Iêmen vive há quase dois anos em uma grave guerra

Retalhado entre grupos opostos e facções terroristas, alvo de bombardeios aéreos constantes, com a economia em frangalhos, hospitais destruídos e uma crise de fome e desnutrição que está matando suas crianças, o Iêmen agoniza, mas pouca gente vê.

Apesar de a situação humanitária no país da Península Arábica ser uma das mais severas do mundo, a guerra, que já dura um ano e meio, tem pouca visibilidade. “Diferentemente de conflitos como o da Síria, o Iêmen não atrai o mesmo nível de atenção internacional”, afirmou por e-mail ao G1 a equipe de Oriente Médio e África do Norte do Instituto Nacional Democrático de Assuntos Internacionais (NDI, na sigla em inglês), nos EUA.

Entre as razões apontadas, está o baixo valor estratégico do Iêmen para os grandes poderes mundiais. Segundo o instituto, apesar de o terrorismo gestado por lá historicamente ter sido um desafio para os governos ocidentais, a guerra limitou significativamente a capacidade desses grupos extremistas de viajar para fora do país, assim como o acesso de seus apoiadores ao território iemenita. Por isso, o país não é um motivo de preocupação tão grande quanto o Iraque ou a Síria, por exemplo.

O bloqueio por mar, terra e ar estabelecido pela coalizão saudita – que luta contra os rebeldes houthis – impede também que os iemenitas deixem o país. Com isso, não se gerou uma crise de refugiados como no caso da Síria, outro fator que contribuiu para a invisibilidade do conflito “As pessoas estão presas no Iêmen, então não há filas de refugiados em países vizinhos onde os repórteres podem vê-los e chamar a atenção para o conflito”, pontua Charles Schmitz, especialista em Oriente Médio e Iêmen do Instituto do Oriente Médio em Washington e professor da Universidade Towson em Baltimore.

Outra dificuldade apontada por Schmitz é a falta de liberdade de imprensa. Repórteres iemenitas têm sido presos e atacados por ambas as partes do conflito, e jornalistas estrangeiros não conseguem ter acesso ao país devido ao bloqueio e à falta de infraestrutura. “Seria muito difícil viver no Iêmen, mesmo se um repórter conseguisse chegar ao país”, diz o professor. E completa: “A mídia no Iêmen é toda de propaganda de guerra. Reportagens de verdade não são feitas. Se os repórteres derem as notícias verdadeiras, são atacados por não apoiarem a causa da guerra”.

Segundo a ONU, já são mais de 6,6 mil mortos desde o início do conflito – 3,8 mil deles eram civis, e 6,7 mil ficaram feridos. Ao menos 620 crianças morreram e 758 foram mutiladas desde meados de 2015, afirma a organização.

Em um relatório publicado em Genebra, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos denunciou recentemente os ataques contra mercados e instalações médicas e escolares, o uso de minas terrestres e de bombas de fragmentação e o recrutamento de crianças para transformá-las em soldados.

O organismo pediu também a criação de uma comissão independente para apurar as violações de ambos os lados. O pedido foi negado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que determinou que os abusos sejam investigados internamente. A decisão desapontou ativistas e especialistas, que são céticos em relação a uma solução próxima para o conflito.

Entenda o conflito

A tensão no Iêmen começou a se acirrar na Primavera Árabe, em 2011, quando os rebeldes xiitas houthis participaram de protestos contra o então presidente e se aproveitaram de um vácuo no poder para expandir seu controle territorial em algumas regiões do país. O grupo rebelde é respaldado pelo Irã, também xiita, e reivindica mais participação no poder.

Após anos expandindo seu controle, em setembro de 2014 os houthis conquistaram a capital, Sanaa. No início de 2015, o presidente Abd Rabbo Mansur Hadi foi forçado a fugir para outra cidade do Iêmen e depois para a Arábia Saudita. Os houthis dissolveram o Parlamento e formaram um conselho presidencial para governar.

