O chefe e o espírito de corpo

General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão

Em qualquer instituição constituída por grupos de homens e mulheres unidos e voltados para a prática militar, pode-se encontrar um conjunto de símbolos que a fortalecem e dão sentido à sua própria existência.

O “espírito de corpo” é um desses símbolos, cujo "valor militar simbolizado" ao qual se refere – a união dos indivíduos em matéria, pensamento e ação – é ideal de força, eficiência e eficácia a ser buscado e construído de forma permanente.

Não restam dúvidas de que é um dos mais apontados, lembrados e reforçados, tanto pela Instituição quanto pelas próprias pessoas que dela fazem parte. Mas será que todos que assim o manejam entendem de fato como deve ser procurado e concebido? Compreendem, pois, a essência do seu significado e princípio (arché)?

Atento a tais questões, este ensaio buscará contribuir com a compreensão mais profunda deste signo, valendo-se de que é da própria natureza do símbolo ter, além da função signalativa do sinal, a função simbólica (analógica)1, explicadora portanto. Mas é importante frisar, desde já, que não existe aqui a intenção de esgotá-la.

O itinerário a ser percorrido terá os seguintes passos: o que nos diz o senso comum; de que modo a Instituição Exército Brasileiro (EB) o percebe como fenômeno; o auxílio da Ciência Política no rompimento da aparência, em outros termos, na busca da essência; o suporte da doutrina coligida por Gaston Courtois2; e, finalmente, uma análise comparativa para atingir o objetivo proposto.

Ora, o senso comum nos diz que o espírito de corpo sugere o trabalho em equipe, concretizado pela coesão entre os seus integrantes de modo que ajam de forma harmônica, sincronizada e entusiasmada para alcançar o objetivo do grupo. Na perspectiva militar, cumprir a missão.

Mas o que o senso comum nos apresenta é vinculado ao fenômeno, isto é, à aparência. Não nos informa nada sobre como ele se constituiu, de que forma deve ser mantido e de que maneira deve ser apreciado. Essas, sim, são questões importantes para as Forças Armadas Brasileiras, uma vez que se alicerçam na conscrição3 e no fluxo de carreira4.

Sendo assim, em 2002, o EB, na intenção de contribuir para o continuado aprimoramento das virtudes militares, por meio da Portaria no 156, de 23 de abril, sentiu a necessidade de aprovar o Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército Valores, Deveres e Ética Militares (VM 10). De sua leitura, pode-se inferir que o espírito de corpo constitui-se em um valor militar, ou seja, um referencial fixo, fundamento imutável e universal que dá sentido e forma às organizações militares do EB, influenciando, por sua vez, o comportamento e a conduta pessoal de cada um de seus integrantes.

O militar que dele passa a ter consciência5 manifesta orgulho "do Exército Brasileiro, da organização militar onde serve, da sua profissão, da sua arma ou especialidade, e de seus companheiros". É a exteriorização de um orgulho coletivo, uma vontade coletiva que “se reflete no grau de coesão da tropa e de camaradagem entre seus integrantes”.

Já o manual de fundamentos "O Exército Brasileiro (EB20-MF-10.101)", publicado em 2014, na esteira do VM 10, afirma que a coesão da tropa é alicerçada na camaradagem e no espírito de corpo, sendo capaz de gerar sinergia para motivar, animar e movimentar a Força. Em outros termos, declara que a coesão da tropa é um poder (kinesis) que surge do espírito de corpo, quando a este se soma a camaradagem.

Não obstante, apesar de todo o esforço feito para compreender esse atributo coletivo, o entendimento permaneceu na apreciação da aparência, ou seja, na observação da exteriorização das atitudes em canções militares, nos gritos de guerra e lemas evocativos, no uso de distintivos e condecorações regulamentares, na irretocável apresentação e, em especial, no culto de valores e tradições de sua organização. Como corolário, quanto mais entusiasmada a atitude coletiva, maior o espírito de corpo.

