Análise – Totrtura e a falha da inteligência americana

Por George Friedman – Texto do Stratfor

Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

O Senado americano publicou essa semana uma série de memorandos sobre tortura emitidos durante a administração de George W. Bush. Os documentos, a maioria datando de logo após o 11 de setembro, autorizavam medidas que incluíam privar priosioneiros de comida sólida, mantê-los algemados em posíções desconfortáveis, mantê-los em celas frias sem roupas adequadas, estapeá-los na cabeça e abdômen, além de ameaçá-los de que suas famílias poderiam sofrer se eles não cooperassem com os interrogatórios.

Em uma escala de crueldade humana, ações como essa não chegam nem perto do topo. Ao mesmo tempo, alguém que pense que passar fome em uma cela gelada e apanhar aleatoriamente – enquanto ameaçam sua família – não é angustiante não tem imaginação. O tratamento dado aos presos poderia ter sido pior. Mas foi terrível mesmo assim.

Tortura e o vácuo de informação

Mas tortura foi feita para ser terrível, e devemos considerar o torturador no contexto de seu prórpio desespero. Diante ds ataques às torres gêmeas em 2001, qualquer um que não estivesse aterrorizado estava fora da realidade. Conhecemos várias pessoas que atualmente são um tanto blasé quanto ao 11 de setembro. Infelizmente para elas, também as conhecíamos logo nos primeiros meses após o desastre, e elas não eram nem de longe tão comedidas como são agora.

O ataque ao World Trade Center foi uma das grandes razões para prisões e torturas – não tínhamos ideia da capacidade da al Qaeda. Era razoável supor que outras células do grupo operassem nos EUA e e que a qualquer momento haveria outros ataques, especialmente dada a reputação deles pelas ações em sequência. Ainda nos lembramos da nossa primeira viagem de avião pós 9/11, olhando para os demais passageiros, planejando o que faríamos de um deles se mexesse. Cada vez que um usava o banheiro do avião, a tensão subia vertiginosamente.

E se a queda das torres não fosse apavorante o bastante, havia medo generalizado de que a al Qaeda tivesse alguma “carga explosiva” ou que um atentado nuclear a algum grande centro urbano pudesse acontecer a qualquer momento. Para os cidadãos individuais, era só mais uma possibilidade. Lembro-me de ter me hospedado em um hotem el Washington, próximo à Casa Branca, e perceber que estava no marco zero – e imaginar como seria o momento seguinte. Mas para o governo, o problema era ter cacos de informação indicando que a al Qaeda poderia ter uma arma atômica, mas não ter como verificar essa informação. O presidente e o vice eram mantidos em locais diferentes como medida de segurança, por motivos óbvios.

Essa falta de informação levou diretamente aos medos mais extremos, que exigiram as medidas mais extremas. Washington simplesmente não sabia muito sobre a al Qaeda, seu poder e objetivos nos Estados Unidos. A falta de conhecimento obriga as pessoas a pensarem na pior das hipóteses. Na falta de dados de inteligência que apontassem o contrário, a única suposição razoável era de que o grupo terrorista planejava mais ataques, e ainda piores.

Coletar inteligência rapidamente se tornou a maior prioridade nacional. Diante do medo genuíno e compreensível na época, nenhuma ação nessa busca de conhecimento estava fora de questão, contanto que prometesse respostas rápidas. Isso levou à autorização da tortura, entre outras medidas. Tortura oferece uma forma veloz de acumular inteligência, ou, diante da demora das outras ferramentas, era algo a ser pelo menos tentado.

A questão moral da tortura

Os documentos divulgados recentemente levantam  uma questão moral. Os Estados Unidos são um projeto moral – a Declaração de Independência e a Constituição atestam isso. O presidente faz um voto de proteger e defender a Constituição contra todos os inimigos, externos e domésticos. A Carta não fala sobre  tortura de estrangeiros, mas implica abominação à violação dos direitos (ao menos dos cidadãos americanos). Mas a Declaração de Independência contém o trecho “um respeito decente pelas opiniões da Humanidade”, o que indica que a opinião do mundo importa.

