Quando a guerrilha vira partido

“Com justiça e verdade junto ao povo, já está com o fogo primeiro da aurora a pequena canção que nasceu em nossa voz guerrilheira de luta e futuro.” A primeira estrofe do hino das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) ressoa no auditório do Centro de Convenções Gonzalo Jiménez de Quesada, nome de um conquistador espanhol, no centro de Bogotá, capital do país.

Cerca de 1.000 guerrilheiros entoam o hino com a emoção de quem o canta pela primeira vez na capital e publicamente. Em 53 anos de história, desde que foram fundadas como o braço armado do Partido Comunista Colombiano, as Farc sempre haviam realizado suas conferências de forma clandestina, nas montanhas e selvas do país.

A próxima estrofe começa lembrando Simón Bolívar, o herói da independência, numa contraposição ao homenageado que dá nome ao centro de convenções, que veio explorar as riquezas em favor dos colonizadores. Foi apenas um de muitos simbolismos na semana em que as Farc, como guerrilha, entraram para a história e deram lugar, com a mesma sigla, ao partido Força Alternativa Revolucionária do Comum.

Quando a última estrofe termina – “do império brutal já se sente o final, com os braços da América toda, para os povos, a paz e a felicidade socialista o futuro será” –, os guerrilheiros gritam, um a um, os nomes dos comandantes mortos em batalha. A multidão responde: “Presente”.

Oito meses depois da assinatura do acordo de paz com o presidente Juan Manuel Santos, eles ainda não incorporaram o prefixo “ex” à sua autodefinição. Mas 7 mil guerrilheiros já depuseram suas armas, cujo aço será derretido e transformado em três monumentos à paz.

Diante das dificuldades de deslocamento em meio à guerra, eles nunca tinham estado todos juntos. Numa ironia, quando a guerrilha finalmente se uniu fisicamente, foi para pôr fim a si mesma.

Depois de entrar em vários processos de paz apenas para ganhar tempo e terreno, as Farc só se engajaram em negociações de verdade depois de levar uma surra das Forças Armadas colombianas, nos oito anos de Presidência do implacável Álvaro Uribe (2002-2010), que embarcara num acerto de contas pessoal: seu pai fora morto em 1983 em uma tentativa de sequestro atribuída às Farc (que negam envolvimento).

Com a ajuda militar americana, e o emprego das aeronaves brasileiras Super Tucanos, os militares colombianos partiram para uma guerra total, que credenciou o então ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, a se eleger e se reeleger sucessor de Uribe. Contrário às concessões feitas às Farc no acordo – a troca de prisão por trabalhos comunitários para os autores de atrocidades e a entrega de cinco cadeiras de deputados e cinco de senadores nas duas próximas eleições, independentemente da votação do novo partido –, Uribe se sentiu traído por Santos.

E fez uma campanha vitoriosa pelo “não” no plebiscito sobre o acordo, rejeitado pela estreita margem de 50,21% a 49,78%. Santos ignorou a consulta popular e o Congresso aprovou o acordo assim mesmo. Agora, o esforço da direção das Farc é o de reinterpretar a rendição como vitória.

“As marchas guerrilheiras costumavam enfrentar enormes desafios, que uma vez superados nos permitiam apreciar mais adiante, em direção a outros cumes”, discursou na abertura do congresso, no domingo 27, o comandante das Farc, Timoleón Jiménez, ou Timochenko (nome de guerra de Rodrigo Londoño).

“É assim que devemos considerar o passo que estamos dando. Superamos o obstáculo da guerra. Celebramos este congresso publicamente na capital do país, uma vitória impensável anos atrás”, disse o dirigente, antes de reconhecer:

“Temos pela frente grandes desafios e múltiplas dificuldades. Nada é fácil no mundo político”. Que o digam os partidos tradicionais. Uma pesquisa divulgada na quarta-feira 30 pelo Instituto Gallup revela que apenas 10% dos colombianos têm visão favorável dos partidos em geral, enquanto em relação às Farc o índice é de 12%.

De acordo com a Unidade para a Atenção e Reparação Integral às Vítimas, órgão do governo colombiano, 8 milhões de pessoas foram afetadas pelo conflito do Exército colombiano com as Farc. Desses, 265 mil foram mortos e mais de 6 milhões tiveram de deixar suas casas. O restante são sequestrados, desaparecidos, feridos e familiares dos mortos.

O ano mais violento foi 2002 (817 mil vítimas), quando começava a guerra total conduzida por Uribe. Três anos antes, numa última tentativa de acordo, o então presidente Andrés Pastrana aceitara entregar às Farc 42.000 quilômetros quadrados, um território equivalente à Suíça, que a guerrilha usou como base para aumentar seus ataques, sequestros, produção e tráfico de cocaína.

Os principais comandantes das Farc foram mortos de lá para cá, assim como milhares de guerrilheiros, soldados e, principalmente, civis. Há um consenso entre os analistas, como Luis Eduardo Celis, da Rede Nacional de Programas Regionais de Desenvolvimento e Paz (Redprodepaz), de que foram as derrotas militares no terreno que levaram a guerrilha a uma negociação de verdade.

A comandante Victoria Sandino (nome de guerra de Judith Simanca Herrera), um dos ícones das Farc, reconhece a gratuidade desse sofrimento, mas culpa o governo: “Muitas mortes tiveram de ocorrer para que essa oligarquia e esse sistema entendessem que o caminho era a saída política. Estamos contentes hoje com essa concretização. Esperamos que a Colômbia percorra os caminhos da reconciliação e da paz que tanto ansiamos”, diz ela a ÉPOCA.

