TOA – GUERRILHA NA AMAZÔNIA: A Experiência dos Anos 70 Parte 2

Tropas do Exército Brasileiro Operando em uma das  GUERRILHA NA AMAZÔNIA:

UMA EXPERIÊNCIA NO PASSADO O PRESENTE E O FUTURO
(matéria em três partes)

Publicado em DefesaNet originalmente, em Novembro de 2005

Cel Alvaro de Souza Pinheiro (*),
do Exército Brasileiro

DefesaNet

Guerrilha na Amazônia: uma experiência no passado, o presente e o futuro

Parte 1 O Passado Link

Parte 2 A Guerrilha do Araguaia Link

Parte 3 A Experiência do rio Traíra Link

DefesaNet

Nota: O Série de artigos “Guerrilha na Amazônia: uma experiência no passado, o presente e o futuro”, foi produzida como uma posição do Exército Brasileiro referente à Amazônia, nos anos 90.

O seu autor, na época Coronel de infantaria, atuava como oficial de ligação do Exécito Brasileiro junto ao Centro de Armas Combinadas e à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército dos EUA, apresenta uma visão abrangente e relata com detalhes dois pontos importantes a Guerrilha do Araguaia (Parte 2) e a Ação do Rio Traíra (Parte 3).

Hoje, no posto de General de Brigada (reserva) escreve sobre assuntos militares com vários artigos publicados em DefesaNet

Artigo publicado originalmente na:

Military Review 1º Trim 95 Ed Português

Military Review t – Oct 95 Edição Español

Military Review March-April 96 English Edition

2 – A Experiência dos Anos 70 A Guerrilha do Araguaia

 

 Ensolarada manhã amazônica em novembro de 1970. Uma aeronave Albatrós SA16, da Força Aérea Brasileira, entra na final para o lançamento de páraquedistas sobre o rio Tocantins, em frente à localidade de Marabá, Estado do Pará. A 7 000 pés(2.300m) de altura, doze homens do então Destacamento de Forças Especiais da Brigada Aeroterrestre se lançam ao espaço num arrojado salto livre operacional, considerando-se as reduzidas dimensões da área de salto, um pequeno banco de areia no meio do rio. Após um retardo de 30 segundos, abrem seus pára-quedas e o líder da equipe libera de seu equipamento uma bandeira do Brasil. A equipe aterra, rapidamente se reorganiza, e em passo acelerado conduz a bandeira até uma embarcação da Marinha, onde um tenente fuzileiro naval a recebe dos páraquedistas. O navio-patrulha fluvial se desloca da ilha para o porto da cidade. Lá, o fuzileiro, sempre de forma solene, desembarca e passa a bandeira a um tenente de um dos Batalhões de Infantaria de Selva do Comando Militar da Amazônia (CMA). Devidamente escoltado por uma guarda de honra, o infante de selva se dirige à principal praça da cidade onde passa a bandeira a um estudante de uma escola pública que, ao som do Hino Nacional, procede ao hasteamento do Pavilhão Nacional.

Esta solenidade de grande significado cívico, assistida por milhares de habitantes daquela progressista cidade paraense, materializou o término daquela que foi a primeira grande operação militar realizada pelas forças armadas brasileiras na Amazônia, a Operação Carajás 70.

Empregando efetivos das três forças singulares, e contando com a participação de várias unidades não sediadas na Amazônia, a Operação Carajás 70 vivenciou um quadro de contraguerrilha em ambiente de selva, e se constituiu num excelente adestramento conjunto. Todavia, mais do que atingir um objetivo de adestramento, aquela manobra teve como principal finalidade uma ação de presença e de dissuasão, tendo em vista que, àquela época, os indícios da presença de um foco de guerrilha rural na região conhecida como “Bico do Papagaio” (fronteira entre os Estados do Maranhão, do Pará e de Goiás) tornavam-se cada vez mais intensos.

Realmente, cerca de um ano e meio depois, em abril de 1972, os órgãos de informações confirmavam a existência desse foco na região das localidades de Marabá/PA e Xambioá/GO (atualmente estado de Tocantins). O então ilegal Partido Comunista do Brasil (PC do B), de orientação maoísta, ali instalara uma área de treinamento visando o posterior desenvolvimento de uma zona liberada.

