Combate ao coronavírus causa prejuízos para o crime organizado ao redor do mundo

 

Marcel Gascón, EFE

03 de abril de 2020

 

BUCARESTE – 12 de março foi um dia fatídico para a N'Drangheta, a famosa máfia italiana da Calábria. Durante o monitoramento da quarentena na cidade calabresa de Bruzzano Zeffirio, imposta como medida de combate ao coronavírus, a polícia parou um homem que havia rompido o isolamento. O homem respondeu que estava levando comida para um amigo, mas quando foi perguntado para onde estava indo, ele passou o endereço de uma casa abandonada. A polícia desconfiou e enviou oficiais para vigiar o prédio.

Através de uma das janelas, os policiais viram uma fumaça do que parecia ser um cigarro. Um relatório dos Carabineri – como são chamados os policiais italianos – descreve a cena: "aquela casa não poderia ser a moradia de um simples cidadão honesto". E não era. Quem fumava dentro da casa era Cesare Cordì, capo da N'Drangheta, preso graças às as condições geradas pela quarentena imposta como medida de contenção do coronavírus.

Embora menos literária que a queda do fugitivo, a emergência de saúde criada pelo coronavírus tem consequências para a capacidade operacional de grupos do crime organizado em todo o mundo. Da China, berço do surto, à Europa, América Latina, Estados Unidos, África e o resto da Ásia, o fechamento de fronteiras e as restrições de movimento paralisaram negócios internacionais, incluindo o tráfico de drogas, tráfico humano e de animais.

Todos os "empórios" ilegais viram suas rotas de suprimentos serem bloqueadas ou tiveram a distribuição prejudicada pelas políticas de isolamento adotadas nos países.

"A pandemia foi uma grande interrupção do crime organizado", confirma Mark Shaw, diretor da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Internacional (IG). "Por exemplo, as redes criminosas nigerianas espalhadas pelo mundo que transportam pequenas quantidades de drogas por avião viram seus negócios paralisados, porque não há voos para pegar", explica ele.

A China e o narcotráfico no México

A limitação de voos e a paralisação das exportações em países como a China são fatores-chave para entender o impacto da pandemia no submundo do crime. Um relatório divulgado este mês pela IG destacou o caso dos cartéis mexicanos, que não conseguem importar os produtos químicos necessários para produzir o fentanil e as metanfetaminas com os quais abastecem o mercado de drogas na América do Norte.

 

"A China é a principal produtora desses produtos químicos e o fechamento de suas fronteiras dificultou a produção de drogas", resume Chris Dalby, do Insight Crime, um grupo latino-americano de pesquisa sobre crime organizado.

Essas barreiras impostas à capacidade de fornecimento e distribuição do tráfico de drogas também reduziu a entrada de cocaína na Europa e a de heroína, vinda da Ásia, que chegava em grandes quantidades ao sul da África através de países como Moçambique.

O fechamento das fronteiras da China também afetou as máfias que fornecem roupas e joias aos comerciantes na Cidade do México. Segundo Dalby, as importações desse tipo de mercadoria são de responsabilidade do grupo criminoso 'La Unión de Tepito', e foram interrompidas.

Por meio de um subgrupo chamado Los Marco Polos – em homenagem ao pioneiro veneziano do comércio com a China -, a 'la Unión de Tepito' compra esse contrabando no país asiático e o vende a pequenos comerciantes da capital mexicana, que também são extorquidos pelo grupo.

"Muitas dessas empresas estão se recusando a pagar o que é chamado de 'aluguéis' ou 'vacinas'", diz Dalby. "Por que continuar pagando proteção se eles nem nos dão a mercadoria?", Perguntam cada vez mais comerciantes, de acordo com o especialista da Insight Crime. Apesar dessas complicações, especialistas consultados pela agência espanhola EFE concordaram que as grandes máfias se adaptarão à nova situação. "Fontes da Administração de Controle de Drogas (DEA) dos Estados Unidos nos dizem que os grandes cartéis no México, o Cartel de Jalisco e o Cartel de Sinaloa, já estão procurando fontes alternativas de suprimento para produzir drogas", destaca Dalby.

Coiotes reajustam preços

As restrições à circulação impostas pelas autoridades de todo o mundo também complicaram a venda de drogas ao consumidor final. A proibição de sair e a presença de militares e policiais tornam praticamente impossível o trabalho dos 'camelos' e reduziram ao mínimo os crimes com violência.

Segundo o relatório da IG, regiões como os Bálcãs registraram redução de homicídios e roubos nas últimas semanas. "Os ativistas da sociedade civil esperam menos mortes pela máfia nos próximos meses em países como Sérvia e Montenegro", destaca o estudo.

