O que está por trás da retórica de guerra de Putin?

No início de novembro, vários veículos da mídia russa – incluindo o jornal independente Novaya Gazeta – estavam se perguntando "se a Rússia recebeu ordens repentinas de se preparar para a guerra". Duas outras notícias pareciam corroborar a história. Em setembro, o presidente Vladimir Putin causou agitação durante uma série de manobras militares ao afirmar que as indústrias estatais e privadas do país deveriam estar preparadas par aumentar a produção em tempos de guerra.

Alguns dias depois, surgiu nas redes sociais um documento que mostrava instruções para que as escolas da cidade de Krasnoyarsk estivessem prontas para operações de guerra. Neste caso, o documento era genuíno, mas as autoridades afirmaram que tudo não passava de um exercício de rotina.

Estratégia eleitoral e militar

A retórica belicista não é incomum na Rússia atual. Moscou repetidamente enfatiza que se sente ameaçada pelo Ocidente. Ainda assim, muitos foram pegos de surpresa com esses dois episódios. O jornal Novaya Gazeta atribuiu o comportamento de Putin aos planos do presidente em relação às eleições presidenciais do ano que vem.

Não era nenhum segredo de que ele desejava concorrer a um quarto mandato – e ele finalmente fez o anúncio oficial da sua candidatura na semana passada.

Alguns analistas de segurança também apontam que as eleições desempenham um papel nisso tudo. O historiador britânico Mark Galeotti, por exemplo, acredita que "a Rússia não está se preparando para a guerra". Em vez disso, segundo ele, "esses episódios são parte da típica narrativa propagandeada por Putin com o objetivo de ganhar legitimidade". "É essa postura insistente de sugerir que a Rússia está cercada por Estados hostis e que todos os recursos disponíveis devem ser usados para defender a pátria", apontou Galeotti.

Para o especialista, com as eleições se aproximando, Moscou vai tratar de insistir ainda mais nessa versão. O especialista militar Stephen Blank, ligado ao think thank American Foreign Policy Council, concorda com a tese sobre a campanha, mas também enxerga a retórica belicista como parte de um quadro maior.

"O governo russo acredita há anos que já está em guerra com o Ocidente”, disse. Dessa forma, a mobilização seria uma peça importante da estratégia de segurança russa. O russo Alexander Golts, também especialista em assuntos militares, concorda. "A imagem da Rússia como uma ‘fortaleza sitiada' é um ambiente ideal para uma campanha presidencial”, disse. "O problema é que essa retórica de preparação para uma guerra não vai desaparecer depois das eleições." Segundo ele, esse tipo de visão vai permanecer por um longo tempo como uma das prioridades da liderança russa.

O efeito da anexação da Crimeia

De acordo com Golts, a percepção dominante na Rússia é a de que a guerra é possível e que é preciso se preparar adequadamente. A anexação da Crimeia, em 2014, e a "participação" em uma guerra secreta no leste da Ucrânia desempenharam papéis-chave nessa estratégia.

Golts, assim como muitos outros especialistas, acredita que a Rússia participou ativamente das atividades dos separatistas em Donetsk e Lugansk, na Ucrânia. O governo russo nega qualquer envolvimento.

"A preparação para a guerra é semelhante àquela observada na época soviética, baseada, sobretudo, em mobilização", disse Golts. Por exemplo, as instruções enviadas às escolas indicavam que elas deveriam servir como pontos de convocação de reservistas e posteriormente como hospitais. Segundo Golts, o inimigo em uma guerra hipotética será o Ocidente, porque "o grosso das forças russas estão sendo deslocadas para o oeste e o sudoeste".

No momento, o Exército russo está instalando três novas divisões entre Smolensk e Rostov, ao longo da fronteira com a Ucrânia, justificando a medida como forma de proteger a Rússia das forças da OTAN.

Também no oeste da Rússia, uma força blindada foi reposicionada. Blank destaca que Moscou também vê a Ucrânia como parte do Ocidente. Desde a anexação da Crimeia, a Rússia acelerou a modernização das suas forças armadas. Mesmo antes disso, no fim de 2013, o Ministério da Defesa do país já havia anunciado a construção de um moderno centro de comando militar em Moscou.

Já naquela época os jornalistas começaram a se perguntar se o país estava se preparando para a guerra. O centro de comando acabou sendo construído em tempo recorde e foi inaugurado no final de 2014. Agora os russos podem observar esse quartel-general quase todos os dias quando a TV russa transmite boletins sobre a missão militar russa na Síria.

As preparações para uma guerra hipotética, no entanto, não se resumem a isso. Em 2016, o país aproveitou um exercício militar para testar como os sistemas financeiro e de comunicações do país reagiriam durante um conflito.

Outro teste envolveu um ensaio com militares assumindo a administração civil do país. Relatos de São Petersburgo sobre medidas para estocar alimentos e estabelecer um sistema de racionamento acabaram ganhando as páginas dos jornais, assim como ocorreu com as notícias sobre a reabertura de abrigos subterrâneos em Moscou.

Também em fevereiro deste ano, o Parlamento russo modificou uma lei sobre mobilização militar, estabelecendo que agora os líderes regionais são responsáveis por convocar as tropas. Ainda não está claro se uma série de ordens de evacuação que ocorreram nos últimos meses fazia parte das preparações militares.

O país todo se perguntou por que milhares de pessoas receberam ordens para deixar shoppings centers, escolas e cinemas país afora. As autoridades afirmaram que não se trataram de exercícios, mas de reações a uma série de ameaças anônimas de bombas.

"Defesa agressiva”

Galeotti considera que as ações russas fazem parte de uma modernização da área de defesa. "Quando falo com pessoas de círculos militares em Moscou, elas realmente acreditam que a Rússia está sob ameaça e que o Ocidente – especialmente os EUA – está tentando sabotar a posição da Rússia como potência mundial e promover uma mudança suave de regime no país", diz. "Eles realmente acreditam nessas besteiras.

O que vemos aqui é uma forma agressiva de defesa", acrescenta o historiador, apontando que isso é algo preocupante. Ao analisar a situação e a retórica belicista, o Novaya Gazeta citou o dramaturgo Anton Tchecov, que disse certa vez que se uma arma aparece pendurada em parede do cenário no primeiro ato de uma peça, ela certamente será disparada até o último ato. Segundo um colunista do jornal, "a arma já foi solenemente pendurada na parede".

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