Monitoramento e coordenação de ONGs é para melhorar resultados, afirma ministro

Mariana Schreiber

A nova atribuição da Secretaria de Governo de "coordenação", "monitoramento" e "supervisão" de atividades de organismos internacionais e organizações não governamentais (ONGs) no Brasil, criada pelo presidente Jair Bolsonaro por meio de medida provisória, gerou reação da sociedade civil já na primeira semana da administração.

Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro responsável pela nova tarefa, general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, disse que a intenção não é intervir em ONGs. "O objetivo não é de restrição, não é de influir no método de trabalho, não tem nada a ver. É simplesmente de coordenação e de obter melhores resultados", afirmou.

Questionado sobre a Constituição garantir autonomia ao terceiro setor e o fato de organizações pretenderem ir ao Supremo Tribunal Federal para derrubar a nova atribuição, o ministro não se comprometeu em rever a questão, mas disse que seu gabinete está aberto para receber reivindicações de todos os segmentos sociais, inclusive ONGs críticas ao governo e movimentos sociais, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Em outros trechos da entrevista, se mostrou crítico sobre o que vê como viés ideológico de parte dessas organizações.

"A generalização de ONGs é complicada. Tem ONGs boas e outras não tão boas assim", ressaltou.

A abertura com a imprensa ele já começou a botar em prática. Na sexta-feira, quando recebeu a BBC News Brasil em seu gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto, o ministro passou o dia atendendo jornalistas de diferentes veículos.

Responsável por administrar a verba publicitária do governo, o general prometeu dar total transparência ao uso dos recursos e disse que não terá "preconceito" contra grupos que publicarem reportagens negativas sobre a administração Bolsonaro.

Enquanto tenta distensionar a relação do novo governo com a imprensa, Santos Cruz deu à BBC News Brasil indicações que podem desagradar grupos evangélicos que apoiam Bolsonaro. Segundo ele, consequências práticas da prometida transferência de embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém podem "inviabilizar" que a ideia se concretize. Analistas internacionais apontam risco de retaliações econômicas por nações árabes e que o Brasil vire alvo de ataques extremistas.

"Entre a ideia e a realidade, você tem uma distância bastante longa", ressaltou.

Sobre a rotina de ministro, contou que continua dirigindo seu próprio carro e quer manter o hábito de acordar às 4h30 da manhã para andar a cavalo antes de iniciar o batente – tem três animais em Brasília. Conhecido pelo semblante sério em suas aparições públicas, Santos Cruz conversou por cerca de uma hora com a reportagem de ótimo humor. "Tem o personagem e o real", brincou, ao final da entrevista.

Confira abaixo os principais trechos.

BBC – A Medida Provisória 870 estabelece que a Secretaria de Governo vai "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional". O que significa isso exatamente?

Santos Cruz – Isso está dentro de um princípio de otimização do recurso público. Você tem milhares de entidades que utilizam recursos públicos, e você pode usar muito melhor essas entidades para complementar a ação governamental (segundo o Ipea, havia 820 mil ONGs no Brasil em 2016, das quais 7 mil receberam recursos do governo federal). Mas só que precisa uma coordenação maior. Então, o objetivo não é de restrição, não é de influir no método de trabalho, não tem nada a ver. É simplesmente de coordenação e de obter melhores resultados. Agora, esses resultados precisam ser acompanhados.

BBC – Então se trata apenas de organizações que recebem dinheiro público?

Santos Cruz – Mesmo aquelas que recebem dinheiro privado é necessária a coordenação porque a gente tem que saber, às vezes, a qualidade técnica. Por exemplo, você tem uma organização dedicada a doenças de criança ou de gravidez precoce, coisas assim, ou que trabalha com índios. Você tem que ter uma coordenação com o Ministério da Saúde, para ver a qualidade técnica do pessoal. E aí você vai até orientar para ter um resultado melhor.

BBC – A Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) diz que a forma como está redigida a medida provisória não deixa isso claro, já que o texto não fala sobre o recebimento ou não de dinheiro público. E juristas ressaltam que a Constituição garante total autonomia a atuação das organizações da sociedade civil. Eles veem na medida provisória margem para intervenção.

Santos Cruz – Lógico que tem autonomia, mas autonomia não quer dizer que, se você usou dinheiro público, você não precise fazer prestação de contas.

BBC – A preocupação do setor é que o texto não fala especificamente em ONGs que recebem dinheiro público.