A Força de Guerrilha do Araguaia (FOGUERA), como se autointitulou o movimento revolucionário, foi patrocinada por grande soma de recursos proporcionados pelo Movimento Comunista Internacional, a maioria dos quais provenientes da Albânia. O comprometimento do Partido Comunista da Albânia com a FOGUERA era de tal ordem que todos os dias, às 21:00 h, hora local de Xambioá, um programa com uma hora de duração, em língua portuguesa, ia ao ar pelas ondas curtas da Rádio de Tirana. Tratava-se de uma programação especificamente dirigida ao movimento do Araguaia, e os fatos mais recentes ocorridos na área eram transmitidos sempre dando uma conotação heroica à atuação da guerrilha. Havia uma rede rádio de longo alcance integrando a força de guerrilha, uma estação intermediária e Tirana. Desmantelar esta conexão rádio foi um dos primeiros desafios superados com sucesso pelos órgãos de informações e segurança.

A área selecionada pelo PC do B mostrava-se extremamente adequada para a ação subversiva. Tratava-se de uma região onde as condições de vida da população eram bastante precárias. A ação dos governos estadual e municipal pouco se fazia presente. A rede hospitalar e o estado sanitário eram altamente deficientes. A malária e a leishmaniose eram endêmicas e grande parte da população era anêmica e infestada de verminose. Não havia água tratada e muito menos rede de esgotos nas localidades. A base econômica da região era o extrativismo vegetal, sendo a coleta da castanha, no inverno, e o corte da madeira, no verão, as principais atividades. A agricultura era basicamente de subsistência com roças de milho, mandioca e arroz. A qualidade de vida da população era realmente muito baixa.

Por outro lado, a posição da área próxima a importantes eixos rodoviários era extrema mente favorável porque a região recebia um considerável número de novos colonos e isto permitia o ingresso de reforços sigilosamente. No campo militar, a escolha do local foi muito inteligente, porque a região englobava território de dois Comandos Militares de Área, o da Amazônia e o do Planalto. E tal fato ao início das operações provocou problemas de coordenação e controle, constituindo-se em vantagem para a força de guerrilha.

Em maio de 1972, quando efetivamente se iniciaram as operações militares, a FOGUERA contava com um efetivo aproximado de 80 guerrilheiros, dos quais cerca de 15 eram mulheres. O movimento era organizado em um Birô Político, uma Comissão Militar e três Destacamentos, cada um com três Grupos de 8 a 10 guerrilheiros.

O Birô Político era o órgão de cúpula do PC do B, àquela época dissidente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que seguia a orientação soviética, enquanto o PC do B seguia a linha chinesa. Adotando os princípios preconizados por Mao Tse Tung, o PC do B idealizava a eclosão de um movimento de guerrilha em área rural que, após o recebimento do devido apoio da população rural, seria estendido aos centros urbanos. Os componentes do Birô Político raramente estavam na área, mas orientavam e acompanhavam cerradamente tudo o que se passava. Todas as decisões da Comissão Militar ficavam subordinadas à aprovação do Birô Político.

A Comissão Militar se constituía no comando da FOGUERA. Suas atribuições eram planejar, coordenar e conduzir as ações da força de guerrilha. Esta liderança, bem como os demais elementos em função de comando nos Destacamentos e Grupos, era na sua quase totalidade constituída por quadros com cursos de guerrilha no exterior, notadamente em Pequim, Tirana e Havana.

Subordinados à Comissão Militar estavam os três Destacamentos, verdadeiros elementos de manobra da FOGUERA: o de Faveiro, mais ao Norte, com área de atuação próxima à rodovia Transamazônica; o da Gameleira, ao centro; e o de Caiano, mais ao Sul. Estes Destacamentos operavam de forma compartimentada, não tomando conheci mento das ações planejadas e conduzidas pelos demais, por questões de segurança. O sub-comandante do Destacamento exercia as funções de Comissário Político, empenhando-se no trabalho de elevação do nível político e da conscientização ideológica. O sistema de comando e controle da Comissão Militar sobre os Destacamentos era baseado na “cobertura de pontos”, com local, data e hora predeterminados, e estabelecidos de modo absolutamente compartimentado, de modo a assegurar a manutenção do sigilo. Este sistema fazia do guerrilheiro preso vivo a mais eficiente fonte de informações para a ação repressiva.

Subordinados aos Destacamentos estavam os Grupos de Fogo, num total de nove e que se constituíam nas frações elementares básicas da força de guerrilha. Sua autonomia era extremamente restrita e operavam sob rígido controle dos Comandantes de Destacamento.

Na sua grande maioria, os elementos pertencentes à FOGUERA foram recrutados pelo PC do B junto aos meios universitários dos grandes centros urbanos de Fortaleza/CE, Salvador/BA, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/ SP. Uma boa parte já estava vivendo na clandestinidade e comprometida com ações de terrorismo urbano.