Mas fica então a pergunta: quando uma organização militar é criada (melhor dizendo, já que não teve tempo para atos de valor ou mesmo formar uma tradição), de que modo surge então o seu espírito de corpo? Para respondermos a tal questão, precisamos saber sobre o advento deste símbolo, ou seja, quando e por que foi evocado pela primeira vez. Todavia, parece não ser possível obter esse registro na História.

Entretanto, é possível fazer uma analogia e, por meio desse caminho, alcançar uma luz que clareie a nossa busca por seu maior entendimento. Posto isso, é concebível identificar que existiu algo similar no início da nossa civilização ocidental6. O cientista político Eric Voegelin, na sua obra Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo, indica que a comunidade cristã primitiva (Igreja) adaptou realisticamente sua organização à fraqueza do homem. Naquela comunidade7, unida no amor, existia uma hierarquia natural de graus de perfeição, sendo as personalidades8 renovadas no Espírito de Cristo9.

Voegelin aponta que Paulo, na sua Epístola aos Colossenses (Cl 1, 18), afirma que Cristo é a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo. E, na Primeira Epístola aos Coríntios (Cr 1, 12 e 13), ensina sobre o que constitui este corpo:

"Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; … A um, o Espírito dá a mensagem de sabedoria; a outro, a palavra de ciência segundo o mesmo Espírito; … Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo.”(grifo nosso)

Concebia-se, segundo Voegelin, o conceito do Corpo Místico de Cristo, no qual Cristo é a cabeça e os cristãos complementam-se como os membros do corpo, sendo que a cada um foi dada a graça pela medida do dom (charisma) de Cristo. Esse corpo é animado pelo segundo Adão (Cristo), que tornou-se o espírito que une e dá vida.

Tal compreensão tornou-se parte da história das ideias políticas da civilização ocidental, abrindo caminho para Roma (translatio imperii) e conformando impérios e nações. Sendo possível crer, portanto, que as instituições militares dessas organizações políticas a adaptaram na formação dos seus exércitos.

Gaston Courtois, que era padre, em sua obra editada pela Biblioteca do Exército (BIBLIEx)10 A Arte de Ser Chefe, referência bibliográfica para a formação de líderes nas escolas militares do EB, define o que vem a ser chefe (p.15): "etimologicamente, é aquele que está à testa ou, melhor ainda, aquele que é a cabeça. É a cabeça que vê, pensa e age no interesse do corpo inteiro.” E complementa que a sua tarefa (p.16) "é, talvez, antes de tudo, unir os homens”.

De todo o exposto, podemos montar o seguinte quadro comparativo:

O quadro nos revela que há uma correspondência biunívoca entre o “Corpo Místico de Cristo” e o “Corpo de uma Organização Militar” fundada sob o ethos da civilização ocidental. Uma correspondência que deve ter sido pensada para valorar qualquer grupo militar constituído por homens e mulheres que terão o sacrifício da própria vida como uma possibilidade inserida nos seus horizontes de consciência. Foquemos, agora, na conformação do laço psíquico.

Para tanto, faz-se necessário recorrer ao hebraico, língua que contém a palavra ruah no sentido que nos interessa neste ensaio. Ruah, grego pneuma, geralmente traduzido por espírito nas traduções bíblicas mais conhecidas, significa vento, sopro, alento vital ou respiração. É o ar em movimento. No homem, ela é um dom de Deus ou mesmo o poder pelo qual Deus com seu sopro santo age, impelindo-o ou capacitando-o.

É uma linguagem figurada para descrever Deus operando, trabalhando e atuando. Também pode exprimir algo intrínseco ao homem como espírito, mente, razão ou consciência. Com sua derivação do contexto teológico, tem-se a expressão latina spiritus, significando vida enquanto princípio pensante. No contexto filosófico, por sua vez, usa-se o vocábulo latino anima para expressar vida enquanto princípio vital.

