Operación Libertad – Os riscos para o Brasil da escalada dos conflitos na Venezuela

Envolta em incertezas, a Venezuela entrou nesta quarta-feira (1) no segundo dia de manifestações convocadas pelo líder da oposição e presidente da Assembleia Legislativa, Juan Guaidó, para tentar derrubar Nicolás Maduro do poder.

Na terça-feira, Guaidó, autoproclamado presidente interino do país, declarou que tinha o apoio das Forças Armadas e instou a população a tomar as ruas para tentar derrubar o governo.

A fala gerou dúvidas sobre se uma divisão entre militares de alta patente poderia acabar evoluindo para uma guerra civil. Os episódios que se seguiram ao chamado de Guaidó – com violência nas ruas e enfrentamentos – também levaram os EUA a mencionar, novamente, a possibilidade de uma invasão.

No final do dia, sentado ao lado de generais, Nicolás Maduro fez um pronunciamento à nação dizendo que mantém o apoio do Exército e que a "tentativa de golpe da oposição fracassou".

Já Guaidó convocou a população a voltar às ruas e disse que a "operação de libertação" da Venezuela estava na "fase final". Por enquanto, o governo brasileiro tem reagido com cautela, descartando agir militarmente no país vizinho.

Escalada perigosa

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que uma escalada na crise venezuelana e uma eventual guerra civil trariam ao Brasil uma série de consequências econômicas, na política internacional, no fluxo migratório e até no controle do crime organizado nas fronteiras.

A professora Jennifer McCoy, diretora-fundadora do Instituto de Estudos Globais da Georgia State University, nos Estados Unidos, e autora do livro Mediação Internacional na Venezuela, prevê que o primeiro impacto seria um grande aumento no número de imigrantes venezuelanos no Brasil, Colômbia e outros países da América do Sul.

No campo econômico, um conflito armado na Venezuela tem potencial para prejudicar investimentos na América do Sul como um todo, inclusive no Brasil, diante da percepção de instabilidade na região, aponta o professor de Relações Internacionais Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Em relações internacionais, uma eventual ação militar dos Estados Unidos na Venezuela poderia gerar divisões no continente, com alguns países se aliando ao governo americano e outros apoiando Maduro e fortalecendo laços com as potências que dão suporte a ele – Rússia e China.

Além disso, a violência interna na Venezuela e o possível fortalecimento de organizações criminosas poderiam transbordar para os países vizinhos, dizem os especialistas.

Isso porque a situação de instabilidade prejudica a cooperação do Brasil com autoridades militares venezuelanas na fronteira, o que pode abrir caminho para um aumento no tráfico de drogas, contrabando e desmatamento na Amazônia.

Entenda melhor, abaixo, cada um desses pontos:

Intervenção militar

Segundo analistas e militares, a escalada da crise na Venezuela pode provocar uma reação de potências com interesses conflitantes na região, como Estados Unidos, Rússia e China.

Enquanto o governo americano apoia Juan Guaidó, Rússia e China dão suporte econômico a Maduro.

Os Estados Unidos sempre deixaram claro que não descartam uma invasão da Venezuela e pressionam Brasil e demais países da América do Sul a aderirem. Na terça, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, reiterou essa posição.

"O presidente (dos EUA, Donald Trump,) tem sido claro e extremamente consistente. Uma ação militar é possível. Se isso for necessário, é o que os Estados Unidos farão", afirmou em entrevista à rede de televisão americana Fox.

Mas a ala militar do governo brasileiro já repetiu diversas vezes que descarta a participação do país em uma eventual invasão. "Não existe possibilidade (de ação militar)", disse o vice-presidente Hamilton Mourão, na terça.

Nesta quarta-feira, após se reunir com ministros militares, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) disse que não recebeu, por enquanto, pedido específico dos EUA para que o Brasil forneça apoio logístico ou permita a entrada de tropas americanas no território para uma invasão do país vizinho.

Mas a professora Jennifer McCoy afirma que, caso os EUA decidam pela invasão, a pressão que exercerá nos países da América do Sul para aderir pode acabar gerando fissuras.

