gente precisa recomeçar a construir o clima de confiança, o que passa por colocar uma pessoa no seu lugar”.

Como foi o convite para o general Tomás Paiva assumir o comando do Exército?

Tem minutos que passam rápido, e outros que demoram muito tempo. Esses demoraram demais. Telefonei para o Tomás e perguntei quando ele viria a Brasília. Ele disse: “Não sei, pois amanhã vou esperar o general Arruda, meu amigo, que vai ser operado aqui em São Paulo”. Eu disse: “Mas estou precisando que o senhor venha, pois estou te convidando para ser comandante do Exército”. Ele disse: “O senhor precisa dessa resposta agora?” Respondi: “Se não for agora, o mais perto de agora possível”. Ele desligou o telefone e uns 20 minutos depois disse que aceitava e viria a Brasília.

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro — Foto: Cristiano Mariz
O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro — Foto: Cristiano Mariz

Como o presidente Lula contornou essa crise?

Liguei para o presidente da República e avisei do convite. Aquele sábado, para mim, foi tão difícil quanto o dia 8. No 8 de Janeiro, estava todo mundo envolvido, mas no sábado, 21, era só eu. Fomos para o Palácio do Planalto, o general Tomás vestido com roupa camuflada para combate, e de certa forma era. O general disse uma coisa que vou dizer pela primeira vez aqui: “Para que dê certo, o senhor precisa ter confiança nas Forças Armadas”. E ele (Lula) respondeu: “Vamos conversar, vamos em frente”.

Como está hoje a relação do presidente com os militares?

Muito boa, tenho até medo de dizer. O presidente tem uma relação direta, telefona para cada um dos comandantes. Minha tarefa foi essa, pacificar as relações.

Foi essa? A sua missão está cumprida?

Olha, tenho visto pela imprensa… Alguns dizem que eu estou saindo, outros que estou entrando. Eu e o presidente não falamos sobre isso.

Tem vontade de continuar?

Tenho 75 anos e um monte de netos que pedem a presença do avô. Descobri esse encanto na velhice.

Evidentemente, tenho uma gratidão enorme pelo presidente e me motiva muito o estímulo que ele tem de consertar o país.

Quando me sinto cansado, uso esse combustível.

Há setores no PT que dizem que o senhor foi complacente com os militares. Como avalia essas críticas?

São da democracia. Tem muitos que criticam, outros elogiam. Tudo tem seu tempo. Se nós estamos procurando aproximar, por que vamos mexer? Temos que reconstruir o clima de confiança, para que as pessoas não sintam que estão sendo punidas. Precisamos primeiro criar este clima e depois fazer o que algumas pessoas desejam.

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