Tiros em ônibus no Rio refletem despreparo de polícia, dizem analistas

Para o cientista político João Trajano Sento Sé, pesquisador do Laboratório de Análises da Violência da UERJ, a reação de disparar contra o ônibus evidencia que os policiais que fazem o policiamento nas ruas não estão prontos para situações inesperadas e reagem de maneiras que podem ser desastrosas.

"A polícia que faz o policiamento ostensivo tem que estar preparada para responder as situações que vai enfrentar, que aparecem de formas inesperadas", diz. "Acho que foi um golpe de sorte não terem ocorrido mortes por enquanto."

Tanto o comandante-geral da Polícia Militar (PM), Mário Sérgio Duarte, quanto o secretário estadual de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, admitiram na quarta-feira que os tiros foram um erro e podem ter colocado em risco a vida de passageiros, mas ressaltaram que a ação possibilitou o resgate dos reféns.

Para Paulo Storani, ex-comandante do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e especialista em segurança pública, a reação com tiros reflete falta de treinamento da polícia para lidar com situações limite e tomar decisões sob pressão.

"Eles são orientados a não tomar esse tipo de atitude, mas situações limite acabam gerando comportamentos limite. Para diminuir o erro, é preciso treiná-los para que saibam decidir com qualidade mesmo sob pressão", afirma.

Em um momento de maior confiança da população na polícia graças às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas, Storani lamenta que não se promova uma reforma mais profunda na instituição, mexendo em suas "raízes".

"Não se vê vontade política para promover essa transformação", afirma.

Os especialistas concordam que não basta investir no treinamento do Bope, especializado neste tipo de operação, para evitar episódios como este.

"Não adianta mudar só o Bope. Tem que mudar a polícia", diz Storani. "Porque o primeiro policial que atende uma situação como essa é o policial de rua. É ele quem está lá na primeira instância, que identifica o problema, aciona os meios necessários, faz o isolamento da área."

Ônibus 174
 

Desde o sequestro do ônibus 174, que resultou na morte de uma passageira e do sequestrador, há 11 anos, o Bope passou por uma grande reformulação, afirma Jacqueline Muniz, professora de planejamento operacional de polícia nas universidades Cândido Mendes e Católica de Brasília (UCB).

Para ela, apesar de o paralelo com o episódio do 174 ser inevitável para os cariocas, a comparação é inadequada "do ponto de vista técnico". Isso porque a polícia tomou atitudes corretas na terça-feira (isolando a área, acionando o Bope e conseguindo negociar a rendição) e a situação hoje é outra.

"Aquele fracasso demonstrou fragilidades tanto do ponto de vista da capacitação quanto da política. A ingerência política, com interferência na cadeia de comando da operação, aumentou o grau de erro no controle da polícia. Foi um desastre", diz a pesquisadora.

Após o episódio, diz Muniz, o Bope passou por uma série de treinamentos para lidar com situações de sequestro com reféns, com simulações de resgate inclusive em ônibus.

Sento Sé, por outro lado, vê poucas mudanças nestes 11 anos transcorridos, e considera que “uma mudança pontual numa unidade voltada para operações especiais” é pouco para dizer que "as coisas mudaram".

"Num episódio como este, fica claro que as figuras que estão na rua são preparadas para reagir a situações desse jeito, com tiros", afirma. "Os caras não são doutrinados para ter em primeiro lugar a segurança das pessoas. O foco é enfrentar e pegar o bandido."

Para Storani, o episódio indica que a PM ainda tem uma cultura de confronto – como policiais teriam demonstrando em julho, ao intervir em outro assalto a ônibus no Centro que resultou em um tiroteio que deixou cinco feridos.

"Depois de 30 anos de políticas públicas equivocadas, criou-se uma cultura perversa de enfrentamento", afirma Storani.

"O policial que está operacional é o que troca tiro. Não precisa entender de direitos humanos, basta ter coragem de apertar o gatilho."

Conclusões após perícia

Peritos contaram ao menos 14 marcas de tiros no ônibus que foi sequestrado na terça-feira após tentativa de assalto na Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio. O resultado da perícia apontará se os disparos que atingiram quatro pessoas civis vieram dos policiais.

Muniz diz que é irresponsável condenar a ação antes de ter os resultados da perícia. Ela diz que foi importante manter o ônibus dentro do cerco policial, impedindo que ele saísse desgovernado, o que deixaria vítimas nas ruas e calçadas, ou mesmo entre os passageiros.

Para ela, atirar nos pneus para conter o ônibus pode ter sido uma alternativa válida, dependendo das condições em que os disparos tiverem sido dados. Sendo feitos com segurança e precisão, segundo a professora, eles cumpririam seu objetivo sem atingir os reféns.

"Não dá para avaliar ainda, é preciso esperar a perícia. Se os tiros que atingiram os reféns tiverem vindo da polícia, isso pode ser produto da imprudência ou imperícia (dos policiais)", diz Muniz.

Na quarta-feira, dois policiais que admitiram ter disparado nos pneus do ônibus tiveram suas armas confiscadas e podem ser julgados por lesão corporal culposa.

No entanto, Sento Sé considera que a responsabilidade tem que ser atribuída também a quem seleciona, treina e coloca os policiais na rua. "É um pouco enviesado responsabilizar somente os policiais individualmente", diz o pesquisador.

Ele elogia a atitude do comandante da PM em admitir que os disparos foram um erro. "Acho que seria interessante um reconhecimento público de que esse tipo de episódio é de responsabilidade das autoridades, do estado, da secretaria de Segurança Pública e dos batalhões de polícia."

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