Jornalismo a serviço de quê?

Observatório da Imprensa

O que pode pretender um grande jornal quando divulga uma entrevista com um mascarado que se apresenta como black bloc e lança ameaças de atentados, em ônibus e hotéis, às delegações e aos turistas que vierem para a Copa?
 
O Estado de S.Paulo publicou no domingo (16/2) matéria com os trechos principais de uma entrevista disponibilizada em seu site (TV Estadão) na véspera. Precisamente no momento em que o secretário de Segurança do Rio envia ao Congresso Nacional um projeto de lei que vem se somar a tantos outros voltados a tipificar o crime de terrorismo, associando-o aos distúrbios urbanos provocados pelos protestos que começaram em meados do ano passado e que agora exibem o primeiro cadáver produzido pelos manifestantes.
 
Pode um jornal entrevistar um sujeito que se apresenta com nome fictício e se esconde atrás de uma máscara para fazer ameaças?
 
A situação fez lembrar a famosa entrevista que Gugu Liberato promoveu em seu programa dominical, em 2003, com dois supostos integrantes da maior organização criminosa nos presídios paulistas, que vinha então comandando atentados na cidade. Os dois mascarados, diante do auditório e das câmeras, ameaçavam jornalistas. Era uma farsa, só para causar escândalo e dar Ibope, mas a reação foi imediata: no domingo seguinte o programa não pôde ir ao ar.
 
Acontecerá agora alguma coisa ao Estadão por ter ajudado a divulgar uma mensagem criminosa?
 
Leviandades jornalísticas
 
Este foi apenas o episódio mais recente de irresponsabilidade jornalística no contexto da cobertura da morte do cinegrafista da Band, semana passada. Em vez de guardar o prudente distanciamento em relação aos fatos para tentar esclarecer o que se passa, o noticiário, em suas várias plataformas, mergulhou no turbilhão de emoções e ajudou a disseminar boatos, insinuações e acusações sem prova.
 
O destaque dado à morte de Santiago Andrade é plenamente justificável porque se trata da primeira ocorrência fatal provocada por manifestantes. É o que distingue esta morte das demais, provocadas por acidentes ou pela ação da polícia. Mas a opção por uma cobertura intensiva, à beira da histeria, só poderia contribuir para aumentar a excitação, a ansiedade e a confusão em torno do que ocorreu e do que pode estar por trás do ato praticado pelos dois jovens presos.
 
Ou seja: só poderia resultar no contrário do que se exige do jornalismo. Especialmente agora, quando a internet facilita a disseminação de boatos e aumenta exponencialmente a incerteza sobre aquilo em que podemos confiar.
 
A cobertura favoreceu amplamente a atuação do advogado dos dois rapazes presos, que pôde dizer o que lhe dava na telha e tinha automaticamente suas declarações reproduzidas: seja a insinuação – apesar do pedido de desculpas, depois que o estrago estava convenientemente feito – de que o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, estava envolvido com ações criminosas como aquela, seja a afirmação sobre o pagamento de manifestantes para a promoção de atos violentos, cuja suspeita também recaía automaticamente sobre partidos de esquerda.
 
Diante das críticas que recebeu – inclusive de Caetano Veloso, em seu espaço no próprio jornal (domingo, 16/2) –, O Globo publicou editorial para reiterar a justeza de seus procedimentos, ignorando que o ambiente criado pela cobertura em tempo real favorece a turbulência: se o jornal abre espaço para qualquer um dizer qualquer coisa, deixa de exercer sua função fundamental de filtrar o que pode e deve ser publicado imediatamente e o que precisa de tempo para ser devidamente apurado. Acaba servindo como porta-voz de certas fontes, que sabem muito bem a força da disseminação da suspeita, apesar do imediato desmentido: uma vez lançada, ela sempre sobrevive.
 
Isso é tão elementar que nem precisaria ser dito.
 
E é claro que quando essas fontes dizem exatamente o que o jornal gostaria de dizer, isso é só uma feliz coincidência.
 
Acusações sem provas
 
A denúncia sobre pagamento a manifestantes existe desde o início dos protestos, como lembrou Janio de Freitas em artigo na Folha de S.Paulo (16/2), sem que nada, até o momento, tenha sido provado. A diferença é que o pagamento não seria apenas para participar de manifestações – o que, de resto, é prática antiga na nossa política –, mas para provocar atos de vandalismo, como a depredação de patrimônio e a detonação de explosivos.
 
O que se apresentou como prova até agora foi uma relação de doações para uma ceia de Natal na Cinelândia com moradores de rua. Seria apenas ridículo divulgá-las como se atestassem o vínculo entre políticos de esquerda e as manifestações violentas que finalmente produziram um cadáver. Seria apenas ridículo, mas é mais que isso: é leviano, porque no ambiente radicalizado e volátil em que vivemos tudo o que venha a consolidar nossas crenças é assumido acriticamente, e então as contribuições para uma festinha comunitária se transformam em prova de associação para o crime e se espalha alegremente pelo espaço virtual.
 
Ao mesmo tempo, quem rejeita liminarmente a grande imprensa por considerá-la “fascista” e “golpista” – além de “burguesa”, bobagem que Alberto Dines já anotou ao dizer que burguesa é a sociedade – passa a ter mais argumentos para condená-la.
 
Curioso é que as suspeitas tenham recaído imediatamente sobre partidos de esquerda, inclusive sobre o PSTU – que, sabidamente, sempre condenou essas ações –, quando O Globo já noticiara, meses antes, um primeiro resultado das investigações policiais sobre os possíveis responsáveis pela organização de atos de vandalismo, que apontavam para pessoas ligadas ao ex-governador Anthony Garotinho, do PR, que se prepara para mais uma disputa eleitoral.
 
