Rafale “exposto” em Raio-X Operacional Parte 1 – Introdução

 

por Vianney Jr.,
Direto de Istres

 


Transparência. Esta parece-me a melhor palavra para definir uma semana de avaliações do Rafale, caça da Dassault que representa hoje o principal, e em breve, único, vetor de primeira linha da Armée de l’Air e da Marine Nationale, a Força Aérea e Marinha Francesas. Além fronteiras, esta aeronave multi-função, ou, “omnirole” como prefere a “Maison” criada por Monsieur Marcel, concorre entre os favoritos em competições F-X em 3 continentes. A Dassault nos permitiu testar as capacidades de seu caça nos mínimos detalhes, tudo registrado e analisado com o suporte de telemetria durante todas as missões. Bem, pelo menos em quase todas. Na verdade, ficamos por várias vezes “invisíveis”, deixando o Rafale voar sozinho em modo Terrain Following a mais de 450kt (835km/h) abaixo de 300 pés (90 metros de altura) entre as montanhas nos arredores de Istres, e avançando sobre o Mediterrâneo a menos de 30 metros da água do mar.
 
7 por 1
 
Um avião de combate experimentado em três recentes operações – Afeganistão, Líbia e Mali, o Rafale dispensa apresentações. Diversos são os artigos e publicações que descrevem os modelos e especificações do caça francês, no entanto, vale destacar que tanto monoplaces como aeronaves com dois assentos conservam as mesmas dimensões e o mesmo percentual de compósitos em sua superfície exposta à detecção, 70%. Aqui, nos concentramos em testar as capacidades reais do avião que voamos, o Dassault Rafale, na configuração F3-04T, um F3+ que já incorpora o novo radar RBE2 AESA, e MWS (alerta de aproximação de mísseis) e FSO (suíte de sensores ópticos) melhorados, inovações estas, implantadas antes do prazo previsto pelo programa, e que nos convenceram do realístico processo de amadurecimento e evolução do Rafale.
 
Nossas avaliações se deram desde o planejamento da missão, um capítulo à parte por sua praticidade e versatilidade, até o debriefing digital (corroboradas pelas análises de telemetria), o que nos ajudou a entender a razão do profundo impacto da introdução do Rafale, e seu efeito na realidade operacional e respectivo reflexo na cadeia C4ISTR (Command, Control, Communications, Computer, Intelligence, Surveillance, Target Acquisition, Reconnaissance – Comando, Controle, Comunicações, Computação, Inteligência, Vigilância, Aquisição de Alvos e Reconhecimento) das Forças Militares Francesas. (Veja maiores detalhes de nossa visita à Base Aérienne 113 – Commandant Antoine de Saint-Exupéry, em Saint Dizier, na Parte 2 desta avaliação)
 
A implantação do Dassault Rafale foi capaz de fazer face à onipresente realidade mundial de redução de orçamentos, com surpreendente resultado: Diminuição do número total de aeronaves de caça, reconhecimento e ataque, porém produzindo um incremento da capacidade de emprego e disponibilidade, com um aumento considerável da eficiência. Ao todo, 7 diferentes modelos de aeronaves com missões específicas, tiveram suas designações absorvidas pelo Rafale. Numa rápida dedução do que isso representará no âmbito dos custos quando as últimas aeronaves remanescentes forem totalmente substituídas, a constatação de uma drástica racionalização dos recursos humanos e financeiros, com a padronização de equipamentos e equipagens. Se considerarmos que a própria conversão inicial dos pilotos se dá em uma mesma estrutura (Escadron de Transformation Rafale 02.092 Aquitaine) tanto para a Força Aérea como para a Marinha, temos uma ideia de quão transformadora foi a decisão pela escolha deste avião de combate “omnirole”. Mas afinal, o que quer dizer esta denominação, na prática?
 
