SNIPER – A ciência de um tiro a 3.500m

 Ana Carolina Moreno e

Tahiane Stochero, G1

Um atirador de elite do Canadá alcançou um feito inédito no mês passado: a uma distância de 3,5 quilômetros, ele acertou e matou um combatente do Estado Islâmico no Iraque. Trata-se do tiro mortal de maior distância já confirmado, segundo informações do Comando de Forças Especiais do Canadá.

O recorde foi batido em maio, mas só foi confirmado na última quinta-feira (22) pelo exército do país ao jornal canadense "Globe and Mail". As explicações por trás de um evento como esses, porém, já são amplamente conhecidas pelos estudos de uma das áreas da física ensinadas no ensino médio: a balística.

Para ajudar a explicar esse fenômeno e os detalhes por trás do tiro, que já ganhou fama mundial, o G1 ouviu o professor Ronaldo Carrilho, supervisor das aulas de física do Anglo Vestibulares, e cinco especialistas militares brasileiros.

De acordo com os especialistas, um tiro a essa distância é possível, mas as probabilidades de sucesso são baixas e exigiriam também, além de cálculos matemáticos e de física, uma certa dose de sorte.

Lançamento oblíquo

De acordo com Carrilho, que é autor do material didático de física do Sistema Anglo, esse evento representa um típico caso de lançamento oblíquo. Embora a velocidade da bala dê a impressão, a olho nu, de que sua trajetória está em linha reta, na verdade o cano da arma precisa ser apontado para um ponto acima do alvo, para que a bala o acerte. "Não adianta, por exemplo, você alinhar o cano da arma com o alvo. Você precisa atirar para cima do que você está vendo no alvo. É como todo mundo que já brincou de lançar dardo ao alvo: com habilidade, você percebe que não pode ficar jogando muito onde de fato está olhando, você joga o dardo para cima para depois ele descer e cair onde você quer."

Veja abaixo um esquema de como os conhecimentos de balística podem ser aplicados para explicar a ciência por trás do tiro, e entenda o que representa a distância de 3,5 quilômetros:

Entenda a ciência por trás do tiro recordista do atirador canadense, e compare a distância do tiro, de 3,5 km, com três cartões-postais brasileiros (Foto: Editoria de Arte/G1)

O professor Carrilho diz que o movimento do projétil é cientificamente conhecido como elipse, mas é mais comumente descrito como uma parábola. Ele afirma que a ciência é a mesma para chutar uma bola de futebol, atirar uma flecha, disparar um fuzil McMillan Tac-50, usado pelos canadenses, e até colocar um satélite em órbita – nesse último caso, a diferença é que os cálculos sobre o movimento do satélite em órbita não levam em conta a resistência do ar.

"Tudo é parábola", diz ele, inclusive para o caso de uma bala. "Se fosse linha reta, os canhões não ficavam apontados para cima."

 

Carrilho ressalta que o cálculo para efetuar um disparo inclui um componente conhecido como a "alça de mira" da arma. "Imagine a marca no centro da luneta da arma. Se você olha pela luneta, você está mirando no alvo. A luneta tá mirando no alvo, mas o cano da arma está apontando mais para cima." A alça de mira (e, consequentemente, o ângulo do cano da arma) é ajustada de acordo com a distância que o atirador está do alvo.

Esse ajuste, segundo ele, precisa levar em consideração, além da distância, a velocidade do disparo. No caso registrado pelo exército canadense no Iraque, a distância foi de 3.540 metros, e a bala, disparada de um fuzil McMillan Tac-50, atingiu o alvo "em menos de dez segundos", de acordo com as informações que o Canadá confirmou ao "Globe and Mail". Por isso, Carrilho calcula que a velocidade média da bala neste disparo tenha superado a própria velocidade do som, que é de aproximadamente 340 metros por segundo.

 

O professor ressalta, porém, que uma série de fatores externos podem interferir na trajetória da bala durante os menos de dez segundos que ela levou para atingir o alvo. De acordo com as informações do jornal canadense, o exército citou a velocidade do vento e a curvatura da Terra como alguns desses fatores. Carrilho afirma que, considerando tamanha distância, a influência do vento deve ser uma das interferências mais fortes. "A Terra tem mais ou menos 40.200 quilômetros de perímetro, então 3,5 quilômetros dá 0,08% da curvatura da Terra. Isso é insignificante, imagino que tenham outros cálculos mais significativos, mas isso tem que ser feito com muita precisão."

Considerando tantos fatores, o professor Carrilho explica que a pesquisa e os cálculos por trás da invenção e do manuseio de uma arma de precisão como o fuzil McMillan Tac-50 são significativamente mais complexos do que o que os professores exigem dos estudantes nas aulas de física do ensino médio.