Além disso, ninguém se lembrou da prisão de membros do black bloc do Rio às vésperas das manifestações do 7 de Setembro do ano passado: de lá para cá, houve algum avanço nas investigações?
 
O preço da ambiguidade
 
Entretanto, é preciso reconhecer que o PSOL, e o deputado Marcelo Freixo em particular, deram oportunidade a que essas denúncias os atingissem. Em entrevista ao Observatório na TV (17/9/2013), Freixo reiterou o que vinha dizendo na época sobre a necessidade de “entender” aqueles jovens que optavam pela depredação. Como argumentei neste Observatório (“Os abusos do Estado e o elogio da destruição”), também precisaríamos, nesse caso, “entender” os demais comportamentos que nos surpreendem: por exemplo, agora, o dos “justiceiros” que agrediram, despiram e ataram o rapaz negro ao poste, no simbólico episódio ocorrido há duas semanas no Flamengo.
 
A rigor, precisaríamos mesmo, porque são um sintoma do tipo de sociedade que temos. No entanto, todos os que defendemos os direitos humanos não temos qualquer dúvida em condenar imediata e enfaticamente essa atitude.
 
A hesitação em rejeitar explicitamente, desde o início, as ações dos black blocs conduziu a uma ambiguidade que poderia sugerir adesão, e isso cobra seu preço no momento da tragédia.
 
Ao mesmo tempo, o partido retirou de seu site nacional um artigo teórico publicado em outubro do ano passado que sugeria uma possibilidade de aproximação com aquele grupo de ativistas. A atitude só ajudou a alimentar suspeitas e foi convenientemente explorada pela mídia e por todos quantos, nas redes sociais, se interessaram em recuperar o texto original, ainda disponível na página do PSOL de Pernambuco, estado de origem do autor (ver aqui).
 
Conflito de interesses
 
O terceiro aspecto que chama a atenção nessa cobertura é o conflito de interesses que impediria o advogado de atuar na defesa dos dois jovens, considerando que um denunciou o outro, que por isso acabou preso, e o outro agora acusa esse um.
 
O Globo, em vez de questionar esses fatos, preferiu abrir espaço para mostrar que o advogado se tornara uma súbita celebridade, “esquecendo” que isso só foi possível por causa da mídia. O Extra exibiu trechos do depoimento de um dos presos, um documento “a que teve acesso” sabe-se lá como, sem indagar da legalidade daquela ação, realizada no presídio durante a madrugada, sem assistência jurídica.
 
A hiperexposição dos dois jovens levava a supor que eles não estavam adequadamente orientados. De fato, quando é que vemos um advogado permitir que seus clientes sejam inquiridos pela imprensa como foram? E o que dizer do comportamento do próprio advogado, que reverberava tudo o que – supostamente – os rapazes lhe diziam? Tudo o que lhe convinha dizer, bem entendido, mesmo que agravasse a situação de quem ele se comprometeu a defender, como ficou óbvio no caso da afirmação sobre o pagamento para a participação nos protestos, que só agrava a pena para quem será julgado por homicídio – no caso, por motivo fútil.
 
Tudo isso deveria ter chamado a atenção da imprensa e orientado as pautas para uma investigação sobre esse advogado, que anos atrás defendeu um ex-deputado acusado de chefiar uma milícia no Rio. Acaso ele agiu assim naquela época? O que teria a OAB a dizer dessa conduta?
 
Muita calma nessa hora
 
O desenrolar das investigações diante da permanente presença das câmeras de TV e celulares acarretou, como costuma ocorrer nesses casos, uma excitação que, transbordando para as mídias sociais, levava a reverberar automaticamente qualquer informação, boato ou suspeita. Hoje, praticamente nenhum evento está a salvo de documentação: alguém sempre fotografa ou filma o que acontece, dos fatos mais banais aos mais impactantes.
 
A ação que resultou na morte de Santiago foi filmada dos mais variados ângulos e isso permitiu a rápida identificação dos autores, com imagens exaustivamente veiculadas na TV e esquadrinhadas por peritos. Mas a cobertura acrítica da grande imprensa facilitou a disseminação de dúvidas quanto ao noticiário e fez proliferar as hipóteses mais delirantes em relação ao que se passou, especialmente quando surgiram imagens que aparentemente contrariavam a versão oficial sobre o suspeito de ter acionado o rojão. Essa descrença, porém, continuou mesmo depois de desfeito o mal-entendido, o que demonstra até onde vai a cegueira militante.
 
No entanto, a excitação provocada pela caçada aos criminosos facilitou a criação de um ambiente de histeria punitiva que resultou no indiciamento dos dois jovens em homicídio doloso, o que é um flagrante absurdo a ser desfeito na hora do julgamento.
 
A rápida identificação dos culpados é apenas o ponto de partida para uma investigação que leva tempo e não pode ocorrer à vista de todos, para que se preservem as garantias ao devido processo legal.
 
Recentes análises publicadas neste Observatório indicam que vivemos um momento particularmente crítico e perigoso. É nessas horas que o trabalho da imprensa se reveste de uma relevância fundamental, como referência de credibilidade. A não ser que o objetivo seja fomentar a insegurança e o medo, para a formação de uma opinião pública favorável a projetos que limitem o campo da liberdade de manifestação. É aí que veremos a serviço de quem, e do quê, se pratica esse tipo de jornalismo.
 
***
 
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

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