O aço que desmata a Amazônia

Keila Cândido

Embora poucos consumidores saibam, o aço usado para fazer geladeiras, carros e aviões é composto de minério de ferro e, muitas vezes, florestas. Parte da produção usa carvão vegetal derivado do corte de árvores, às vezes predatório. Agora, um levantamento inédito mostra pela primeira vez quanto desse carvão vegetal vem de desmatamentos ilegais ou foi produzido em condições desumanas. Segundo o estudo, pelo menos quatro das 16 principais siderúrgicas na Amazônia usam carvão de origem não explicada. Esse material viria de fornos que não estão no cadastro legal das empresas.

O levantamento foi feito pelo Instituto Observatório Social, uma ONG ligada à Central Única dos Trabalhadores e ao Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Os resultados do estudo, a serem apresentados no dia 22 de junho, em São Paulo, serão encaminhados ao Ministério Público Federal. “O relatório compila informações que já tínhamos”, disse o procurador da República do Ministério Público Federal de Marabá, no Pará, Tiago Rabelo, que teve acesso ao documento. “O passo agora é abrir uma ação civil pública para apurar essas denúncias e punir as empresas.”

As relações do setor siderúrgico com o desmatamento e o trabalho degradante sempre foram obscuras para o grande público. Quando se pensa em desmatamento, os primeiros culpados são a madeira, a pecuária ou a soja. Mas a maior parte das árvores derrubadas alimenta o forno de pequenas carvoarias na mata.

O carvão abastece pequenas siderúrgicas, em que é queimado para transformar o minério em ferro-gusa, matéria-prima do aço. Nem todo aço vem do desmatamento. Parte das siderúrgicas brasileiras, principalmente as do Sul e do Sudeste, usa carvão mineral, extraído de minas fora do Brasil. E mesmo as siderúrgicas que usam carvão vegetal se abastecem em parte com material proveniente de plantações de pinheiro e eucalipto, ou mesmo de desmatamentos legais. O problema é saber quem trabalha com carvão de origem irregular.

Para descobrir isso, o pesquisador Marques Casara, do Observatório, investigou a procedência do carvão usado pelas maiores siderúrgicas produtoras de ferro-gusa na Amazônia. Oito delas são associadas ao Instituto Carvão Cidadão (ICC), órgão criado pelas próprias empresas em 2004 para fiscalizar as carvoarias. Casara obteve a lista de fornecedores de carvão de cada siderúrgica, em 2010 no ICC.

E estimou quanto carvão esses fornecedores poderiam produzir no máximo com seus fornos. Depois cruzou os dados com a produção real das siderúrgicas. Das oito associadas ao ICC, quatro siderúrgicas poderiam atender a sua demanda com os fornecedores cadastrados. Porém, outras quatro – Sidepar, Margusa, Gusa Nordeste e Viena – produziram mais em 2010 do que seria possível usando apenas carvão dos fornos registrados. A diferença, segundo Casara, pode ser explicada por carvão de origem irregular. Além disso, mesmo entre os fornecedores cadastrados pode haver carvão ilegal. “Parte deles usa madeira de origem clandestina para abastecer seus fornos”, diz Casara.

De onde veio o carvão extra?
Em 2010, algumas siderúrgicas da Amazônia produziram mais do que seria possível apenas com os fornos que constam em seus cadastros legais.

Segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e Renováveis (Ibama), órgão ambiental federal, as siderúrgicas sabem do carvão ilegal. “Pela legislação, as siderúrgicas deveriam plantar suas florestas para produzir carvão”, diz Luciano Menezes Evaristo, diretor de proteção ambiental do órgão. “Mas elas não cumprem a lei. E estão acabando com a Amazônia.” Só em Nova Ipixuna, no Pará, desde março deste ano, o Ibama fechou nove serrarias que fornecem madeira para as carvoarias, destruiu 120 fornos e aplicou R$ 2,8 milhões em multas. No ano passado, o Ibama havia fechado sete serrarias na região.

O dano não é apenas ambiental. As carvoarias vêm ameaçando pequenos agricultores na Amazônia. Desde maio, cinco agricultores foram assassinados na região por denunciarem extração ilegal de madeira, entre eles o casal de extrativistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo.

As siderúrgicas e o ICC tiveram acesso ao relatório do Observatório. Segundo Casara, eles disseram que o levantamento não considerou fornos adicionados no fim de 2009. Procuradas por ÉPOCA, as empresas não se manifestaram. O relatório também diz que a Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Sema) estava envolvida em fraudes. A Sema teria atenuado as ações de fiscalização. “Quando entrei, ouvi falar que havia corrupção. A Polícia Federal estava investigando a Sema”, afirma Teresa Cativo, secretária que assumiu a pasta em janeiro deste ano. “Mas hoje isso não acontece mais.”

O setor siderúrgico está começando a perceber que o carvão ilegal é um risco. Segundo o procurador Rabelo, se as empresas não se ajustarem, a próxima medida será enviar uma carta aos compradores internacionais. “Solicitaremos que eles suspendam a importação do ferro dessas siderúrgicas.” É um sinal de que a cadeia do carvão entrou, enfim, no campo de visão da sociedade. A cobrança crescente deve ter efeitos benéficos. Se o setor ficar mais intolerante à ilegalidade, além de reduzir o desmatamento irregular e melhorar as condições de trabalho, também pode aumentar a competitividade da própria indústria siderúrgica exportadora do país e das empresas que usam esse aço.

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