Transportando os significados anteriormente apresentados para o ambiente da vida militar, o chefe com o seu sopro (discurso) age na mente dos seus subordinados, unindo-os e, dessa forma, constituindo o laço psíquico, ou seja, o espírito de corpo que os animará a agir como se fossem um só ser. Vale relembrar, inclusive, que a própria voz do chefe resulta do sopro que provém de seu alento vital, o ar que vindo dos pulmões faz vibrar suas "cordas vocais" para transmitir, em fonemas, suas ideias e pensamentos, tanto para impelir tal ser a agir como para capacitá-lo, por meio da instrução e da educação, para o cumprimento da missão.

Assim chegamos a conclusão de que, sim, é o chefe que cria, molda ou mantém o espírito de corpo de uma organização militar, seja por sua "voz de comando (ruah)", seja pela sua ação como "modelo"11 daquilo que transmite. É ele, de certa forma, o princípio pensante. Logo, justifica-se ser eterna a preocupação do Exército com a sua formação e o seu aprimoramento12. Não é à toa, portanto, que a doutrina imemorial militar nos diz que:

"a tropa é o espelho do chefe 

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1 Tratado de Simbólica, p.53.
2 Autor da obra A Arte de Ser Chefe, referência bibliográfica nos estudos de Liderança Militar em diversas escolas do EB.
3 Alistamento para o serviço militar.
4 Renovação permanente dos quadros, possibilitada pela rotatividade nos cargos.
5 Esta é a intenção do VM 10.
6 É para onde o livro A Arte de Ser Chefe indica que devemos dirigir o nosso olhar (prestar atenção), p. 141.
7 Efésios 4,4 Há um só corpo e um só Espírito.
8 Segundo o próprio étimo da palavra, um órgão pelo qual o som (espírito) passa: per-so-na-lidade.
9 Coríntios 4,45 o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida.
10 Fundada em 17 de dezembro de 1881, cujo Conselho Editorial seleciona as obras que devem contribuir para o aprimoramento pessoal, tanto moral quanto profissional, dos quadros do EB. 11 Uma ideia cristã. 12 A Arte de Ser Chefe, p. 7.

 

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BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército (EME). Manual o Exército Brasileiro (EB20-MF-10.101). 1. ed. Brasília, 2014. 80 p.

______. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Secretaria-Geral do Exército. Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército Valores, Deveres e Ética Militares (VM 10). 1. ed. Brasília, 2002.

COURTOIS, Gaston. A arte de ser chefe. Tradução de Job Lorena de Sant’Anna. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2012. 152 p. (Coleção General Benício).

FAITANIN, Paulo. Alma: etimologia, sentido, significado e referência! www.aquinate.net/ciência e fé, 2006. Disponível em: <www.aquinate.com.br/wp-content/uploads/2016/11/02-alma-revisado.pdf>. Acesso em: 28 de fev. de 2022.

SANTOS, Mário Ferreira dos. Tratado de Simbólica. Introdução, edição de texto e notas de Luís Mauro Sá Martino. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2007. 352 p. (Coleção Filosofia Atual).

Tradução da Bíblia, Pesquisa, História e Fé, 2022. Disponível em: <https://biblia.pro.br/o-que-e-ruah-no-contexto-original-hebraico/>. Acesso em: 26 de fev. de 2022.

VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas – Volume I: helenismo, Roma e cristianismo primitivo. Tradução Mendo Castro Henriques. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2012. 368 p.

 
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Sobre o autor

General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão  – Formado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1983. Cursou a Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME) em 2000/01. Foi instrutor da AMAN e da ECEME. Comandou a 1a Bateria de Cadetes (AMAN) e o 16o Grupo de Artilharia de Campanha Autopropulsado (16o GAC AP), em São Leopoldo-RS.

Possui mestrado em Ciências Militares pela ECEME (2001) e em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (2008). Foi Oficial de Ligação na Missão de Verificação das Nações Unidas para a Guatemala (MINUGUA). Exerceu a função de Adido do Exército junto às Embaixadas da China, Coreia do Sul e Vietnã. Comandou a Artilharia Divisionária da 3a Divisão do Exército (AD/3), em Cruz Alta-RS. Como última função no serviço ativo, foi Diretor do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército.

 

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