Santos Cruz – As que não recebem dinheiro público são só coordenadas.

BBC – Mas o que seria essa coordenação?

Santos Cruz – Aquilo que eu expliquei a você. Há uma quantidade muito grande de organizações que trabalham com saúde, então o Ministério da Saúde, se coordenar bem isso aí, elas vão complementar a ação da saúde pública. Agora, se você não tiver uma coordenação, como vai fazer? A finalidade dessas organizações é complementar.

BBC – Então, a intenção do governo não é intervir em ONGs?

Santos Cruz – Não, não tem nada de intervenção.

BBC – Mas as ONGs estão preocupadas com essa redação e pretendem ir ao Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade. Não seria necessário um ajuste de texto pelo governo para evitar isso?

Santos Cruz – Primeiro lugar, isso aí não tem problema nenhum. Vamos para o conteúdo. Qual a ideia central? Se não você fica numa discussão por termos: se é supervisionar, se é coordenar, se é acompanhar. A melhor maneira é vir aqui par a gente conversar. (Estamos de) porta aberta. Inclusive estou pensando até em convidar umas dez ou doze (ONGs) para vir aqui. Para mim, o de menos é o termo.

BBC – E o senhor já sabe quais ONGs pretende receber?

Santos Cruz – Eu vou dar uma selecionada e escolher uma data próxima para a gente conversar. E também eles podem tomar iniciativa de pedir essa reunião e vir aqui conversar.

BBC – O senhor disse no discurso de transmissão de cargo que a Secretaria estará aberta a todos os movimentos. E em entrevista recente disse inclusive que isso incluía o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Santos Cruz – Sim, quando eu falei "qualquer segmento social", me perguntaram sobre o MST, e eu disse: "qual o problema do MST?"

BBC – É que o presidente já disse que considera o MST terrorista. O senhor concorda?

Santos Cruz – O que classifica você como terrorista é a maneira como você age. Você teve agora em Fortaleza (refere-se à grave crise de segurança pública no Ceará) verdadeiros atos terroristas tentando destruir um viaduto.

O crime organizado passou do limite que pode ser chamado de terrorista. Qualquer um que ultrapasse determinado limite pode ser classificado como terrorista. Agora, existe a lei. No caso do MST, dependendo da ação, pode incorrem num crime, numa concepção dessa.

BBC – Mas o senhor considera o MST terrorista?

Santos Cruz – Não. De vez em quando você vê gente fazendo coisa, destruindo propriedade, isso é terrorismo.

BBC – O senhor está distinguindo o que é a instituição e possíveis atos isolados?

Santos Cruz – Grupos isolados talvez, porque quando se fala em MST você tem espalhado pelo Brasil uma infinidade de grupos. De vez em quando você vê grupo que entra numa fazenda, deliberadamente destrói o patrimônio, queima os tratores. Isso é absurdo, é crime, e você classifica como quiser o crime. Agora, não é por causa disso que as outras centenas ou dezenas de grupos vão de comportar da mesma maneira.

BBC – Que tipo de diálogo o senhor vislumbra ter com o MST e ONGs que não se veem bem recebidos pelo governo?

Santos Cruz – Você falou de MST e ONGs. Em primeiro lugar, são coisas totalmente distintas. Você tem milhares de ONGs. A generalização de ONGs é complicada. Tem boas e outras não tão boas assim. Têm as que são ideológicas, têm outras que são dedicadas absolutamente ao trabalho filantrópico ou humanitário, outras ao controle de verificação de contas públicas. São vários tipos. Algumas têm perfil mais ideológico, mas idealista.

Então, você pega a Transparência Internacional, verifica as contas públicas e o momento mais famoso dela é quando faz o ranking da corrupção. Eu acho que ela não devia fazer só o ranking da corrupção, ela deveria acompanhar muito mais a conta pública na sua essência para servir como mecanismo de alerta junto a outros órgãos sociais.

BBC – A Transparência Internacional também atua na proposição de ações e leis para dar mais transparência às contas públicas. Há também ONGs de direitos humanos que podem ser críticas a algumas diretrizes do governo. Os senhores estão abertos ao diálogo com essas?

Santos Cruz – Qualquer uma. E outra coisa: assim como eu acho que eles devem exigir mais transparência, eu preciso ter toda essa transparência (por parte das ONGs). E aqui está aberto para receber essas sugestões e depois (elas podem) perguntar para a gente qual o encaminhamento que foi dado.

