Entrevista – Como Shinzo Abe está modernizando as Forças Armadas do Japão

Por Eleanor Albert – Texto do Council of Foreign Relations
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

 

A execução, no mês passado, de dois reféns japoneses pelo Estado Islâmico (EI ou ISIS) reacendeu o debate público em Tóquio sobre o pacifismo nacional pós-Segunda Guerra. Mas as ações recentes do governo para revisar as políticas de contraterrorismo devem ser vistas no contexto mais amplo das ambições militares do primeiro ministro Shinzo Abe. É o que diz Michael Auslin, especialista do American Enterprise Institute.

Além do terrorismo islâmico, ele cita também a ascensão chinesa e as incertezas quanto ao compromisso dos Estados Unidos para com a aliança bilateral como outros grandes motivos para o Japão reconsiderar seu papel no mundo. E enquanto os cidadãos permanecem divididos diante das questões de segurança, o especialista afirma que há uma clareza cada vez maior de que “o mundo é um lugar mais e mais perigoso para se viver, e não se pode simplesmente tentar evitar essa realidade”. Em relação à aliança EUA-Japão, Auslin diz que, por mais que Washington esteja contente com o esforço de Tóquio em direção à autosuficiência militar, a política nacionalista de Abe precisa de “um equilíbrio delicado”.

CFR.org: Shinzo Abe prometeu que faria o ISIS “pagar por seus crimes”, e Tóquio acabou de rever seus parâmetros para auxílio internacional, permitindo que o Japão financie operações não-militares de forças estrangeiras. Como podemos entender essas mudanças de postura?

Michel Auslin:Essas mudanças são parte de um movimento maior de Abe para modernizer e normatizar as Forças Armadas japonesas. As atuais medidas vão de encontro ao desejo do ministro de repensar a proibição constitucional da auto-defesa coletiva. Esse desejo vem de mãos dadas com a possibilidade de retomar a exportação de armamentos, novas parcerias e políticas de combate ao terrorismo. Assim, as manobras recentes de Tóquio devem ser compreendidas no contexto dos objetivos políticos mais amplos de Shinzo Abe.

Mas o caminho legislativo é longo. É preciso aprovação do Parlamento japonês para passar as leis que permitirão ao chanceler rever a política de segurança nacional. E então há, é lógico, o aspecto operacional. As Forças Armadas precisarão desenvolver capacidade para efetivamente participarem em missões de contra o terror.

Neste momento, o Japão não tem nada disso. Poucos países têm esse repertório: os Estados Unidos, e o Reino Unido estão na frente, e a Coreia do Sul também tem know-how considerável de atuação em caso de reféns, e em forças especiais por conta da ameaça da Coreia do Norte. Para que Tóquio consiga resgatar reféns que podem estar a milhares de quilômetros, terá que construir e implementar essa estrutura. E no momento Abe está apenas verbalizando essa vontade.

CFR.org: Como a crise recente com prisioneiros japoneses mortos pelo Estado Islâmico esclareceu o debate público acerca do papel futuro das forças japonesas?

MA:A tragédia dos dois reféns mortos pode ser vista como um impulso para que Tóquio tome medidas mais agressivas para proteger seus interesses ao redor do globo. Ou, numa lógica reversa, pode servir como justificativa para a pressão de Shinzo Abe para revisar a Constituição nacional. A região da Ásia-Pacífico está agitada, e o resto do mundo anda bastante perigoso. Sendo assim, o Japão precisa se modernizar – não apenas proteger seus interesses, mas também trabalhar com aliados. A crise com os reféns trará muito mais atenção do público para a questão de como renovar o aparato de segurança japonês, mas não significa uma reviravolta total. Na verdade, o cenário atual está se misturando com tendências que já vinham se firmando.

CFR.org: Qual a postura dos cidadãos japoneses diante da possibilidade de uma nação mais forte do ponto de vista militar?

MA:A população permanence dividida quanto ao tema da segurança. Há muita oposição pública à revisão da cláusula constitucional que proíbe a auto-defesa. Também há muitas vozes contra a participação japonesa em operações no exterior, mesmo as de natureza defensiva. O que gerou essa crise foi a decisão tomada por Abe de enviar 15,5 milhões de dólares em ajuda humanitária não-letal aos países atualmente combatendo o Estado Islâmico. Não há como ser mais paliativo que isso em termos de atitude em relação ao ISIS. E ainda há no Japão quem diga que mesmo um envolvimento tão fraco gera repercussões – sendo que no caso cidadãos japoneses foram capturados e mortos.

