Como o Estado Islâmico recruta seus combatentes?


Ressaltado sempre a grande força de recrutamento do Estado Islâmico (EI). Além disso o EI foca seus programas de recrutamento não só em um discurso de doutrinação, mas também apoiado por agressivas ações na linguagem dos jovens “rejeitados”.

DefesaNet entrevistou o Analista de Inteligência Eugênio Moretzsohn,  estudioso de Contrainsurgência, Consultor de Segurança, Contrainteligência e Compliance.

Nesta entrevista tratamos com o estudioso Eugênio Moretzsohn sobre um enfoque bastante mencionado mas não detalhado com o cuidado e linguagem acessível que nos apresenta.
 
DefesaNet – Em sua opinião, por que o Estado Islâmico (EI) consegue recrutar tantos combatentes estrangeiros para suas fileiras?
      
Eugênio Moretzsohn: Os integrantes do EI são unidos por forte sentido de pertencimento, que é um sentimento mais complexo e mais profundo que o esprit de corps (espírito de corpo) conhecido por todos aqueles que prestaram o Serviço Militar ou foram escoteiros. O pertencimento pode ser definido, pelo dicionário, como “sentido em pertencer”, mas, no mundo real significa “forte união por estarmos do mesmo lado”, “orgulho visceral dos nossos objetivos e raízes comuns” e, até mesmo, “darei minha vida pela causa e por você”. Para aqueles que estão se sentindo “sem chão”, como muitos dos jovens fracassados no estudo e no trabalho nas periferias das grandes cidades, o chamado do EI é irresistível e, para quem não sabe para onde ir, qualquer direção é um norte.
 

Analista de Inteligência Eugênio Moretzsohn

 
DefesaNet – Para o EI, a vida humana parece não ter valor. O pertencimento pode ser utilizado de forma tão cruel?
    
Eugênio Moretzsohn: O pertencimento é, de per si, ecumênico e apartidário, podendo se manifestar no bem e no mal, da mesma forma que a motivação e o entusiasmo. O pertencimento está presente na vibração dos torcedores por seu time, na união dos escoteiros por sua agremiação e na crença dos maçons em sua instituição milenar. Tropas de elite militares possuem forte pertencimento, orgulhosamente materializado nas boinas coloridas, nos brevês de cursos de combate apostos nos uniformes, geralmente camuflados ou negros. Equipes vencedoras nos desportos e nos negócios também desenvolvem esse sentimento de forma sadia. Para o mal, ele pode estar presente na nefasta união entre malfeitores, orgulhosos de suas “façanhas”, como foram as antigas famiglias da Máfia e as gangues de Nova York, e como é hoje o PCC do nosso sistema prisional. 
 
DefesaNet – Qual a razão de o jovem procurar tanto pertencer a alguma coisa?
 
Eugênio Moretzsohn:  
A psicologia social explica que somos seres gregários, ou seja, a espécie humana só sobreviveu por ter se mantido em grupo (tribos, bandos, clãs) favorecendo a defesa, a procura por alimentos e a reprodução. Isso é bastante claro no clássico “A Guerra do Fogo”, dos anos 80. Os jovens necessitam ser aceitos em seus grupos sociais e todos nós passamos por isso. Sentimentos de rejeição são perigosos e, se indevidamente alimentados, podem levar ao isolamento, ao consumo de álcool, drogas ilícitas e até ao suicídio. Lembra-se como era comum o jovem começar a fumar (cigarro) para ser aceito na turma do colégio? Somos assim, precisamos nos relacionar e nos sentir acolhidos, por esse ou por aquele grupo. Grupos coesos e fortalecidos impõem quase uma iniciação para aceitar novos entrantes, os quais precisam comungar seus valores. Esse desafio de conseguir ser “bom o suficiente para ser aceito” é essencial para desenvolver o pertencimento, pois ninguém valoriza pertencer a algo acessível a qualquer um.Gostamos de fazer parte de uma elite, ainda que à nossa maneira, já que não conseguimos ser aceitos pela elite à qual gostaríamos de fato pertencer.
 
DefesaNet – Quais estratégias o EI utiliza para motivar os recrutas?

