Considerações sobre o poder do Estado e as complexidades do século XXI

Cel Alexandre Gueiros Teixeira


A análise do poder constitui-se em ferramenta essencial à compreensão das dinâmicas estatais, endógenas ou exógenas. Trata-se de elemento-chave das relações sociais, cuja complexidade demanda abordagem multidisciplinar e integrada.

É por tal relevância que, desde a Antiguidade até o presente, muitas têm sido as tentativas de compreendê-lo e exercê-lo. Do cálculo estratégico-militar de Sun Tzu, passando pelo “Equilíbrio de Poder” de Richelieu, até a guerra híbrida do século XXI, ficam evidentes suas múltiplas matizes, comprovadas pela variedade semântica de sua base filosófico-conceitual.

Hannah Arendt, por exemplo, afirma que o poder advém do consenso exercido no espaço público. Prioriza o princípio da ação conjunta ao vigor individual; a capacidade de atração à coação. Para a autora, quanto maior a capacidade colaborativa, mais perenes, fortes e legítimas serão as relações de poder.

Por outro lado, para Weber, poder está diretamente associado ao conflito e à força. Afastando-se do ideal kantiano de Arendt, o autor advoga que Estados e indivíduos convivem em ambiente naturalmente beligerante, onde o singular prepondera sobre o plural.

A luta, portanto, é a forma pela qual o poder se evidencia plenamente, importando, somente, o desenvolvimento de capacidades indispensáveis à “imposição da vontade de A sobre B”. Já Foucault, em abordagem mais ampla, ressalta o dinamismo e a universalidade do poder, corroborando sua essência conflituosa, ao mesmo tempo em que o identifica no consenso coletivo.

Segundo o filósofo francês, o poder existe a partir de múltiplas interações em variados níveis; provém do Estado, mas também do indivíduo; manifesta-se no público, mas interage com o privado.

Aos analistas políticos e estrategos, porém, faz-se mister aprofundar-se além de “o que é poder”, investigando sua composição e seu inter-relacionamento.

Ou seja, deixar a teoria pura e simples rumo à instrumentalização metodológica prática e concreta. Nesse sentido, modelos teóricos/fórmulas do poder têm se conformado como ótimas ferramentas para melhor compreender os fenômenos políticos do presente e sua evolução no futuro.

Estudos acerca do poder tornam patente a influência de cada conjuntura em sua gênese. De Sun Tzu, aproximadamente século II a.C., a Sulek, 2010, identifica-se grande variedade de modelos/fórmulas, cada qual contendo fatores e subfatores que explicitam as peculiaridades geopolíticas típicas de determinada moldura espaço-temporal.

Conforme o sistema internacional evolui, a base filosófica da compreensão/percepção do poder e sua estrutura também se altera. Tratando-se especificamente do momento atual, constata-se cenário difuso, onde visões clássicas sobre poder parecem não explicar por completo os fenômenos globais e regionais.

O conflito tradicional dá lugar às guerras assimétricas e híbridas, onde “novos atores” se unem aos costumeiros em ambiente marcado pela “pós-verdade” e incertezas.

Aumento dos fluxos migratórios, com o consequente crescimento de tensões étnicas e socioculturais; terrorismo; crises humanitárias; crimes transnacionais; tudo vem lançando grandes desafios aos estrategistas e tomadores de decisão do presente.

O incremento exponencial das transformações tecnológicas, aliado à revolução dos meios informacionais, alteraram os fluxos globais, fazendo despontar variáveis inéditas no conjunto dos elementos do poder do Estado.

No “novo século”, despontam fatores outrora desconsiderados ou tidos como de pouca relevância. Cultura, mídia e meio ambiente, por exemplo, assumem posição destacada no cômputo das resultantes do poder, lado a lado com os tradicionais fatores político, econômico e militar. Isto fica claro ao se analisar a questão da Crimeia, em 2014, e as polêmicas envolvendo supostos desmatamentos na Amazônia brasileira, em 2019.

Na primeira, o que se viu foi a anexação da cobiçada península pela Rússia, fruto da combinação de poder militar stricto sensu (ocupação de pontos estratégicos por tropas) e embates no campo informacional (operações de informação por meio da mídia digital e tradicional).

Ações coordenadas de comunicação estratégica, valendo-se das peculiaridades histórico-culturais da região, conseguiram que a maioria da população referendasse o ato, movida por forte apelo emocional.

Recentemente, foi a vez do fator ambiental agir como “epicentro” da acomodação das “placas tectônicas do poder”. Em panorama cada vez mais tomado por ideologias, “paixões” e fake news, variáveis políticas e econômicas interagiram de forma complexa com as ambientais e culturais, culminando em explícita “guerra de narrativas”, que impactou a imagem do País e trouxe à tona questões de soberania.

Em pouco tempo, uma gama de atores – públicos e privados; reais e virtuais – provocaram “abalos sísmicos” em nível global, cujos efeitos ainda se observam.

A análise sumária dos dois episódios comprova que, hoje, o Mundo é complexo e multidimensional. Como em Foucault, as relações de poder não podem mais ser consideradas como fenômenos binários, mas a síntese, não-linear e evolutiva, da interação de diversos vetores, onde poder potencial transforma-se em poder efetivo.

Não cabe mais um olhar único e exclusivo às nuances do hard power ou ao soft power. Paradoxalmente, conflito e força devem coexistir com consenso e cooperação; o estatal com o não-estatal; e assim sucessivamente em contínua busca pelo equilíbrio.

Diante da imprevisibilidade e volatilidade situacional do presente, compreender o jogo de forças inerente à modelagem do poder do Estado é tarefa essencial ao planejamento político-estratégico.

Perceber seu caráter universal e onipresente, bem como ter a sensibilidade de ajustar as ferramentas à evolução de cenários, é o rumo certo para a geração de um smart power efetivo.

¹Sobre o autor : Alexandre Gueiros Teixeira Coronel de Artilharia do Exército Brasileiro, servindo atualmente no Centro de Comunicação Social do Exército. Comandou o 15º Grupo de Artilharia de Campanha Autopropulsado, LAPA-PR. Foi instrutor do Curso de Artilharia da AMAN. Mestre em Ciências Militares, pela EsAO. Doutor em Ciências Militares, pelo Instituto Meira Mattos. Foi Oficial de Ligação do Exército Brasileiro junto à Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim (ONUCI) e participou de intercâmbio de Artilharia com o Ejército de Tierra, Espanha.

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