“Omni” – Dissecando um conceito
 
Porque o prefixo latino “Omni”, que significa “todo” ou “toda” – daí, “omnirole”, toda-função, ao invés do usual “multirole”, multi-função – poderia se justificar além de uma expressão de efeito, concebida pelo departamento de marketing? Para mim, após a avaliação, e mesmo havendo testado outros caças de primeira linha que incorporam capacidades similares, entendo que para além dos apelos comerciais, quis-se enfatizar a praticidade e facilidade de alternar, reprogramar e executar uma variada gama de missões em cenários de constante modificação durante um único voo. O Rafale apresenta o que poderíamos chamar de “ergonomia prática plena”, uma vez que a Dassault, seguindo o próprio DNA da empresa, tem o piloto como elemento chave. A aeronave desenha-se a partir da ponta dos dedos de quem a comanda. Obviamente que em apenas uma semana, estou longe de considerar-me um expert no Rafale, mas garanto que com a breve instrução intensiva que recebi, tive extrema facilidade para operá-lo.
 
Para comprovarmos esta capacidade e facilidade de, com uma combinação complexa de armamentos, cumprir vários tipos de missão em uma única surtida, executamos um voo que sintetizasse as operações realizadas pela Força Aérea e Marinha Francesas no Afeganistão, Líbia e Mali, porém em um teatro de operações mais hostil e contra forças ainda mais preparadas. O set de missões incorporou ataques marítimos utilizando o AM39 Exocet, com penetração à baixíssima altitude, ataque com AASM – Armement Air-Sol Modulaire a alvos planejados e redesignação em voo para alvos não-planejados, tanto em altitude quando em low level bombing, POP ataque, interceptação de longo e curto alcance, e strafing com o canhão Nexter 30 M 791 com munições de 30mm em alvos de oportunidade.
 
Entre conosco no cockpit do Rafale na Parte 3 deste ensaio em voo e nos vídeos de nossas missões no canal DNTV.
 
Data Fusion
 
PCWRITE. Assim, com esta combinação de “letras” exibidas no canto esquerdo inferior do HLD – Head Level Display, tem-se a representação das indicações de que o radar RBE2 AESA, o sistema de Infravermelho/Laser/TV Front-Sector Optronics (FSO), o sistema interno de guerra eletrônica SPECTRA EW, o IFF (identificação amigo-inimigo), os sensores dos mísseis MICA IR (infrared seekers), e o Data Link estão fornecendo dados conjuntamente, traduzidos e fundidos numa representação visual clara e unificada direto no display SA (situation awareness) tático do caça, o que mantêm o piloto dentro do loop situacional, dando uma real e instantânea confirmação de quais sensores atuam no momento, raramente (não presenciamos nenhuma vez durante as avaliações) deixando o piloto inadvertido do cenário 360º ao redor da aeronave.
 
O coração desta fusão de dados é a MDPU – Unidade de Processamento de Dados em Módulos, que é composta por 19 LRUs (flight-line replaceable units), cada uma delas provendo uma capacidade de processamento até 50 vezes maior que um caça de geração anterior. Tradução: O piloto tem uma carga de trabalho reduzida, que o permite atuar como um verdadeiro tomador de decisões táticas, ao invés de um mero operador de sensores.
 
O ponto chave da fusão de dados é a superação das limitações de um determinado sensor isoladamente. Por exemplo, se ele é baseado em formatos de onda, frequência, calor ou imagem, e o ângulo, a distância, a altitude, condição de tempo ou qualquer outro fator, até mesmo um mal funcionamento representem uma limitação, os demais suplementam a formação da grande imagem situacional. O MDPU reúne os dados consolidados de diferentes fontes baseadas em tecnologias diversas, complementando, organizando e fornecendo a informação por meio de simbologia refinada, confiável e unificada.
 
RBE2 AESA e FSO
 
O fato da Dassault deter participação societária dentro do Grupo Thales foi fundamental para o desenvolvimento do radar de varredura eletrônica ativa – também conhecido como radar AESA (do inglês: Active Electronically Scanned Array) – do Rafale com a velocidade e independência necessárias à viabilidade do programa do caça Francês. Este tipo de radar cujo transmissor e receptor são compostos de numerosos módulos independentes permite a detecção all-aspect, look-down e look-up, e o rastreamento de múltiplos alvos aéreos, até mesmo fora da área de busca, em todas as condições meteorológicas e mesmo em ambiente de interferência e contramedidas eletrônicas.
 