BBC – O senhor já serviu em diversas missões da ONU. O presidente e o chanceler Ernesto Araújo têm feito ataques ao organismo e já manifestaram intenção de sair do Conselho de Direitos Humanos e do pacto de migração. Qual sua opinião sobre a ONU? Considera a melhor decisão o Brasil romper esses compromissos?

Santos Cruz – Cada governo tem a sua orientação política. A ONU tem seus problemas também. Inicialmente foi feita para ser um fórum político, com a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, depois ela viu que ela tinha que defender a população (com missões de paz), interferir em alguns casos, então acaba também sofrendo as consequências da política internacional.

Não são todos os setores que funcionam bem, ela também não acerta todas as vezes, mas é o único órgão multilateral que se tem com essa dimensão, é a mãe de todos os órgãos, e ela tem que ser prestigiada.

Você pode ver que tem determinadas resoluções que um país ou outro acaba não concordando – por exemplo, (resolução sobre) minas terrestres, têm vários países que não assinaram, porque às vezes não satisfaz a sua necessidade. Então, não é problema também ficar fora de uma coisa ou outra. O nosso ministro se manifestou (dizendo que vai sair do pacto de migração); em compensação estamos apoiando 100% os venezuelanos (que entram por Roraima fugindo da crise em seu país). Então, depende da situação essa questão de orientação de política externa.

BBC – No Conselho de Direitos Humanos, o senhor acha que seria melhor o Brasil permanecer?

Santos Cruz – Tem que fazer diferença de Conselho e Comissão de Direitos Humanos. O problema é que às vezes você tem posições tomadas longe daqui completamente fora da realidade daqui. Então, você toma uma decisão lá no conselho que não tem nada a ver com o funcionamento da nossa Justiça. Na verdade, esses conselhos se desgastam quando passam a ser ideológicos, quando pega um criminoso comum e acha que está sendo vítima de um processo político. Não, ele cometeu um crime.

BBC – O senhor se refere ao ex-presidente Lula (cuja participação na eleição foi recomendada pelo Conselho de Direitos Humanos)?

Santos Cruz – Ele ou qualquer outra que tenha cometido infração semelhante. Querem transformar caso de polícia em caso político, aí começa a confusão.

BBC – Mas o senhor acha que o Brasil deve permanecer na ONU e atuante?

Santos Cruz – Sem dúvida. O Brasil é um dos grandes países do mundo.

BBC – Em entrevista recente ao SBT, o presidente não descartou discutir no futuro uma base militar dos EUA no Brasil. Haveria alguma hipótese em que poderíamos ter uma base americana?

Santos Cruz – Eu acho que no campo das hipóteses tudo pode ser, mas se você for para a vida real é outra história. Aí vai ter que discutir, ver as condicionantes. Discussões assim acabam ficando muito estéreis, afastadas da realidade.
 

BBC – Mas, olhando a realidade, o senhor não vislumbra uma base americana no Brasil?

Santos Cruz – Não vejo necessidade nenhuma nesse momento. Agora, talvez um dia, numa (mudança de) conjuntura, você tem momento político. É como foi na Segunda Guerra Mundial (quando houve uma base em Natal, no Rio Grande do Norte, de onde partiam aviões americanos para África e Europa), porque era outro contexto. Discutir nesse contexto agora não tem sentido. Naquele contexto tinha sentido por causa da proximidade (de Natal) com África. Quando entra no campo hipotético, vira um vale tudo danado.

BBC – Aos Estados Unidos interessam uma maior aproximação com o Brasil também por causa da crise venezuelana. O que o Brasil pode fazer concretamente?

Santos Cruz – Concretamente, o que você pode fazer hoje é auxiliar os venezuelanos que estão em estado de necessidade cruzando a fronteira (para o Brasil). É a prioridade, vida real. Vejo gente falando que tem que fechar a fronteira. Nada disso, temos que dar esse apoio.

O caso venezuelano é de deterioração da qualidade de vida do povo. Um governo ideológico, totalmente desconectado (disso). Então, essa crítica bem clara ao governo venezuelano é muito importante. Agora, você não tem como interferir lá dentro. O povo venezuelano que vai ter que fazer a reação dele. O que (o Brasil) pode fazer, é na área internacional, condenar esse sofrimento que o povo está passando.