Ao mesmo tempo, o presidente jura proteger a Constituição. Em termos práticos, isso significa proteger a segurança física da nação “contra todos os inimigos, externos e domésticos”. Guardar os princípios da Declaração e da Constituição é insignificante sem preservar o regime político e defender o país.

Ainda que esse argumento seja muito interessante para um seminário sobre filosofia política, presidentes, e todos os outros que assumem os mesmos votos, não têm o luxo de uma vida de contemplação. Eles precisam agir em relação aos juramentos que fazem, e não fazer nada tem consequências. O ex-presidente Bush sabia que não conhecia a ameaça, e que para cumprir sua palavra como chefe de Estado ele precisava descobrir qual era essa ameaça, e rápido. Ele podia não saber se tortura seria um método eficiente, mas ele certamente não se sentia no direito de evitar seu uso.

Considere este exemplo: você sabe que um indivíduo conhece o paradeiro de um dispositivo nuclear plantado em uma cidade. O dispositivo mataria centenas de milhares de cidadãos, mas o sujeito se recusou a dar a informação. Qualquer um que tenha jurado proteger os cidadãos não toturaria esse indivíduo? Pode ou não funcionar, mas em todo caso, seria moralmente certo proteger o direito individual e permitir que centenas de milhares morressem? Parece que, em um caso assim, tortura é o imperativo moral – os direitos de um que detém a informação não podem transcender a vida da cidade ameaçada.

Tortura na vida real

Mas eis o problema: você não estaria emu ma situação assim. Saber que uma bomba foi plantada, quem sabe que essa bomba foi plantada e precisar apenas torturar essa pessoa para extrair informação não é como funciona no mundo real. Depois do 11 de setembro, os EUA sabiam muito menos sobre a dimensão do perigo representado pela al Qaeda. Esse cenário hipotético de tortura não era a questão..

A necessidade não era de informação específica, mas de uma noção clara da situação. Os EUA não tinham ideia do que era necessário saber, não sabiam quem era importante e quem não era, nem de quanto tempo dispunham. Então, tortura não foi uma solução precisa para um problema específico – tornou-se uma técnica de coleta de dados para inteligência. A natureza do problema enfrentado por  Washington na época levou à busca indiscriminada por informação.

Quando você não tem ideia do que precisa saber, lança-se uma rede ampla. E se tortura faz parte do pacote, também se torna ampla. Nesse caso, você sabe que vai seguir muitas pistas falsas, e quando usa tortura como ferramenta, vai interrogar gente com muito pouco a dizer. Além disso, tortura aplicada por qualquer um que não profissionais qualificados e experientes (e excepcionalmente escassos) só vai agravar a situação e tornar a prática menos produtiva.

Defensores da tortuta parecem acreditar que os presos para interrogatório certamente têm informação valiosa que precisa ser extraída à força. A posse dessa informação é prova da culpa. O problema é que, a menos que você tenha um corpo de dados excelente já no começo, a prática serve para adquirir conhecimentos básicos e o torturado pode muito bem não saber de nada.

O resultado não é só perda de tempo, mas a violação da decência individual e, principalmente, a desvalorização de um bom trabalho de inteligência. Depois de um tempo, abduzir pessoas e tentar extrair dados substitui as técnicas competentes de coleta de informação, e pode cegar a comunidade de inteligência. Isso é especialmente verdadeiro já que o interrogado pode dizer o que pensa que o torturador quer ouvir só para que o sofrimento pare.

Já os críticos parecem partir do princípio de que tortura é brutalidade como um fim em si mesmo, e não uma tentativa desesperada de conseguir alguma clareza acerca do que poderiam ter sido desdobramentos catastróficos. Esses mesmos críticos também não têm como saber até que ponto torturar informantes realmente impediu outros ataques terroristas.

