Contra Informação Digital – Uma bomba invisível

Bruno Ferrari

No meio da tumultuada entrevista coletiva dada na semana passada peio presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, recheada de frases fortes, uma ganhou destaque: "Acho que foi a Rússia", disse o republicano.

Trump reconhecia pela primeira vez a participação do governo de Vladimir Putin nos ataques de hackers ao Partido Democrata, de sua oponente Hillary Clinton, durante a campanha eleitoral. Naquele episódio, em setembro de 2016, invasores digitais acessaram os computadores do Comitê Nacional Democrata e de diversos líderes do partido, entre eles o chefe de campanha de Hillary, John Podesta.

Os documentos obtidos não eram especialmente comprometedores, mas foram entregues ao site WikiLeaks, tornaram-se públicos e causaram ainda mais dano à já desgastada campanha de Hillary. Segundo uma avaliação feita pela Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, os ataques foram perpetrados por hackers ligados ao governo russo.

A intenção na divulgação do material, segundo a CIA, era ajudar Trump a vencer a eleição. Ainda na coletiva, Trump afirmou não ter nenhum laço ou pendência que pudesse justificar uma preferência russa por ele. O governo russo nega as acusações e não há certezas sobre as intenções dos hackers. O episódio, porém, encaixa-se perfeitamente numa lista de evidências preocupantes sobre uma nova ameaça a democracias.

Nos últimos meses, diversos relatórios de empresas de segurança digital e agências governamentais apontam para ataques hackers e campanhas de desinformação como uma estratégia das agências de inteligência da Rússia.

Os relatos ocorrem em nações em que Putin tem interesses políticos e econômicos. O Instituto Sueco de Relações Exteriores, principal autoridade de política internacional do país, divulgou, em 5 de janeiro, um relatório de 44 páginas a respeito. O documento detalha a ação de grupos ligados ao governo da Rússia para influenciar a opinião pública sueca.

Enumera ações como distribuição de documentos forjados e notícias falsas, assim como o uso tático de sites fantoches em russo e em sueco, com o objetivo de manter a Suécia fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança ocidental criada em 1949 para fazer frente à União Soviética. "A adesão da Suécia à Otan teria implicações militares e políticas que exigiram da Rússia uma retaliação", disse Maria Zakharova, ministra das Relações Exteriores da Rússia, em 2015.

Segundo os autores do estudo, reportagens mentirosas foram publicadas em veículos de origem russa e depois repercutidas pela versão sueca no Sputnik, veículo que defende os interesses da diplomacia russa. Depois, foram replicadas por sites suecos. "Estabelecemos as intenções das ações, as narrativas dominantes e os padrões comportamentais que têm estreita correlação entre a diplomacia russa, o que sugere que se trata de uma ação coordenada", concluiu o relatório. O documento lista também o uso, pelo governo Putin, de táticas "tradicionais" da geopolítica, como agentes infiltrados e ameaças militares.

Também na semana passada, autoridades na Alemanha disseram estar examinando a proliferação recente e sem precedentes de notícias falsas no país. O comunicado veio em meio a relatos da BfV, agência de inteligência alemã, sobre esforços russos para influenciar a eleição parlamentar na Alemanha, marcada para setembro. A BfV acusa a Rússia de usar ferramentas de propaganda e muito dinheiro numa campanha de desinformação para diminuir o poder do governo da atual primeira-ministra, Angela Merkel.

"Estamos lidando com um fenômeno de dimensão que nunca vimos antes", disse Steffen Seibert, porta-voz do governo alemão, a uma reportagem da agência Reuters publicada na semana passada. Segundo a Reuters, a BfV também confirmou a ocorrência de um ciberataque em dezembro contra a Organização pela Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), O ataque usou as mesmas ferramentas vistas numa ação hacker de 2015 contra o Parlamento alemão, atribuída ao grupo de hackers russo APT28.

No fim de dezembro, o FBI, polícia federal dos Estados Unidos, divulgou um relatório de análise conjunta com a empresa de segurança FireEye, que afirma que o APT2S age em apoio aos interesses estratégicos de Putin, principalmente em questões de defesa e geopolítica. A cooperação do grupo hacker com o governo russo ocorre, segundo o relatório, desde 2007, mas intensificou-se nos últimos dois anos.

O estudo do FBI apresentado em dezembro descreve que um aparato de software para invasão de computadores e roubo de informações sugere o apoio do governo da Rússia, uma vez que 97% das amostras de malware (nome dado a programas maliciosos) foram compiladas durante os dias da semana em que há expediente, e 88% delas no período entre 8 e 18 horas no fuso horário de cidades como Moscou e São Petersburgo.