"No ensino médio o que a gente faz é eliminar todas essas influências externas, para tornar o problema mais compreensível, porque o objetivo é entender o fenômeno. No vestibular, costuma cair alguma coisa ligada a futebol, como alguém que faz um lançamento referente a um chute. Serve para deixar o problema mais próximo da matemática do ensino médio", afirma ele. "Na prática deve ser alguma coisa muito sofisticada, e talvez tenha até segredos militares, deve ter muito investimento em relação a essa balística."

Ele lembra, ainda, que o fato de o fuzil usado pelo exército canadense ter capacidade de disparar uma bala em velocidade acima da do som provoca até um fenômeno curioso: "Imagine que eu seja um alvo em potencial. Normalmente, num tiro a longa distância, se a bala é com velocidade subsônica eu ouço o estampido. Eu ouço e poderia me assustar e me agachar. Nesse caso, como a bala tem velocidade supersônica, ela atinge o alvo primeiro e depois chega o som. "

Canadian Army McMillan Tac-50 (C15) Long Range Sniper Weapon (LRSW)

Um tiro desses é possível?

Os cinco especialistas militares do Brasil ouvidos pelo G1 afirmam que um tiro de alta precisão acertar um alvo a uma distância tão grande é possível com o fuzil McMillan Tac-50, mas as probabilidades do feito são baixas e exigem que uma série de fatores estejam todos trabalhando a favor do atirador.

"É possível um disparo como este, sim. Mas precisa de muita sorte também", afirmou Fernando Montenegro, coronel da reserva do Exército e ex-integrante das Forças Especiais do Exército. "A possibilidade de variantes por conta de correntes de vento é muito grande. Como dizemos: A sorte acompanha os audazes. Na minha visão pode ter sido a combinação de um equipamento de alta tecnologia, mais treinamento e sorte. A sorte é tão importante quanto equipamento e treinamento."

 

Um integrante do Comando de Operações Especiais do Exército, a tropa de elite do Brasil, que atua na área de tiros de precisão, afirmou que é provável que os canadenses tenham usado uma luneta de alta tecnologia e uma munição diferenciada e específica. "Uma munição com energia mais pesada e velocidade maior, tecnicamente é bem possível. Com tecnologias melhores que permitem a localização do alvo, você faz a preparação do fuzil para isso, com variação de vento e todas as demais. Dificilmente ele conseguiu enxergar o alvo", afirmou o militar, que não quis se identificar. De acordo com os especialistas, hoje em dia o Brasil não dispõe de lunetas e munições capazes de uma empreitada como essa.

 

Outros recursos que podem ter sido usados envolvem tecnologias específicas, como o apoio visual de um drone, que pode ter auxiliado com o referencial da posição do alvo.

 

O atirador conhecido pelo codinome Assombroso, que realizou dezenas de disparos certeiros em alvo humano no Haiti e é hoje um dos mais famosos snipers do Exército, é mais cético. "Acho pouquíssimo provável um engajamento efetivo (acertar o alvo) a esta distância", diz ele, que acha difícil que a luneta tenha consigo dar uma imagem razoável ao atirador por causa das interferências de partículas da imagem de longa distância. "É muito difícil acertar naquilo que apontou. Eu posso disparar uma .50 e acertar aleatoriamente um alvo em meio a outros", afirmou Assombroso.

 

Segundo o atirador, o vento entre o equipamento e o alvo é muito significativa, e outra interferência pode ter sofrido é "uma provável reverberação de calor do solo na imagem, o que é muito comum no Oriente Médio". Ele lembra que, "para ser recorde, o atirador tem que ter feito todos os procedimentos visando especificamente acertar este alvo."

No curso realizado em maio, os militares brasileiros praticaram o tiro de precisão em diversas situações Foto: Divulgação/Centro de Instrução de Operações Especiais do Exército

Um atirador que atua na polícia de São Paulo e que também não quis se identificar lembrou ainda que o tiro é possível, mas provavelmente se aproxima dos limites físicos do alcance efetivo da arma – a partir de uma certa distância, a bala corre o risco de se fragmentar. Já um atirador da polícia do Rio de Janeiro afirmou que as únicas munições capazes de percorrer uma distância de 3,5 quilômetros são realmente as de calibre .50.

 

Apesar de esse disparo ser factível, de forma muito difícil e rara, alguns militares da área pontuaram que há também a possibilidade de o anúncio ser uma "operação psicológica", ou seja, quando uma informação é divulgada como verdadeira para colocar na mente dos adversários o temor de que isso seja capaz de ser feito. Trata-se de uma forma de desestabilizar psicologicamente o inimigo.

 

 

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