Eles acreditam que, por mais que tenha sido útil, tortura não era essencial, que havia outros meios de descobrir o que era necessário. No longo prazo, eles poderiam até ter razão. Mas nem eles nem ninguém no fim de 2001 podia pensar que haveria longo prazo. Uma das coisas que não se sabia na época era quanto tempo até um possível novo desastre.

A falha da inteligência americana

A discussão eterna sobre tortura, o embate entre defensores e críticos, perde o ponto crucial. Os Estados Unidos recorreram ao método porque se depararam com uma gigantesca falha de inteligência abrangendo uma década. A comunidade de inteligência simplesmente falhou em coletar informação suficiente sobre as intençãoes, capacidade, estrutura e pessoal da al Qaeda. Não se tratava de complementar um trabalho competente, mas de reagir a um vácuo enorme de informação.

Essa falha se baseia em uma série de erros de cálculo ao longo do tempo. Havia a crença pública de que o fim da Guerra Fria significava que os EUA não precisavam mais de um grande trabalho de inteligência, conforme argumentado pelo falecido senador  Daniel Moynihan. Havia os membros da comunidade de informação que consideravam o Afeganistão coisa do passado. Havia a emenda Torricelli, que tornava ilegal o recrutamento de pessoas com ligação a gupos terroristas, exceto sob autorização especial.

Também havia os especialistas em Oriente Médio que não coneguiam entender que a al Qaeda era fundamentalmente diferente de qualquer coisa vista até então. A lista de culpados é imensa, e, no fim das contas, inclui o povo americano, que sempre acreditou que a visão do mundo como um lugar perigoso era criação de empresários e burocratas.

O então presidente Bush se viu emu ma situação impossível no dia 11 de setembro. O país exigia proteção, e com os cacos de inteligência que herdou dos governos anteriores, ele reagiu tão bem ou mal quanto qualquer um poderia nas mesmas circunstâncias. Ele usou as ferramentas que tinha, e torceu que fossem boas o bastante.

O problema com tortura – e outras medidas de exceção – é que ela é útil, no melhor dos casos, em situações extraordinárias. Mas na mão das burocracias o extraordinário logo vira rotina, e tortura passa de medida desesperada a parte do kit de ferramentas do interrogador do serviço de inteligência.

Em um dado momento, a emergência acabou. A comunidade de inteligência americana se concentrou em si mesma, e construiu um retrato cada vez mais coerente da al Qaeda com a ajuda de agências de inteligência aliadas em nações muçulmanas, então foi capaz de começar a ir atrás da organização. A guerra foi sistematizada, e medidas extraordinárias não eram mais necessárias. Mas a incorporação da exceção à rotina é o perigo embutido na burocracia, e o que começou como resposta a perigos sem precetendes se tornou parte do processo. Bush teve a oportunidade de ir além da emergência, mas não foi.

Se você sabe que um indivíduo tem informação valiosa, tortura pode ser uma ferramenta útil. Mas se você já tem inteligência o bastante para identificar quem tem dados importantes, então já está bem perto de vencer a guerra informacional. E aí que não se usa mais tortura. É a hora de apontar para o prisioneiro e dizer “pra você, a guerra acabou”. E expor tudo o que se sabe sobre ele. Isso é tão desmoralizante quanto uma cela gelada – e ajuda os agentes se manterem equilibrados.

O presidente Obama lidou com a questão no estilo em que está habituado, e da forma mais prática possível. Publicou os documentos autorizando as torturas para tornar a questão um problema exclusivo do governo Bush, ao mesmo tempo em que se recusou a processar qualquer um associado à prática, para que a questão não se tornasse polêmica demais. Boa política, talvez, mas não lida com a questão fundamental.

Essa questão permanence sem resposta, e pode continuar assim. Quando um presidente assume o voto de “preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos”, quais são os limites desse dever? Não levamos esse juramento muito a sério. Mas ele deve ser considerado com muito cuidado por qualquer um que entre nesse debate, especialmente presidentes.

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