México – imigrantes

O fechamento de países também é um problema para os traficantes de seres humanos, que estão tendo mais dificuldade do que nunca de atravessar fronteiras na Europa e já estão sofrendo as consequências de medidas contra o vírus em países como a Líbia ou o Níger.

Segundo o IG, o medo do vírus faz com que muitos dos migrantes e refugiados em potencial desistam de viajar e, ao mesmo tempo, desperta hostilidade contra traficantes que ainda atuam em comunidades que normalmente cooperam com esse negócio. Relatórios da Líbia, por exemplo, falam de ataques a traficantes egípcios com medo de infecções. Essas dificuldades levaram os traficantes de seres humanos, os coiotes, a aumentar os preços de seus serviços.

"Eles já aumentaram os preços substancialmente na América Central e na fronteira do México com os Estados Unidos", diz Dalby. "Acreditamos que, no momento, haverá muito menos migração ilegal. Primeiro, porque os preços subiram e, segundo , porque as pessoas têm medo de coronavírus ”.

Novas oportunidades de burlar a lei

O medo e a crise provocada pelo coronavírus também apresentaram novas possibilidades de negócios ilegais. "A escassez e a demanda urgente e inesperada de materiais, como equipamento de higiene e proteção, abrem muitas oportunidades", diz Aubrey Belford, pesquisadora do Projeto de Informação sobre Corrupção e Crime Organizado (OCCRP).

"Todo mundo está tentando comprar e ter acesso a luvas, máscaras, testes, curas milagrosas", diz Belford, que vive em Kiev e encontra sites ucranianos quase diariamente que vendem desinfetantes e outros produtos a preços exorbitantes. "Alguns deles recebem pedidos e depois não entregam os produtos. O pânico leva as pessoas a pressionar, sem saber, o botão 'comprar'", disse.

O estado de emergência com o qual muitos governos responderam à pandemia também oferece novas oportunidades de corrupção. "Grandes quantias de dinheiro estão sendo concedidas com grande velocidade e pouca vigilância", diz Belford, que teme que esse sigilo permita grandes abusos por políticos e empresas privadas.

Conforme revelado recentemente pela publicação ucraniana Bihus.info, o Departamento de Saúde Pública de Kiev ordenou que vários hospitais preparassem salas separadas, maiores e com vidro escuro, para possíveis infecções por "gente do alto escalão". A esses pacientes VIP também deve ser garantido o fornecimento de medicamentos e que eles sejam tratados por médicos com pelo menos cinco anos de experiência.

Ordem nas periferias

O novo coronavírus atingiu inicialmente a China e seu impacto agora afeta totalmente a Europa e os Estados Unidos. "Se o vírus se espalhar em igual medida para lugares como a África do Sul ou a América Latina, trará ainda mais perturbações", diz Mark Shaw, do IG.

"Nesses lugares, as quadrilhas de criminosos têm uma presença muito mais forte no território e podem tirar vantagem da pandemia para ganhar destaque ao aplicar toque de recolher, quarentena etc."

Parte disso já está acontecendo na América Latina, explicam as fontes do Insight Crime que investigam esses fenômenos. Na Colômbia, líderes dissidentes das guerrilhas das FARC estabeleceram postos de controle para fazer cumprir a quarentena e ameaçam represálias àqueles que a descumprirem nas áreas dos departamentos de Cauca e Nariño.

Enquanto isso, o grupo criminoso Comando Vermelho, que controla o tráfico de cocaína e domina territorialmente muitas favelas do Rio de Janeiro, está impondo quarentenas em comunidades do Rio de Janeiro. Essa situação se repete com outras organizações criminosas.

 

"De certa forma, esses grupos se sentem responsáveis por proteger as comunidades em que vivem", diz um pesquisador do Insight Crime.

No caso da Venezuela, são os Coletivos – paramilitares urbanos – criados pelo Chavismo para defender a revolução que, nas favelas de Caracas, lideram a aplicação dos toques de recolher ordenados pelo governo. "Há imagens que mostram membros de grupos declarando o toque de recolher junto com as forças militares e especiais do governo, que parecem ter subcontratado esse trabalho para esses grupos", diz uma fonte. "Os Coletivos estão mais enraizados nas comunidades e há um elemento de medo que lhes dá poder sobre as pessoas".

Como outras pessoas e organizações, os criminosos e a máfia procuram se adaptar o mais rápido possível a novas circunstâncias e, de muitas maneiras, demonstram mais inventividade do que aqueles que operam dentro da lei.

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