Eugênio Moretzsohn: Muitos dos jovens que nele se alistam foram rejeitados em suas sociedades, nas quais são considerados "perdedores", por serem pobres, iletrados, feios e minoritários; assim, se identificam com os desafios e o acolhimento que os líderes do E.I. lhes acenam por meio de competente marketing institucional, em mídias atuais atrativas e acessíveis a esse público.  O feedback positivo é sempre presente em cada etapa da ambientação e do treinamento dos recrutas. Por sua dedicação, esforço pessoal e atributos de liderança, como reconhecimento por seu suor, atingem patamares progressivos na hierarquia do EI, ao longo da qual almejam  dinheiro, conforto e alguma privacidade com jovens mulheres (às vezes escravizadas).
 
DefesaNet – Como pode ser interrompido o fluxo de voluntários estrangeiros para o EI?

Eugênio Moretzsohn: Ele pode ser, digamos, administrado, mas, não interrompido. Inicialmente, deve-se ter a humildade em reconhecer que o sistema de recrutamento deles é muito bom: utilizam as redes sociais com maestria, são agressivos em seu marketing e mergulham com desenvoltura na Deep Web, sabidamente um ambiente só para os iniciados. Falam, assim, a linguagem dos mais jovens e atiçam seu natural desejo por desafios. Portanto, temos de também estar preparados para atuar, com desenvoltura, nesses mesmos ambientes.

DefesaNet – E sendo mais específico?

Eugênio Moretzsohn: É necessário empreender complexa operação de contrapropaganda e desinformação, inicialmente para reduzir os efeitos da eficaz propaganda do EI, mitigando seus efeitos, para, depois, introduzir no imaginário dos jovens passíveis de recrutamento informações novas (daí a desinformação), produzidas deliberadamente com a intenção de causar danos em suas fileiras (deserções e defecções). Como o EI é muito fechado e, claro, de difícil infiltração, será certamente necessário “produzir”, com atores profissionais e diretores competentes, cenas e sequências inteiras de  confissões “de cinema”, montadas deliberadamente com a finalidade de denegrir a imagem de seus líderes (retratados nessas cenas criadas como corruptos, elitistas, avarentos), fomentar a discórdia em suas fileiras (mostrando sequências fictícias de abusos contra os recrutas novatos, roubo de dinheiro do pagamento dos subordinados, covardia dos líderes diante do perigo em combate), explorar as conhecidas mazelas dos grupos paramilitares (produzindo vícios, perversões, vaidades exacerbadas), e forjar crueldade com os que fraquejam e pensam em desistir por não se adaptarem ao EI, tudo isso com a finalidade de causar rejeição e repulsa nos que buscarem informar-se a respeito dele nas redes sociais, saturando-as com essa nova “verdade”. A produção precisa ser impecável para ser crédula e desconstruir os mitos da infalibilidade e do puritanismo de intenções do EI E, claro, ataques cibernéticos para pichar o sítio do EI na WEB, demonstrando que ali também são falíveis.   
 
DefesaNet – A crueldade afasta ou aglutina?
 
Eugênio Moretzsohn:
As imagens das decapitações e dos incêndios em vítimas indefesas são relativizadas diante da argumentação, inverídica, que elas seriam as causadoras de seu desemprego, de seu fracasso escolar, de suas frustações pessoais, familiares e profissionais; portanto, seria legítimo cortar-lhes a cabeça, afogá-las ou queimá-las vivas. Seria uma espécie de “esterilização”, de expurgar o mundo de todo o mal. Não adianta esforçar-se para “acordar” os jovens recrutáveis a partir das imagens atrozes dos atentados, pois, em suas almas perdidas, não associam uma coisa à outra (há sempre os perversos que sim, e que estão lá para isso mesmo). Faço comparação com algo que acontece aqui no Brasil: para certo público, não adianta tentar associar a figura do ex-presidente à atual crise moral e econômica (embora qualquer um que tenha mais cérebro que uma ameba saiba disso); incrivelmente, a verdade não entra na cabeça dos militantes.
 
DefesaNet – As autoridades devem tentar prender os jovens alistáveis?
 