Isso também faz parte de um debate muito mais longo e ainda não tão articulado sobre o papel do Japão no mundo – sua segurança, qual o rumo que o país deve seguir, e o que deveria estar fazendo.
Não há ninguém no país que não seja familiarizado com essa discussão porque a suposta ameaça da Coreia do Norte, o crescimento da China e a incerteza acerca da disposição dos Estados Unidos em manter a parceria pós-Segunda Guerra são preocupações nacionais.

Tudo isso alimenta um debate sobre defesa que vem surgindo nas últimas décadas. Os cidadãos agora se perguntam: como vamos nos proteger? Devemos nos isolar ainda mais do resto do mundo? Qual o melhor caminho? O Japão ainda é um país muito dividido, mas que, creio eu, percebe que o mundo está cada vez mais perigoso e não se pode simplesmente evitar essa realidade.

CFR.org: Que tipo de revés regional podemos esperar caso Shinzo Abe consiga rever a política de defesa no Japão? 
      

MA:Abe tem um longo caminho à sua frente para conseguir qualquer reforma constitucional através do Parlamento, e definir quais leis permitirão que as forças japonesas atuem no exterior. E mesmo assim, Tóquio terá que equipar essas instituições para tanto, o que não se faz da noite para o dia. Até o momento, a reação na Ásia-Pacífico é em grande parte negativa. China e Coreia do Sul relembram seus cidadãos constantemente de que o Japão não é confiável, de que o país tem um passado violento pelo qual ainda não se responsabilizou, e que quaisquer ações para reforçar a capacidade militar e de segurança de Tóquio – seja na região ou em outras partes do mundo – é motivo de preocupação.

Dito isso, não há muito que as nações vizinhas possam fazer para deter uma possível remilitarização japonesa. Certamente a China estará muito mais disposta a se opor a Tóquio em questões como a das Ilhas Senkaku/Dayou, mantendo sua própria postura militar e construindo armamentos que podem vir a ameaçar o Japão.

Manobras futuras para redesenhar a política externa nipônica não devem agravar as relações diplomáticas, que já estão terríveis agora. Mas significam que não podemos esperar que a relação com as nações próximas melhore, especialmente enquanto Abe e o governo japonês decidem seguir em frente com reformas que consideram ser do interesse do país no que se refere à segurança.

CFR.org: Como Washignton enxerga um Japão mais ousado?

MA:Um Japão militarmente mais forte vem sendo um objetivo de longo prazo para os EUA há tempos. As relações nipo-americanas podem ser vistas sob dois prismas: político e diplomático. No aspecto diplomático, Washington quer um aliado capaz, que possa assumir a maior parte, se não toda a responsabilidade por sua defesa. O governo em D.C. também quer um parceiro hábil e disposto a trabalhar mais em conjunto, que tenha meios e experiência para ser um parceiro eficiente, e que partilhe valores americanos a fim de encorajar outras nações a contribuir na manutenção da segurança e estabilidade na região da Ásia e do Pacífico. Os EUA buscam uma nação amiga que possa contribuir em operações humanitárias e, por fim, assumir um papel maior em proporcionar bens e auxílio a pessoas em situação de risco.

O lado politico dessa relação já é um pouco mais complicado e depende das personalidades envolvidas. Não é surpresa que o governo Obama tenha seus receios em relação a Shinzo Abe. Há membros do gabinete americano que se sentem desconfortáveis com a releitura que o chanceler japonês faz do passado e com suas ambições para o futuro. Eles se preocupam com que papel um Japão mais intependente pode cunhar para si na região.

Washington ainda não teve um parceiro japonês com quem trabalhar no longo prazo por contra das mudanças frequentes nas linhas políticas dos ministros até que Abe chegou ao poder. Este ano será delicado por ser o aniversário de 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Há todo tipo de dúvida sobre o que primeiro ministro japonês irá dizer e que tipo de declarações oficiais serão lançadas para marcar a data. Então a política dessa relação bilatral é mais complexa que o aspecto diplomático. A diplomacia em si vai muito bem – é o que todos os governos desde Ronald Regan queriam. Mas a parte política exige um esforço de equilíbrio muito mais delicado.

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