Líbia – O messianismo e a soberania

Mauro Santayana 

O pretexto para a intervenção militar na Líbia é a defesa dos “direitos humanos”. O argumento para as cruzadas foi o da “defesa dos lugares santos”. A causa alegada para uma intervenção estrangeira na Amazônia é a defesa do meio ambiente e dos direitos dos indígenas.

Contra o princípio secular da não intervenção nos assuntos internos, ergue-se o espírito de missão de alguns países que, sentindo-se poderosos, dispõem- se, isoladamente ou mediante coalizões, a invadir o território alheio.

A soberania dos estados é a extensão da inviolabilidade do lar. A razão que o homem usou, para construir uma casa em que se protegesse e protegesse a família das intempéries e dos predadores, é a mesma que orienta a criação dos estados. Jean Bodin, pensador francês do século 17, resume a ideia ao identificar os estados como societates quae superiorem non recognoscent. Em suma, o estado exerce, sobre seus súditos e seu território, a sum – ma potestas, não admitindo poder superior. A eventual violação desse princípio por um súdito ou por um príncipe não empenha o estado em sua situação pura. No caso em que haja submissão a outro estado, ela só pode ser compreendida como concessão temporária de soberania, atendendo a uma conveniência recíproca, ou adesão ideológica ou religiosa, como no caso dos estados teológicos, entre eles os muçulmanos e os pontifícios. Ou, a fatalidade da derrota militar.

A lógica da sensatez indica que só as guerras defensivas são justas. Quando os submarinos alemães afundaram navios brasileiros na costa de Sergipe, em águas nacionais, tínhamos que declarar guerra ao Eixo. O mesmo ocorreu na Guerra do Paraguai: revidamos a uma agressão.

Um terceiro país pode ir ao socorro do agredido, daí os pactos militares conhecidos, as ententes e as grandes e pequenas coalizões. A doutrina da intervenção para impor a ordem interna dos outros só pode ser definida com a frase crua de Perón: “La fuerza es el derecho de las bestias”.

Como qualquer outra locução adjetiva, direitos humanos dependem da escolha de cada um. Os direitos se associam à vontade e à liberdade individual, dentro da visão de Stuart Mill, de que “liberty is to make a choice”. Os meus direitos, eu os escolho, e serão legítimos se não violarem os alheios. Eu posso ter o direito de, se quiser, fazer-me escravo de outra pessoa – o que é frequente nas relações amorosas – ou de uma ideia, ou mesmo de uma seita. A única intervenção de terceiros contra essa servidão voluntária é pregação libertária, que, nas sociedades laicas e inteligentes, se exerce a partir da educação.

Há dias em seminário na Amazônia, americanos como Bill Clinton e o vezeiro James Cameron receberam de líderes indígenas apelo aberto à intervenção estrangeira contra a construção da usina de Belo Monte. A simples presença de Mr. Clinton e de Mr. Schwarzenegger, em Manaus, para discutir os problemas amazônicos já constitui intervenção intolerável. Suponha o leitor que, em resposta, os americanos decidam bombardear as usinas hidrelétricas brasileiras. Ou que, “comovidos”, alguns paises ricos com a situação de miséria de nossas crianças resolvam enviar tropas a fim de salvá-las. Pensar nisso hoje pode parecer absurdo, como absurdo era imaginar que, depois de 1945, ainda houvesse expedições militares messiânicas, como as do “Libertador” Hitler contra o Leste da Europa.

Em 1936, quando Franco, com tropas estrangeiras (marroquinas) e o apoio dos nazistas, se levantou contra o governo legítimo da República, a França e a Inglaterra esquivaram- se de intervir, em nome da soberania espanhola. Como se vê, as doutrinas mudam de acordo com a conveniência. Na Espanha não há petróleo.

E, antes que alguém lembre o episódio, tive a mesma posição quando, em 1968, o Pacto de Varsóvia invadiu a Tcheco- Eslováquia, com o pretexto de “salvar o socialismo”.
Mauro Santayana escreve nesta coluna às quartas, quintas e sextas-feiras.

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