Em março de 2015, a Arábia Saudita passou a liderar uma aliança árabe para conter o avanço dos houthis. A aliança tem o apoio dos Estados Unidos e faz bombardeios aéreos constantes às áreas dominadas pelos rebeldes. No entanto, até hoje não conseguiu recapturar Sanaa.

Além dos houthis, apoiados pelo Irã, e do presidente Hadi, apoiado pela Arábia Saudita, a disputa de poder no Iêmen inclui tribos sunitas, a Al-Qaeda e até o Estado Islâmico.

Colapso na economia

O Iêmen, que já era um dos países mais pobres do mundo, viu sua economia entrar em colapso ainda maior com o surgimento da guerra. A produção e exportação de gás e petróleo – principal motor da economia – parou, e o desemprego e a inflação cresceram. As reservas do banco central estão precariamente baixas por causa dos gastos com a guerra. De acordo com um relatório do Banco Mundial divulgado pela Reuters, o custo da destruição da infraestrutura do Iêmen e as perdas econômicas superam os US$ 14 bilhões até agora.

Fome e desnutrição

Altamente dependente de importações de alimentos, o Iêmen sofre com um quadro de fome e desnutrição há décadas. Mesmo antes da escalada de violência, o país tinha milhões de pessoas famintas e um dos maiores níveis de desnutrição no mundo. A guerra acentuou muito esse problema, e as imagens atuais de crianças iemenitas esqueléticas lembram as cenas da epidemia de fome na Somália na década de 1990.

“Todo o arroz do Iêmen e 90% do trigo são importados. A coalizão saudita impôs um bloqueio para prevenir que armas fossem para os houthis em Sanaa, mas sem importação e exportação, a economia estagnou em uma recessão severa com escassez de comida e inflação alta”, diz Charles Schmitz, do Instituto do Oriente Médio.

Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ao menos 7,6 milhões de pessoas, incluindo 3 milhões de mulheres e crianças, sofrem de desnutrição e falta de água potável. De acordo com a Unicef, 192 centros de tratamentos de má nutrição pararam de funcionar por causa do conflito.

Além do bloqueio à entrada de alimentos importados, a destruição de rotas de comércio e fazendas por ambas as partes em luta criou uma escassez de produtos no mercado e levou os alimentos básicos a serem vendidos a preços exorbitantes. A ajuda humanitária também encontra grande dificuldade para chegar, devido ao alto preço dos combustíveis, aos bombardeios aéreos e à violência em terra.

O custo elevado das mercadorias nas áreas de combate obriga os iemenitas a viajarem longas distâncias fora de algumas cidades para comprar produtos por um preço melhor. Muitas caminham por montanhas cheias de trincheiras e voltam com grandes cargas de comida em suas costas.

Segundo um relatório da ONG Oxfam, moradores de uma das cidades que estão na linha de frente da guerra disseram que não havia vegetais nem fórmulas infantis no mercado e que em algumas áreas o preço dos alimentos aumentou 200%. “Em fevereiro [de 2016], quando perguntamos aos moradores da cidade de Taiz se eles tinham alguma preocupação de segurança na hora de comprar comida, a lista era longa: disparos de atiradores, bombardeios, batalhas repentinas, assédio nos postos de controle, abuso físico e verbal, insultos e humilhações”, diz o documento.

“Muitos disseram que comem apenas uma refeição por dia para deixar comida para seus filhos. Alguns afirmaram que ficam sem comer por 36 horas seguidas nos momentos mais intensos do conflito”, prossegue o relatório.

Bombardeios a civis

Organizações nacionais e internacionais acusam os bombardeios aéreos lançados pela coalizão saudita de atingirem indiscriminadamente áreas civis, como mercados e hospitais. Um estudo do Yemen Data Project (projeto de monitoramento criado por grupo de acadêmicos e ativistas de direitos humanos) analisou mais de 8.600 ataques aéreos de março de 2015 a agosto de 2016 e revelou que mais de um terço dos bombardeios liderados pela Arábia Saudita atingiram alvos civis, incluindo escolas, hospitais e mesquitas.

