Os Estados Unidos são capazes de produzir boas análises de defesa?

Por Franz-Stefan Gady – Texto do The Diplomat
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

 

No prefácio de seu livro Anti-Access Warfare – Countering A2/AD Strategies, Sam J. Tangredi aponta: “este livro é, de forma confessa, escrito com um ponto de vista centrado nos Estados Unidos. É uma perspectiva pela qual não me desculpo porque – diferente de muitas contrapartes no mundo acdêmico – creio que não exista isso de pesquisa livre ou neutra de juízos de valor na área de relações internacionais(…) todo estudo social (…) é afetado por crenças pessoais (…) do pesquisador”. Essa linha de pensamento, admite Tangredi, vem de seu passado como oficial das Forças Armadas dos EUA.

Essa observação atinge o núcleo do problema da objetividade na análise de defesa: como se certificar de que o seu pensamento reflete a real natureza de uma situação militar, em vez de uma perspectiva distorcida do que está acontecendo influenciada por crenças pessoais?

Esse é o debate filosófico ancestral entre o que é e o que deveria ser, fatos versus valores, ou declarações afirmativas versus normativas. Alguns marxistas argumentariam que, na verdade, não a distinção entre fatos e valores. Ainda que eu não tenha uma postura tão extrema, acho que boa parte da análise de defesa nos Estados Unidos (e no oeste da Europa) tem viéses característicos e frequentemente nós aceitamos “as coisas como deveriam ser” no lugar das “coisas como elas são”.

Por exemplo, a maior parte dos analistas parte do princípio de que, dado o arsenal da China, suas ambições regionais e situação geopolítica, a Marinha do país deve estar buscado uma estratégia de anti-acesso/negação. Com o tempo, esse “deve estar” se transformou em um “está de fato” – ou seja, determinamos que a Marinha do Exército de Libertação Popular está montando uma estratégia de anti-acesso/negação, com muito pouco estudo de fontes chinesas sobre o assunto.

A razão por trás dessa parcialidade analítica é óbvia: temos uma tendência a enxergar nós mesmos nos outros, e “ditarmos a conduta da guerra sob nossos próprios termos”, segundo dos oficiais superiores americanos. Na verdade, nós queremos que a China vá atrás de uma estratégia A2/AD porque é o tipo de guerra naval que a US Navy pode vencer.

Reconhecer esse aspecto cognitivo tendencioso, porém, é apenas o primeiro passo, é extrapolar a nós mesmos da armadilha desse “efeito espelho”. Essa etapa precisa ser seguida  – se usarmos a alegoria da caverna de Platão – pelo movimento de abandonarmos a gruta das nossas próprias crenças subjetivas e enxergarmos o sol, o que é, eu suponho, especialmente difícil para os especialistas em defesa nos Estados Unidos.

É importante considerar a predominância global da língua inglesa nas ciências exatas e sociais (apesar de 75% da população mundial não falar inglês), a predominância do sistema educacional nos moldes americanos, o papel mundial das Forças Armadas dos EUA, e a simples extensão territorial dos Estados Unidos (assim como do Canadá e da Austrália) – em resumo, a presença forte de hard e soft power americano em todo o globo.

Diante desses fatores, sair da caverna não é fácil. É óbvio que crescer na sociedade americana, passando por um sistema de ensino ao longo da vida, servir nas Forças Armadas do país por anos, ou trabalhar na burocracia nacional em Washington, influenciará a percepção que o indivíduo tem do mundo.

Porém, talvez seja menos óbvio que os americanos não consigam escapar da América mesmo no exterior. Por exemplo, ao trabalhar em uma empresa estadunidense em outro país, servir em uma base militar no exterior, lecionar em uma universidade de fora ou ser vir em Forças de Paz americanas em um local distante, a experiência individual ainda é fortemente influenciada pelos viéses valorativos da terra natal.

Conforme aponta Robert Jervis em seu livro Perception and Misperception in International Politics: “se as pessoas não aprendem o bastante com o que acontece aos outros, eles aprendem demais com o que acontece a elas mesmas”. Quer dizer, a falta de exposição ao mundo externo frequentemente produz uma introversão peculiar, mais perceptível em Washington, onde se passa a maior parte do tempo tentando manobrar os diferentes aspectos das agências “kafkianas” e os processos interagências, ao mesmo tempo em que se tenta moldar os analistas ao formato D.C. – entenda-se truncar o discurso com várias siglas e usar o travessão como pontuação. Isso ilustra o lado negro do lema nacional “E. Pluribus Unum” (Um vindo de Muitos), dificilmente a receita certa para um analista de defesa que, supostamente, deve sempre “pensar fora da caixa”.

Esses fatores em conjunto representam um desafio sério à boa análise. Em primeiro lugar, eles dificultam o desenvolvimento de empatia genuína (o alerta de Sun Tzu: “conhece teu inimigo”), a qual o general Robert McNamara, no filme Sob a Névoa da Guerra, define como a tentativa de “nos colocarmos na pele [dos oponentes] e nos enxergarmos através dos olhos deles, só para entendermos os pensamentos por trás das suas decisões e ações”. Isso, McNamara considera um dos fatores cruciais para tomar as decisões certas no tabuleiro das relações internacionais.

É claro, outros analistas de outras nações enfrentam limitações intelectuais semelhantes e podem também ser facilmente aprisionados em suas “cavernas” assim como seus colegas americanos. Porém, conforme apresentado acima, eu acredito que é muito mais fácil para um cidadão chinês ou europeu “se tornar nativo” nos Estados Unidos”, mergulhar na cultura nacional e criar simpatia pelo “modo americano de fazer as coisas”, do que um americano fazer o mesmo na China ou na Europa – particularmente no campo da análise de defesa.

A solução de Sam Tangredi de admitir abertamente o viés americanizado em seu pensamento éuma forma de lidar com a questão. Mas, apenas desistir da objetividade não pode ser a resposta. A boa análise do setor de defesa exige um esforço na direção dessa objetividade, mesmo que não se possa de fato obtê-la.

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