Eugênio Moretzsohn:
Já ocorreram algumas detenções a partir de investigações. O problema é que essas democracias tradicionais garantem aos cidadãos, inclusive aos maus, mais direitos que eles merecem; por isso esses ataques na França, onde, para se revistar um suspeito é necessário haver quase um julgamento. Veja se o EI pretende atacar alvos na China? Mas, respondendo, sim, os jovens que forem interceptados no caminho da adesão ao EI precisam ser enquadrados no que as leis permitirem ou, no mínimo, mantidos em quarentena. Também é útil desenvolver um programa de acolhimento de defectores (civis que colaboram) e desertores (combatentes), pois, tal iniciativa poderá fomentar o abandono das fileiras pelos não convictos, fontes importantes de informação útil às operações, depois de devidamente analisadas tecnicamente.
 
DefesaNet – Os bombardeios cirúrgicos devem continuar em sua opinião?
 
Eugênio Moretzsohn:
Sim e não. Sim: sempre destruir alvos compensadores detectados. Pena que a Toyota não “chipou” suas pick-ups, usadas como veículos de ataque e reconhecimento móvel pelo E.I. (como sabem, são chamadas de Technicals). Se os satélites pudessem localizá-las pelos chips, seria uma festa para os drones artilhados.  Só que essa não pode ser a única opção de ataque, como está sendo hoje, pois, precisamos urgentemente desembarcar a Infantaria Mecanizada, lançar Paraquedistas, Rangers e Commandos para cercar e matar o inimigo no chão. No início, o E. I. irá se comportar como todo movimento guerrilheiro: fugir do confronto direto contra um inimigo mais forte, esperando por oportunidade melhor para atacá-lo. Por isso é necessário estabelecer diversos cercos menores e ir apertando devagar, revistando vila por vila, casa por casa. E conquistando a adesão da população encorajando-a a denunciá-los, mediante recompensa. 
 
DefesaNet – Será possível vencer o EI?
 
Eugênio Moretzsohn
: Militarmente sim, mas, dependerá da situação política da Síria, antes de tudo. Isto pode ser um fator complicador para a atuação das tropas em terra: será que o ditador sírio autorizará o desembarque de milhares de soldados em seu território? E a Rússia concordará? Mas, isso é assunto para os estrategistas em geopolítica e prefiro não me arriscar.  Pelo comportamento covarde dos integrantes do EI, na hora da verdade não irão enfrentar militares profissionais. Puseram para correr frações do exército sírio desmotivadas e sem liderança, mas não são adversários para a Legião Estrangeira francesa  ou para o S.A.S. britânico.
 
DefesaNet –  Você falou em “movimento guerrilheiro”. O Estado Islâmico é um grupo terrorista, ou guerrilheiro?
 
Eugênio Moretzsohn:
Para mim, o EI é um grande grupo guerrilheiro que emprega fortemente métodos terroristas. Ele pretende criar um califado nos territórios conquistados, substituindo o poder vigente por outro; pela doutrina, isso se enquadra em guerrilha. Concordo que suas ações terroristas em outros países o afastem dos “guerrilheiros clássicos” que procuram manter seu foco em alvos estatais dos territórios ambicionados. A guerrilha pode valer-se de efetivos maiores que as células terroristas, e atuam à semelhança militar (vejam as FARC), conquistando localidades e mantendo territórios (mesmo que temporariamente), onde exercem algum tipo de soberania ou controle.  Sendo considerado um grupo guerrilheiro, pode haver diferença de tratamento nos tribunais, pois são considerados “combatentes irregulares” e, portanto, passíveis de condenação à morte. O terrorista, em tese, pode argumentar “motivação política” para sua ação e escapar do carrasco.
 
DefesaNet – Para fechar: onde aprendeu sobre técnicas de recrutamento?
 
Eugênio Moretzsohn:
Por razões de estado, passei a vida profissional recrutando “olhos e ouvidos” nos diversos locais por onde passei, especialmente na Amazônia e na Tríplice Fronteira. Você simplesmente não consegue estar em todos os lugares, e precisa “colocar os gansos” para vigiar para você. Sempre utilizei a técnica de recrutar com base no sentimento patriótico, com módicas e ocasionais recompensas materiais. Na Amazônia, meu pedacinho de chão eram 5% do território nacional. Para cumprir a missão, você cria uma família de cooperadores unida pelo desejo de servir, de sentir-se útil, orgulhosos em fazer aquilo. Aliás, é o que nos motiva a viver, não é?

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