Outro governo que demonstra preocupação com as táticas de "ciberinfluência" russa é a França, que também terá eleições em 2017. O ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, se pronunciou sobre os ataques de hackers na semana passada, afirmando que os serviços de inteligência do país estão aprendendo as lições com o caso das eleições americanas.

O ministro confirmou a preocupação de uma eventual interferência da Rússia nas eleições. Le Drian disse que o risco ficou ainda mais aparente quando hackers russos atacaram, no ano passado, o canal TV5 Monde, tirando-o do ar.

Nesse cenário, torna-se um exercício razoável, e não paranoico, imaginar qual seria o interesse de Putin na eleição de Montagem de Daniel Graf sobre Fotos de: AFP (3), Reuters e Thinkstock Trump e se o presidente russo teria alguma influência sobre o americano. Mal terminara a coletiva em que o presidente eleito dos Estados Unidos negara laços com a Rússia, reportagens surgiram na imprensa americana afirmando que ele não fora totalmente sincero. Motivos econômicos não faltam para Putin apoiar um governo de Trump.

Um dos primeiros movimentos do republicano ao ser eleito foi anunciar o empresário Rex Til lerson, presidente da petrolífera Exxon-Mobil, como secretário de Estado. Há cerca de três anos, Tillerson recebeu de Putin a Ordem da Amizade, uma honra por seu trabalho pelo "fortalecimento na cooperação no setor de energia" no país.

Em sua sabatina no Senado, na semana passada, Tillerson deu a resposta correta para alguém sob escrutínio: disse ser favorável a manter as sanções econômicas em vigor contra a Rússia, impostas pelos Estados Unidos e pela União Européia após Putin anexar a Crimeia, em 2014. Mas a ExxonMobil tem interesse na suspensão das sanções, para voltar a investir na extração de petróleo na Sibéria e no ártico russo. Trump já indicou que tende a reconhecer a Crimeia como russa e a não confrontar Putin na defesa do ditador Bashar al Assad na Guerra Civil da Síria.

O presidente eleito tem também interesses empresariais na Rússia. Lançou o concurso Miss Universo em Moscou, em 2013, e planejou a construção de uma Trump Tower na capital russa. De acordo com o jornal russo Kommmersant, Donald Trump Jr., filho do presidente eleito, disse a investidores que o grupo planejava construir imóveis em Moscou, São Petersburgo e Sochi.

O herdeiro afirmou em 2008, segundo a imprensa americana, que seus negócios "veem muito dinheiro vindo da Rússia". Na guerra de versões, boatos e desinformação, a munição se torna cada vez mais pesada. Segundo uma reportagem da rede de TV americana CNN, um ex-agente do serviço secreto britânico preparou uin dossiê durante a corrida eleitoral americana a pedido do Partido Democrata.

De acordo com o dossiê mencionado na reportagem, agentes russos têm imagens comprometedoras de Trump participando de uma orgia em Moscou, o que dá a Putin uma ferramenta para chantagear o presidente americano. Trump e o governo russo negaram a existência de tais vídeos.

O ciberespaço é considerado campo de batalha há anos, mas os governos das democracias mais ricas não estavam preparados para esse tipo de confronto. "A Rússia mostrou-se capaz de lançar inovações tecnológicas recentes em ataques, como usar conexões de satélite para infiltrar códigos maliciosos em redes de países", afirma o americano Ben Buchanan, pós-doutorando em cíbersegurança pela Universidade Harvard. "Eles também estão evoluindo suas táticas quando não apenas coletam informações sigilosas, mas criam uma estrutura para divulgá-las à imprensa e às redes sociais de acordo com seus interesses."

Mesmo com as acusações vindas de diversas potências políticas mundiais, pode-se dizer que os russos, pelo menos por enquanto, estão numa posição confortável. Ainda que surjam evidências, como as apontadas no relatório do FBI, é muito difícil comprovar objetivamente a participação do governo Putin nos ataques e manobras de desinformação.

Uma hipótese é que hackers de outros países trabalhem durante o fuso horário russo justamente para criar evidências contra aquele país. E a Rússia está longe de ser a única nação a defender agressivamente seus interesses. Os Estados Unidos agiram fortemente para tentar influenciar os britânicos e levá-los a permanecer na União Européia, no plebiscito do ano passado. "Se usamos táticas cibernéticas para influenciar governos e resultados de eleições em outros países, é mais que natural que também sejamos alvos de estratégias similares" diz Joseph Steinberg, presidente da empresa de segurança SecureMySodal. "O que devemos fazer é nos preparar para reagir a esses ataques. Os eventos recentes mostram que não estamos preparados", diz.

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