À pergunta sobre quantas pessoas matou, Victoria responde de forma enigmática: “Não sei. Estamos na guerra”. E depois corrige o tempo verbal, como quem ainda está se acostumando com a nova realidade: “Estávamos na guerra”.

Victoria lutou 24 anos na selva, grande parte deles na frente liderada por Alfonso Cano, lendário dirigente das Farc, morto em novembro de 2011. Cano foi o sucessor do fundador do grupo guerrilheiro, Manuel Marulanda (o Tiro Certo), que morreu em março de 2008 de ataque cardíaco, em meio a bombardeios da Força Aérea colombiana. “Minha vida foi muito bela, mas também triste. Fazia muitos anos que eu não via minha família, meu pai, minha mãe, e agora os encontro doentes”, diz Victoria, com lágrimas nos olhos.

Seu pai está com 77 anos e sua mãe com 68. “Sofreram tanto”, exclama a ex-guerrilheira, que agora deve se candidatar ao Congresso. “Eles também foram vítimas dessa violência. É muito doloroso vê-los desvalidos. Mas também dá muita satisfação poder revê-los.”

Derrotada militarmente, a direção das Farc reinterpretou a rendição como uma vitória


Defensora da participação das mulheres na direção das Farc, coisa que continua sendo rara, Victoria se recusa a revelar a idade. Pelo cruzamento de datas que ela mesma dá, chega-se a uma estimativa: 52 anos.

A ex-guerrilheira nasceu em Tierralta, hoje uma cidade de 100 mil habitantes na costa caribenha. Em um dos muitos sinais de que sua visão do mundo ainda não foi atualizada, ela chama sua cidade de “pueblito” (vilarejo).

Quando terminou o curso de jornalismo na Universidade de Bogotá, decidiu dar outro rumo à vida: “Precisava fazer algo pelo meu país”. Foi para a guerrilha levada por um colega que tinha ligações com uma frente no estado de Caquetá, no sul do país, a 400 quilômetros de Bogotá.

Sua adaptação foi muito difícil, sobretudo devido aos constantes deslocamentos nas selvas e montanhas. “Eu não conseguia carregar a mochila”, lembra ela. Às vezes, pesava mais de 30 quilos, somando comida, livros, câmera, videocassetes e as maquiagens.

Victoria nunca perdeu a vaidade, e hoje em dia sua marca registrada são turbantes e roupas ao estilo africano. “Os homens me empurravam. Para as mulheres é mais difícil. Não é fácil por exemplo ficar menstruada na selva.”

Embora se estime que um terço do efetivo das Farc fossem mulheres, nenhuma delas chegou ao Secretariado do Estado-Maior, o órgão máximo de direção das Farc, com seis integrantes. Em abril de 2013, Victoria deixou a selva e partiu para Havana, em Cuba, para participar das negociações do acordo de paz. Ela foi a única mulher entre os negociadores da guerrilha.

Durante dois anos, trabalhou com a representante do governo colombiano, María Paulina Riveros, hoje vice-procuradora-geral da República, em três temas-chave do acordo: desenvolvimento agrário integral, participação política e drogas ilícitas. “O tema da impunidade foi muito debatido no acordo”, diz Victoria, ao falar sobre o ponto nevrálgico que mais compromete a popularidade não só do processo de paz, mas das próprias Farc, que agora precisarão conquistar os colombianos pelo voto.

“A Justiça Especial para a Paz oferece todas as garantias, não só para que nós, que estivemos na insurgência, respondamos se cometemos crimes contra a humanidade, mas para que o conjunto dos que participaram no conflito, os responsáveis pelos mais de 8 milhões de vítimas, respondam.” Como diz o senador Antonio Navarro Wolff, cujo movimento guerrilheiro também depôs armas e se converteu em 1990 no partido Aliança Democrática M-19, o acordo de paz com as Farc e com a outra guerrilha, o Exército de Libertação Nacional (ELN), prestes a ser fechado, permitirá que a Colômbia concentre as atenções no desenvolvimento de sua economia e no fortalecimento de suas instituições políticas.

Doze pessoas, entre empresários e membros do governo, foram presas desde dezembro, por escândalos de propina da Odebrecht, como resultado das revelações da Lava Jato. Apesar da queda nos preços dos minérios e alimentos, que são a base da economia do país, e do empobrecimento da Venezuela, um dos principais mercados consumidores dos produtos colombianos, o PIB do país cresceu 4,4% em 2014, 3,1% em 2015 e 2% no ano passado.

Se nos anos 1990 os colombianos migravam para a Venezuela em busca de uma vida melhor, agora são os venezuelanos que cruzam a fronteira para comprar bens essenciais, arranjar trabalho ou fugir da violência e da perseguição política desencadeada pelo chavismo.

Entre 2012 e 2016, 55 mil venezuelanos se estabeleceram como residentes na Colômbia. O governo colombiano estima hoje a existência de 150 mil venezuelanos em situação ilegal no país. Com o acordo de paz, a Colômbia está se tornando um país com problemas “normais”.

Com a deposição das armas, os ex-guerrilheiros das Farc que agora vão buscar uma vaga no Congresso colombiano começam novas batalhas que vão exigir diálogo e negociação política – as armas da democracia. “Lutamos 53 anos por uma paz estável e duradoura com justiça social.

Com o mesmo empenho, nos comprometemos também a alcançar essa paz na vida civil”, recita Victoria Sandino, já exercitando a retórica de campanha do novo partido. Apesar das estrofes nostálgicas bradadas no congresso de dissolução da guerrilha, são essas novas armas que poderão levar as Farc a alguma vitória no futuro – e não os sonhos utópicos de uma “revolução socialista”.

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