O treinamento da guerrilha era efetuado procurando-se atingir basicamente dois objetivos, um de caráter prático e ou outro, teórico. A parte prática era dirigida à preparação do combatente individual e das frações elementares para o combate em ambiente de selva. Destacavam-se as instruções de orientação, emboscadas, e explosivos e destruições com material improvisado. A parte teórica tinha como objetivo específico o fortalecimento da conscientização ideológica dos integrantes da FOGUERA. E há que se reconhecer que, de uma maneira geral, o moral e a crença na causa eram elevados. Além do treinamento militar, os grupos eram também empenhados no “trabalho produtivo”, sobretudo na roça, tendo como finalidade maior o seu autoresuprimento.

Junto à população rural local, os guerrilheiros desenvolviam uma ação psicológica denominada “trabalho de massa”, com o objetivo de obter o seu apoio. O resultado desse trabalho frutificou em algumas áreas com a organização de uma força de sustentação. Mas em nenhum momento, a FOGUERA conseguiu recrutar elementos da população local que estivessem dispostos a combater, integrando efetiva mente a força de guerrilha.

Na verdade, a FOGUERA era uma força de guerrilha em estágio inicial, ainda incipiente. Seu armamento se resumia a armas curtas, armas de caça e alguns fuzis obtidos de ações isoladas contra postos da Polícia Militar do Pará. Um dos mais graves equívocos cometidos pelas forças federais foi iniciar as operações desencadeando ações que são normalmente efetuadas contra forças de guerrilha já nos seus estágios finais de organização e construção, quando já prontas para seu emprego em combate

A ação de repressão da força legal pode ser dividida em três fases, quais sejam: a 1ª fase, de abril a outubro de 1972; a 2ª fase, de abril a agosto de 1973; e a 3ª fase, de setembro de 1973 a março de 1975

A primeira fase foi caracterizada pelo emprego em massa de tropa. Em agosto de 1972, o efetivo chegou a ser de 1 500 homens. Fundamentalmente, foram instaladas duas bases de combate de valor batalhão, uma em Marabá e a outra em Xambioá. E no interior da área de operações foram instaladas seis bases de combate de valor companhia.

Nesta fase verificou-se a ocorrência de uma série de equívocos dentre os quais destacam-se:

Concepção equivocada nos níveis operacional e tático. O planejamento e a condução das operações inicialmente desencadeadas no “Bico do Papagaio” partiram do pressuposto que as ações de contra-guerrilha a serem executadas seriam aquelas que normalmente são desencadeadas contra forças já no estágio de Exército de Libertação Nacional, to tipo “martelo-bigorna”, “pistão-cilindro”, etc. Uma das primeiras operações efetuadas na área foi uma ação de vasculhamento na única serra existente na região, a serra das Andorinhas, que se caracterizava por não ter cobertura vegetal. Após ser bombardeada com napalm pela Força Aérea, a serra foi objeto de uma vigorosa ação de cerco e busca efetuada por um grande efetivo. E o resultado foi nulo porque os guerrilheiros nunca lá estiveram. Por outro lado, no terreno de selva, as patrulhas se deslocavam com um efetivo de pelotão, 35 a 40 homens, pelas trilhas, enquanto os grupos da guerrilha se deslocavam através selva, com um efetivo de 5 a no máximo 10 elementos. Dessa forma as ações iniciais se mostraram extremamente ineficazes.

Falta de unidade de comando. Provocada, sobretudo, pelo fato de que a base de combate de Marabá estava sob o controle do Comando Militar da Amazônia, enquanto a de Xambioá estava sob o do Comando Militar do Planalto (CMP). Uma simples solicitação de evacuação aeromédica provocava um complexo problema de coordenação.

Informações deficientes sobre o terreno e o inimigo. Não havia cartas nem fotos aéreas da região de operações em escala compatível. O desconhecimento do terreno era enorme. As patrulhas se deslocavam somente pelas trilhas, enquanto os guerrilheiros, profundos conhecedores do terreno, sempre através selva. Não se conhecia o dispositivo e a composição da FOGUERA. As informações sobre o valor eram extremamente difusas. Com relação às atividades recentes e atuais, e peculiaridades e deficiências, praticamente nada.

Grande diversidade de unidades empregadas e deficiências no adestramento. Unidades de diferentes pontos do território nacional foram empregadas nesta fase. Algumas delas com graves deficiências no adestramento em operações de contra guerrilha em ambiente de selva. Muitas delas com efetivos constituídos por soldados recrutas que, além da imaturidade psicológica, não tinham ainda completado nem a metade do ano de instrução. Inúmeras baixas ocorreram pela execução de disparos acidentais e por disparos equivocadamente realizados quando do encontro inadvertido entre patrulhas na selva.