Segundo o estudo, publicado no jornal inglês “The Guardian”, 3.577 bombardeios atingiram alvos militares e 3.158, alvos não militares, enquanto 1.882 são classificados como tendo atingido alvos desconhecidos. A pesquisa afirma que uma única escola foi bombardeada nove vezes, e um único mercado, 24 vezes. A Arábia Saudita alega que a conclusão do relatório é exagerada e critica a metodologia da pesquisa. Segundo o país vizinho ao Iêmen, os rebeldes transformaram escolas, mesquitas e hospitais em centro de controle.

Ataque a hospitais

De acordo com a ONU, mais de 600 unidades médicas pararam de funcionar no Iêmen por terem sofrido danos ou por falta de pessoal e suprimentos, o que afetou o acesso à saúde de milhões de pessoas.

A organização Médicos sem Fronteiras (MSF) lançou no dia 27 de setembro dois relatórios relativos aos ataques a dois de seus hospitais no Iêmen, ambos de autoria reconhecida pela coalizão saudita. Um deles, o hospital de Abs, foi bombardeado no dia 15 de agosto deste ano, deixando um saldo de 19 mortos. Outro centro médico atingido foi a clínica de Taiz, em 2 de dezembro de 2015, onde uma pessoa morreu e oito ficaram feridas. Segundo a ONG, as coordenadas geográficas dos dois centros haviam sido fornecidas a todas as partes do conflito.

A MSF ressaltou em seu comunicado que, além da perda e vidas e da destruição causada pelos bombardeios, os ataques levaram à suspensão de atividades médicas, “o que deixou uma população já muito vulnerável sem acesso a cuidados de saúde”. “Em consequência do bombardeio ao hospital de Abs, MSF retirou suas equipes de seis hospitais no norte do Iêmen”, afirma a organização.

Presos em seu próprio país

Os iemenitas estão presos em uma armadilha. Mais de 3 milhões de pessoas de uma população de 27 milhões tiveram que abandonar suas casas. Enquanto isso, todos os portos foram fechados pela coalizão saudita, o que impede qualquer pessoa de deixar o país. Para piorar, muitos países que um dia receberam iemenitas sem pedir visto agora estão fechando as portas para eles.

Dados de janeiro a agosto de 2016 mostram que o Iêmen é o segundo país com mais deslocados internos no mundo devido a conflitos, atrás apenas da Síria. São 478 mil pessoas, segundo o Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos. Muitos desses deslocamentos foram no oeste do país, causados pelos bombardeios da coalizão saudita em áreas controladas pelo movimento houthi.

Solução distante

Enquanto os dois lados continuam a destruir o país, especialistas não vislumbram uma resolução iminente para o conflito. “Parece não haver solução em um futuro próximo. Há um impasse militar e político. Nenhum lado consegue ganhar, mas nenhum lado está disposto a negociar”, afirma Charles Schmitz, do Instituto do Oriente Médio.

Negociações de paz em curso no Kuwait foram adiadas no último mês de agosto, após os rebeldes houthis rejeitaram o plano proposto pelas Nações Unidas, decepcionando os mediadores. Segundo o NDI, uma das dificuldades para as negociações até agora tem sido o limitado poder de influência das duas delegações no processo. Ou seja, nenhum dos dois lados da guerra deu poder suficiente aos seus representantes para fazer concessões ou acordos políticos nas conversas de paz.

Até lá, a população iemenita deve continuar sofrendo. “As pessoas estão esperando que algo mude, mas as delimitações do conflito não mudaram no último ano, apesar dos bilhões de dólares que os sauditas estão gastando com ele”, diz Schmitz. “É uma tragédia enorme”, conclui.

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