"Há tensões que podem emergir em relação ao papel que os Estados Unidos decidirem assumir. Se os EUA adotarem alguma forma de intervenção militar, isso dividiria o hemisfério e causaria dilemas difíceis para os governos, inclusive o brasileiro", disse à BBC News Brasil.

Algumas divergências já são visíveis entre países da América do Sul. O presidente da Bolívia, Evo Morales, declarou apoio a Maduro. Brasil e Colômbia se mostram mais alinhados com a política de alta pressão dos EUA, embora a Colômbia seja vista como mais predisposta a dar respaldo militar a uma intervenção americana.

Outras nações, como Uruguai, vêm adotando uma postura intermediária.

Ingerência estrangeira

Militares brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil também chamam a atenção para o risco de uma ação militar americana abrir caminho para potências internacionais intervirem em outros países da região.

"O militar enxerga as coisas de maneira pragmática, sob a ótica dos interesses do Brasil. Com as voltas que o mundo dá, o Brasil poderia ser alvo de intervenção no futuro. Temos que tomar cuidado para não sermos peões dentro de uma estratégia de uma superpotência", afirma o general da reserva Eduardo Schneider, que foi adido militar no Paraguai e atuou com o general Hamilton Mourão em missões das Nações Unidas.

Na mesma linha, o professor Oliver Stuenkel, da FGV, aponta que uma intervenção estrangeira pode fazer com que o Brasil perca influência na região.

"Nos últimos anos, o Brasil perdeu liderança regional e agora a gente vê uma América do Sul que não tem influência sobre o que acontece na Venezuela. A influência está passando às mãos das grandes potências", afirma Stuenkel.

"O Brasil é um grande país de uma região que ele não controla."

Conforme as tensões aumentam na Venezuela, fica mais evidente que o país tem se tornado palco da disputa de poder entre Estados Unidos e Rússia, tendo a China como coadjuvante.

Na terça, o secretário de Estado americano chegou a dizer que Maduro havia se programado para fugir de avião para Cuba, mas que foi dissuadido pelo governo russo.

Tanto Maduro quanto o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguey Lavrov, negaram a afirmação e acusaram os Estados Unidos de promoverem uma "guerra de informações".

Para Stuenkel, essa situação de disputa de poder entre potências pode reduzir a margem do Brasil para a tomada de decisões racionais e pragmáticas sobre suas alianças com EUA, Rússia e China.

Isso porque, embora o Brasil tenha, atualmente, identidade ideológica maior com os EUA, a parceria com a China é crucial para a economia brasileira. Portanto, setores do governo, principalmente a ala militar, defendem que o país adote uma postura de neutralidade em conflitos que envolvam os governos americano e chinês.

"Essa disputa pode contaminar a tomada de decisão sobre parcerias internacionais. Inviabiliza o debate racional sobre como o Brasil deve se comportar nesse mundo rachado entre EUA, Rússia e China", diz Stuenkel.

Escalada da violência e do crime organizado

Embora até o momento as manifestações convocadas por Guaidó não tenham desembocado em um conflito militar de maior dimensão, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil não descartam o risco de uma guerra civil no país, o que traria consequências graves para a região.

Para Jennifer McCoy, o risco maior de violência interna vem de grupos paramilitares formados pelo governo venezuelano para propagar os "ideais da revolução bolivariana" e combater o crime nas cidades.

"O mais provável não é que um Exército dividido entre em guerra, mas sim que haja ações violentas por parte dos 'colectivos', que são as milícias particulares formadas por Maduro, e por parte da Força Especial, grupo paramilitar criado para limpar os bairros pobres do crime e que tem sido usado de forma repressiva contra opositores do regime", explica McCoy.

"Mesmo que Maduro deixe o governo pacificamente, há o risco de insurgência a médio e longo prazo por esses grupos."

A pesquisadora diz que a Colômbia seria o país mais vulnerável a uma guerra civil promovida por esses grupos contra opositores de Maduro, já que a fronteira daquele país com a Venezuela é mais povoada e de mais fácil acesso que a fronteira brasileira.