Falta de continuidade nas operações. Diferentemente da força de guerrilha que já estava na área há algum tempo e lá permanecia, a tropa era empregada por períodos predeterminados, não mais de 20 dias, findos os quais retornava à sua sede, sem ser substituída. Esta descontinuidade trazia enormes prejuízos para as operações e graves reflexos negativos sobre a população.

Apesar de todas estas deficiências, há que se ressaltar dois aspectos positivos na 1ª fase. O primeiro é que foi possível fazer da ordem de 15 baixas na força de guerrilha. E o segundo é que houve uma conscientização geral em todos os escalões de comando sobre a gravidade da situação no “Bico do Papagaio”.

Em outubro de 1972, foi decidido em Brasília, pelo mais alto escalão da Força Terrestre, interromper as operações.

A 2ª fase foi planejada levando-se em consideração todos os ensinamentos colhidos na 1ª fase. E assim foi determinado que seria necessário o desencadeamento de uma operação de inteligência visando o levantamento detalhado da FOGUERA, do terreno, e da população local. Esta operação de inteligência, que foi denominada “Operação Sucuri”, foi planejada nos seus mínimos detalhes e cuidadosamente desencadeada. E os seus resultados foram excepcionais, tendo sido possível atingir plenamente todos os objetivos.

E fruto das informações obtidas na “Operação Sucuri” ficou muito claro para o escalão superior que o problema não poderia ter apenas uma solução militar. Haveria necessidade de se integrar a ação de diversos órgãos governamentais civis de nível federal e estadual, para que se efetuasse a eliminação completa do foco subversivo.

A 3ª fase, que se denominou “Operação Marajoara“, foi desencadeada imediatamente após a conclusão dos levantamentos efetuados na “Operação Sucuri”. A unidade de comando ficou perfeitamente definida, cabendo ao CMA o exercício pleno do comando e controle, inclusive das diversas agências governamentais federais e estaduais civis envolvidas.

Foram selecionados efetivos profissionais das mais bem adestradas unidades de infantaria de selva e dos batalhões de infantaria pára-quedista. Um rigoroso programa de adestramento foi conduzido tanto nas sedes quanto na área, enfatizando-se, sobretudo, o exercício da liderança nos diversos escalões.

Três bases de combate foram instaladas, uma em Marabá, onde se encontrava o principal posto de comando da operação; uma em Xambioá, e outra em Bacaba, às margens da rodovia Transamazônica. Foi estabelecido um eficiente e seguro sistema de comunicações que permitiu o funciona mento do sistema de comando e controle em muito boas condições. Da mesma forma, foi estabelecido um eficiente sistema de apoio logístico que levou em consideração as características altamente especiais da missão e do ambiente operacional.

Todo o efetivo envolvido, inclusive o pessoal da Força Aérea, passou a operar descaracterizado, em trajes civis. Como “estória de cobertura”, a tropa atuava como se fossem elementos pertencentes aos quadros da Política Federal. Esta decisão foi tomada, principalmente, a fim de negar o reconhecimento de que efetivos das forças armadas estavam sendo empregados num problema de defesa interna dessa natureza.

As patrulhas passaram a operar com o efetivo de 5 a 10 homens, compatível com o poder de combate do inimigo interno em presença. E também passaram a contar com o considerável reforço de habitantes locais selecionados que atuavam como “guias” e/ou rastreadores”. Há que se ressaltar que a atuação destes elementos foi decisiva para a obtenção do pleno êxito na operação.

Mais uma vez se ratificava o ensinamento de que “guerrilha se combate com guerrilha”.

Nesse contexto, cabe ressaltar o importante papel desempenhado pelos elementos da então Companhia de Forças Especiais, os especialistas em guerra irregular, que estiveram permanentemente envolvidos no combate à FOGUERA, desde o desencadeamento das operações de informações, ainda na “Operação Carajás 70”. Nesta fase, estes elementos atuaram como multiplicadores de força, adestrando as unidades engajadas e preparando as forças de autodefesa das comunidades locais, desencadeando operações de informações e operações psicológicas junto à população local, e sendo empregados em missões selecionadas de ação direta contra o inimigo interno.

Outro papel preponderante a ser ressaltado na consecução dos objetivos finais foi o desempenhado pelos elementos da Força Aérea, particularmente pelos esquadrões de helicópteros. Cumprindo missões de infiltração, exfiltração, resuprimento e evacuação aeromédica, estes elementos foram fator primordial para o êxito alcançado.

Assim, cerca de três anos após o início da ação repressiva, e tendo-se colhido uma grande quantidade de importantes ensinamentos para todos os escalões, eliminava-se aquele que foi o mais perigoso foco de guerrilha rural no Território Nacional.  

 

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