A gente lastima, vemos o povo sofrendo. Ninguém quer sair da sua casa, pegar uma bolsa e pegar a estrada caminhando para cruzar uma fronteira. É o cúmulo da irresponsabilidade você se adonar do poder e esquecer que o poder não é para você, nem para sua ideologia, é para fazer o trabalho para a população.

BBC – O senhor fala muito sobre o problema da ideologia, assim como o presidente. Muitos intelectuais entendem que o governo Bolsonaro também é ideológico e que é natural ter ideologias em um governo.

Santos Cruz – Depende do que você considerar. Eu não tenho ideologia nenhuma. Eu morei nos Estados Unidos, morei na Rússia, países maravilhosos. Não tem nada a ver ideologia. Ideologia vem quando você deixa de fazer as coisas ou faz as coisas com segundo objetivo. Por exemplo, para mim o MST tem ideologia, porque nunca fizeram nada para aquele povo que fica na beira da estrada. Você tem muita gente necessitada. Vão ficar o resto da vida na beira da estrada como massa de manobra? Em nome de uma ideologia, do seu projeto de poder, quando você tem que resolver o problema daquelas pessoas.

BBC – Eles dizem que estão em uma luta por distribuição de terra.

Santos Cruz – Ficaram 14 anos no poder e nunca deram terra. (O PT) Ficou 14 anos e não conseguiu tirar aquele povo da beira da estrada? Por quê? Porque interessa para eles ficarem como sua massa de manobra. Isso é ideologia, quando você usa as pessoas para seu projeto de poder.

BBC – Na política externa, esse alinhamento com os Estados Unidos e Israel não tem viés ideológico?

Santos Cruz – Não, é viés político, não ideológico.

BBC – Líderes evangélicos querem mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém até o aniversário de Israel, em abril. Considera possível?

Santos Cruz – Olha, eu não vou falar nem pelo Bolsonaro, nem pelo Ernesto (Araújo), mas eu acho que eles (líderes evangélicos) vão ficar na esperança. Porque uma coisa é você dizer que tem intenção, outra coisa é você concretizar. (Para) você sair de uma ideia para a vida real, você tem uma série de outras considerações de ordem prática. Então, eu acho completamente inviável essa conexão.

BBC – Além das possíveis retaliações comerciais, vê risco do Brasil e embaixadas brasileiras virarem alvo de ataques extremistas se essa transferência se concretizar?

Santos Cruz – Mais uma vez vamos para o campo (da hipótese) da base americana, da embaixada em Israel, da intervenção na Venezuela. São coisas (as ameaças de retaliações e riscos de ataques) que seriam levantadas, consideradas na avaliação da concretização da ideia. A ideia, (quando) você vai querer concretizar, você vai levantar tudo isso, e tudo isso pode até inviabilizar. Então eu acho que o pessoal tem que ter um pouco mais de calma que, entre a ideia e a realidade, você tem uma distância bastante longa.

BBC – O senhor vai comandar as campanhas publicitárias do governo. Há um temor de que os anúncios em veículos que deram matérias negativas sobre o governo serão cortados. Como vão ficar os critérios de distribuição de verba?

Santos Cruz – Olha, não estamos em período eleitoral. Sem dúvida nenhuma, nas eleições, você viu às vezes um veículo de comunicação que saiu de uma isenção de informação à população e adotou uma linha política. Agora, isso para mim não tem valor. Se fizeram essa opção errada, perderam a eleição, e todo mundo tem que ser tratado da mesma maneira. Não tenho discriminação por conta da campanha.

O critério (é) o que a gente quer atingir. Se eu quero fazer uma campanha de vacinação, qual é o fim do filme (publicitário)? É a mãe e a criança tomarem conhecimento. Então eu tenho que divulgar no meio que vai levar essa informação até lá. Não adianta eu fazer uma opção por um pseudoaliado político que não vai levar a informação até lá. Não é assim.

BBC – Pergunto porque é normal a imprensa fazer matérias negativas sobre o governo. Queria entender se isso vai influenciar de alguma forma na distribuição do recurso.

Santos Cruz – Assim como a imprensa tem a liberdade total de adotar a linha que quiser, tem coisas que são discricionárias de governo. Eu não pretendo trabalhar com esse preconceito. Se tiver que fazer opção por um ou por outro, eu vou dizer: "a decisão é essa, por causa disso". Haverá transparência completa.

 

 

 

 

 

 

Compartilhar:

Leia também

Inscreva-se na nossa newsletter