Além desta clara, e hoje imprescindível, vantagem para missões de interceptação e superioridade aérea, o radar AESA provê consciência situacional privilegiada nas missões terrestre e naval. Durante nossos cenários simulados (Parte 3) utilizamos o RBE2 AESA para geração em tempo real de mapa tridimensional para voo no modo Terrain Following, captação de mapa 2D de alta resolução para detecção e identificação de inimigos em diferentes ambientes (urbanos e rurais), e designação e rastreamento de múltiplos alvos tanto em terra como no mar.
 
Dentre os demais sensores, a combinação do radar AESA com o FSO – Front-Sector Optronics (item embarcado “de fábrica”, incrustado no nariz do caça) desenvolvido pela Thales e a Sagem para o Rafale, me fez sentir muito confortável, principalmente por atestar que se as regras de engajamento nas missões que executamos de forma simulada, fossem um requisito real, eu estaria confiante na identificação dos alvos atacados sejam aéreos, terrestres ou marítimos. Sempre com a busca e rastreamento automáticos e totalmente integrado à suíte multi-sensor do Rafale. Além do mais, constatamos a capacidade de encerrar o conjunto de atividades a nós designadas, fazendo o reconhecimento em imagem de TV / Infravermelho e com mensuração laser, da neutralização dos alvos e a efetividade dos resultados da missão.
 
MICA e METEOR
 
O míssil MBDA MICA (Missile d’interception et de combat aérien) é hoje o principal armamento ar-ar tipo multi-target, all weather, fire-and-forget do Rafale. Extremamente ágil, graças ao TVC – thrust vector control, ou controle vetorado de empuxo, e as suas pequenas dimensões, incomuns se comparado a mísseis similares de curto e médio alcance, o MICA apresenta demonstrada efetividade dos 500 metros à aproximadamente 60 quilômetros, nas versões IR (imaging infra-red homing seeker) e RF (active radar homing seeker), ambos equipados com filtros que reduzem a eficiência de contramedidas como chaff e flares. O MBDA MICA também é capaz de lock-on after launch (LOAL), o que significa na prática, uma “autorização” de disparo fora do alcance dos sensores do míssil, efetivando a aquisição e travamento no alvo após o lançamento, e até mesmo sua redefinição via link com o caça.
 
Como mencionado na descrição de Data Fusion do Rafale, o MICA IR pode fornecer informação visual infravermelho à central de processamento e fusão de dados do caça, agindo como uma espécie de sensor extra.
 
Durante nossas avaliações, duelamos em sets de cenários BVR e WVR onde engajamos o Mirage 2000-5 (mais detalhadamente analisados na Parte 3 deste teste), onde tivemos oportunidade de confirmar a combinação do SPECTRA EW com as características de manobrabilidade e aquisição do MICA ER, que nos permitiu travar o alvo a partir da EM/IR/Laser Threat Detection – Detecção de Ameaça Eletromagnética / Infravermelho / Laser – quando a bolha de segurança em torno do Rafale foi invadida e executamos o lançamento do míssil over the shoulder – por cima do ombro, ou seja, o disparo de um MICA contra um alvo localizado na posição seis (atrás da aeronave) sem sequer alterar a direção de voo do nosso caça.
 
Fomos distinguidos com o privilégio da autorização para acompanhar o estágio atual de desenvolvimento do próximo míssil ar-ar de longo alcance a ser empregado pelo Rafale, o MBDA METEOR, impulsionado por um ramjet (motor a jato que não possui partes móveis, simples e pequeno, mas com grande velocidade) que o leva a mais de Mach 4, com potencial de letalidade a mais de 100 km. Tivemos acesso ao simulador de integração do programa, onde é ensaiado o comportamento do novo armamento em conjunto com o radar RBE2 AESA e demais sensores que compõem a suíte de fusão de dados que garantem ao Rafale uma precisa aquisição e travamento de alvos. Recebemos a honra de realizar alguns lançamentos do METEOR, que registrados, somaram-se à base de dados do programa de desenvolvimento e integração.
 