Oliver Stuenkel destaca que uma guerra civil ou de guerrilha no país vizinho prejudicaria ainda mais as já vulneráveis ações de cooperação entre Brasil e Venezuela na fronteira para o controle do tráfico de drogas, contrabando, desarticulação de organizações criminosas e combate ao desmatamento da Amazônia.

"Até mesmo parcerias em questões de saúde pública, como combate de epidemias, poderiam ser inviabilizadas em função desse colapso", diz o professor da FGV.

Impacto econômico

A escalada da crise e a possibilidade de violência entre opositores e apoiadores de Maduro também pode ter impacto direto em investimentos no Brasil.

Investidores estrangeiros, por exemplo, podem encarar um eventual conflito armado na Venezuela como fator de desestabilização de toda a região, reduzindo repasses a países vizinhos, enxerga Stuenkel.

"Tem investidor que não sabe bem a diferença entre os países da América do Sul e que pode segurar investimentos. A crise na Venezuela, com a possibilidade conflitos armados, projeta ao mercado uma imagem de continente à deriva", diz.

Migração

Os venezuelanos já são, atualmente, a segunda população com mais refugiados no mundo, atrás apenas da Síria, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA).

A grande maioria tem se deslocado para a Colômbia (cerca de 1,2 milhão) e outros países de língua espanhola da América do Sul, como Peru (700 mil) e Chile (265,8 mil). Mas um contingente cada vez maior de pessoas chega a cada dia ao Brasil via Pacaraima, em Roraima.

Até o final de 2019, a previsão da OEA é de que haja entre 5,3 milhões e 5,7 milhões de imigrantes venezuelanos pelo mundo.

"O Brasil já está sendo afetado pela crise humanitária, que tende a continuar. Não há sinal de melhora e uma escalada da violência na Venezuela pode provocar um fluxo migratório ainda maior", diz Jennifer McCoy.

O grande problema, segundo os especialistas, não é a incapacidade do Brasil de abrigar os venezuelanos – já que está recebendo uma parcela muito menor que os demais países da América do Sul – mas sim a necessidade de garantir recursos suficientes para a acolhida e realocação dos migrantes que chegam por Pacaraima.

Na terça, o presidente Bolsonaro assinou uma medida provisória liberando R$ 223,8 milhões para assistência emergencial e acolhimento dos cidadãos venezuelanos que chegam ao Brasil.

E quais as possíveis consequências das investidas de Guaidó?

Evidentemente, ainda é difícil dizer ao certo o que pode acontecer na Venezuela após a declaração de Guaidó de que possui apoio militar para retirar Maduro do poder.

Mas Jennifer McCoy traça três cenários. O melhor deles, segundo ela, seria se Guaidó e Maduro reconhecessem a impossibilidade de "eliminar" um ao outro de imediato, e concordassem em negociar a formação de um governo de transição para preparar novas eleições.

Um segundo cenário seria Maduro conseguir convencer as forças de inteligência e de segurança a retornar a uma estratégia de forte repressão à oposição, inclusive prendendo Guaidó.

"Ontem vimos bem menos repressão que no ano passado e, até agora nem Guaidó, nem Leopoldo López (outro líder da oposição) foram presos. Parece haver muito mais resistência entre as forças de inteligência e militares em perseguir a oposição e o centro", ressalva.

Uma terceira possibilidade, que McCoy considera pouco provável, é que o apelo de Guaidó por manifestações contra Maduro garanta uma mobilização popular capaz de gerar ampla retirada de apoio ao governo, pressionando o presidente a deixar o poder.

"Dificilmente haverá esse volume todo de manifestantes, até porque há uma grande confusão sobre o que aconteceu ontem e a oposição tem dificuldade para se comunicar e planejar, já que o governo controla as comunicações na internet e nas redes sociais."

Enquanto isso, o clima de incerteza permanece. E os governos da America do Sul, inclusive do Brasil, aguardam o desenrolar dos acontecimentos desta semana para decidir como agir.

 

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