Seguro… a 900km/h, 20 e poucos metros do chão e cheio de inimigos ao redor
 
A segurança do piloto é resguardada por vários sistemas do Rafale. Já no assento, a inclinação de 29º visa distribuir a incidência gravitacional, prevenindo o G-Loc, mesmo aos 9 Gs positivos que o caça da Dassault pode puxar dentro dos fatores de carga operacionais previstos, em modo ar-ar. O GPW – Ground Proximity Warning, alerta por meio de sinais sonoros e visuais para proceder com a cautela necessária a evitar a colisão com o solo quando a atitude e altitude de voo correspondem a uma aproximação com a superfície. Caso necessite, um sistema pré-programado de recuperação pode ser acessado pelo piloto e nos casos de desorientação espacial o “anti-spin”, tanto embora o Rafale não tenha demonstrado qualquer tendência mesmo nas esquinas do envelope, uma vez acionado, reconduz a aeronave a uma situação segura com asas niveladas, 5º de incidência e 350 kt. Na ausência de reação do piloto ao GPW, igualmente, uma manobra automática é iniciada reconduzindo o avião ao nivelamento das asas e a uma razão positiva de subida.
 
Embora o Rafale previna-se com segurança do CFIT – controlled flight into terrain, é exatamente no voo rasante (próximo ao solo – montanhoso ou plano – ou à agua) que o caça tem uma de suas principais vantagens. Uma capacidade única e inteligente de usar o que eu chamaria de “invisibilidade de guerrilha”. O modo Terrain Following, muito mais do que um auxílio à pilotagem extrema – rápida e em baixíssima altitude, age como um piloto extra na cabine, uma vez que, pela segurança que senti na fidelidade do sistema – que combina a redundância do radar AESA e do banco de dados digital, deixa-nos inteiramente focados no objetivo tático da missão. Entregar as “encomendas” no lugar certo, na hora exata… e ainda assim, rastrear alvos aéreos e ameaças durante a incursão. (Leia mais nas Parte 2 e 3).
 
Além dessa proteção no âmbito da pilotagem e fatores fisiológicos da atividade aeronáutica de alta performance, o Rafale incorpora um “escudo” eletrônico integrado internamente no caça, o que nos dá a sensação de voar dentro de uma bolha de segurança. A suíte interna de Guerra Eletrônica SPECTRA, desenvolvida pela Thales e MBDA, incorpora a capacidade de consciência situacional e alerta à ameaças multiespectrais, ou seja radares, lasers e mísseis inimigos. Mais que “simplesmente” – se é que podemos chamar isso de simples – deixar o piloto a frente das ameaças, com a vantagem do tempo para tomar a melhor decisão, o SPECTRA também integra o Data Fusion do Rafale, e permite o travamento de um armamento em uma ameaça, que se torna alvo. Veja os exemplos nos engajamentos com o Mirage 2000-5, na Parte 3.
 
 
Um Bruto Delicado
 
A sobra de potência do Rafale associada a sua robustez estrutural permite que este “bruto” carregue uma carga útil de até 140% de seu próprio peso. Tal percentual significa 24 toneladas e meia de peso máximo de decolagem. Quando nos referimos à robustez do avião da Dassault, somos práticos, reais, diretos e… inéditos! Presenciamos em Istres a implantação de duas novas estações sob as asas do caça, sem qualquer alteração ou reforço estrutural. Detalhes nas Partes seguintes desta avaliação.
 
Toda esta “brutalidade” não tira do Rafale, ares de bailarino, uma vez que sua agilidade, aceleração, e flexibilidade no item velocidade inside envelope demonstram um bem sucedido modelo aerodinâmico. Pausa para a poesia, por lá soube que Monsieur Marcel Dassault pregava que “uma aeronave para voar bem, tem que ser bonita”. Neste caso, paixões e preferências à parte, o Rafale é uma belíssima aeronave. Mas, deixando de lado o culto ao belo, peculiar à terra de Exupéry e Clostermann, e voltando à frieza dos números, demonstramos em vídeo da telemetria, anexo a esta Parte (DNTV), a execução de um looping em baixa velocidade, iniciado com 190 kt e reduzindo a 128 kt no topo e variando apenas 2.300 pés. Acompanhe as indicações de velocidade à esquerda e altitude à direita da projeção do HUD. Conclusões por parte do leitor.
 
Para despedir-me desta introdução, esperando ter deixado em nossos amigos o interesse por continuar a leitura desta versão pública de nossa semana de testes, descrevo a impressionante característica de pouso curto do Rafale, que – mesmo em dias de ventos de rajada, o que exigiu minha atenção para o toque – pousou seguramente em menos de 650 metros, com restantes 510 kg de combustível, dois MICA e um tanque supersônico externo ventral.

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